sexta-feira, 27 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 14

CONHECER(-SE)
Não é fácil, e não necessariamente por falta de disposição moral, assumir a proposta socrática de conhecer-se como base para a vida. Como função vital. Estudar a si mesmo do jeito que Montaigne queria. O principal desta não facilidade é o fato de que falta-nos, falta-me, percuciência. Falta competência. Percebo isso quando leio comentários a filmes, a livros, a obras de teatro e outras formas de arte, quando releio livros... É impressionante o quanto deixo escapar, o quanto não vejo.
Uma boa parte da população mundial não se interessa por conhecer a si mesmo. Penso, por exemplo, na infinidade de pessoas que, habitando os países muçulmanos satisfazem-se apenas com tocar o chão com a testa cinco vezes por dia e lançar diatribes contra o Ocidente, como se apenas a ambição (que não é pouca) dos países ocidentais fosse a causa de seus males, esquecendo-se dos séculos de estagnação que lhes atingiu pela incompetência em superar os impasses a que levou o poderoso imperialismo árabe, da implícita e mesmo ímpia desigualdade social que sempre os caracterizou, além da ganância de dinheiro e poder dos seus próprios dirigentes (os ayatolás que dominam o Irã rapidamente se fizeram os mais ricos) enquanto ao povo em geral só resta apresentar-se como voluntário para o exército dos homens-bomba. Também me lembro dos palestinos, cujo maior inimigo nominal, Israel, lhes causa menos estrago do que a corrupção e a ação de uma minoria fanática a serviço (freqüentemente inconsciente) de interesses o mais das vezes internacionalistas pan arábicos ou pan muçulmanos, que pouco se interessa pela questão das pessoas que residem na Palestina. Tais interesses nominalmente voltados para salvar as almas muçulmanas, o mais das vezes rezam a cartilha do jogo do poder e da satisfação de processos inconscientes traumáticos, pouco ou nada vinculados à questão árabe, palestina, muçulmana, humana... Penso também nos milhares de cristãos que se crêem compelidos por uma força demoníaca para o mal e que, portanto carecem de pastores ululantes e padres sussurrantes capazes de conjurar o mal que, um pensar cuidadoso sobre o si mesmo traria um efeito, no mínimo, gerador de autonomia. Talvez tivesse razão Voltaire ao considerar que a religião caso não existisse teria que ser inventada, pois que tem o forte papel de servir de freio para determinadas ações perniciosas. Sim, talvez tenha razão, mas, Nietzsche também não se enganou ao considera-la uma crueldade. Quantos se martirizam por ela? Quantos desviam seu caminho por ela? Embora tantos nela encontrem conforto, o que é bom e louvável, outros apenas aprofundam os conflitos, como vimos na Irlanda do Norte (católicos contra protestantes), no Paquistão e outros países da Ásia, onde cristãos são massacrados por muçulmanos, no Iraque onde sunitas e xiitas se matam mutuamente etc. Religião, economia e política, salvações que se tornam maquinações do mal... Creio que devido a nossa incompetência de conhecer a si mesmo, tornando-nos alvos fáceis de manipulações. Claro que o mundo não é feito apenas da minha, ou da nossa, subjetividade. No entanto, solipsismos à parte, o fato é que o não entendimento do que somos em si é causa de grande mal.
Os irlandeses estão longe daqui, bem como os conflitos no Oriente Médio. O Vale do Capão, local onde resido, descansa uterino sob a chuva suave e o gorjeio das aves matinais. Mas em sua devida escala aqui se repete o que no mundo transborda. Cá, como lá, vamos vivendo nossas limitações. O desejo de ser aceito, no mínimo, bem como o desejo de ser mais do que se é, em plano intermediário, além da vontade de ter o poder sobre os demais, mandar, dominar estão pautados, lado a lado, com a vontade de viver em paz, estar em harmonia com os demais e com o ambiente. Alguns moradores me impressionam pela sua capacidade de elaborar um sistema de valores baseados em sentimentos e raciocínios cuidadosos, mesmo que não tenham tido a oportunidade a uma alfabetização. Pessoas como o velho Anísio ou Maninho (Luís Quati). Outro dia, em meio a uma conversa na pizzaria de Daniel (La Piedra), pensei alto que esta coisa de ir a restaurantes é muito antiga. Araci, senhora sofrida e vivida neste vale, mãe e avó, de repente, do nada, me perguntou:
- E Deus, Aureo, existe desde quando?
Surpreso fiquei, confesso, com a pergunta. Ela queria saber. E saber é algo maravilhoso. Claro que já havia aprendido no catecismo e nas missas que Deus é eterno. No entanto, o que é e como é esta eternidade. Melhor seria um filósofo e educador para conversar com ela. Na falta, comentei para ela que dentro desta linha de pensamento que inclui a existência de Deus e sua eternidade, há cerca de 20 dias Deus existia. Claro. Há mil anos também. Há um milhão de anos idem. Para onde quer que viajemos no passado e no futuro ali Ele estará. Disso a conversa derivou para a própria existência humana e a possibilidade de uma alma e de que também seja ela eterna. Os olhos dela brilhavam e mesmo, em dados momentos marejaram, com as descobertas de uma conversa! Ao terminar o papo, ocorria um clima entre nós de descoberta da nossa amplitude. A, por assim dizer, literatura que havia sido experimentada na conversação, nos trouxe a sensação de que há e somos algo maior do que nossos pequenos e grandes egoísmos. E de que podemos conduzir-nos de melhor forma do que o fazemos no dia a dia, na medida em que mais vezes nos portemos com a consciência desta consciência. Que nos pode levar para além da política politiqueira, da religião sectarista, da economia voltada para o mero ‘levar sempre a melhor’. Sem negar política, economia ou religião, como elementos reais e componentes históricos inegáveis da vida e saúde humanas.
Recebam um forte abraço,
Aureo Augusto

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

NÃO SENTIR DOR É UMA MARAVILHA

Não sentir dor é uma coisa maravilhosa!
Ultimamente tenho tido problemas na coluna. Além de já tê-la de longa data meio requenguela, há alguns meses, uma sucessão de eventos, que vão desde a mera bobeira de pegar pesos na posição errada até bancos que quebraram quando sentei, complicou o funcionamento da minha coluna. Vai daí que as dores têm participado de meu dia-a-dia, dificultando movimentos, colando-se a cada uma das minhas tarefas, sublinhando os momentos dos dias. Faço quiropraxia com Ian, um cara gigantesco, mas um doce, cujo cotovelo pode ser um dos mais poderosos instrumentos de tortura terapêutica que já existiu na face da Terra. Quando saiu das sessões parece que não tenho peso sobre os ombros. É uma delícia. Também após as aulas de Pilates a sensação é muito boa!
Aliás, vale um parêntesis: Imaginem vocês que o Vale do Capão, conquanto seja um lugarejo de nada nesta imensidão quase erma que é a Chapada, com cerca de 1500 almas vivendo aqui, oferece a seus moradores coisas insuspeitas. Ademais da beleza inacreditável, dos eventos meteorológicos inesperados, como céus e postas de sol de surpresa surpreendente naqueles invernos frígidos, ou os mesmos céus completamente azuis em primaveras ventosas, cachoeiras rompendo o silêncio das serras como dentes brancos risonhos nas chuvas dezembrinas... Bom, não vai dar para dizer tudo! Pois é, como se não bastasse a beleza natural ainda somos brindados com uma escola de circo, dois grupos de capoeira, coral, reizado, drama (um fenômeno cultural tradicional aqui no Vale), Pilates, Quiropraxia etc. E esse ‘etc. ’ não é pouca coisa. Embora para mim, o melhor de tudo mesmo é receber um abraço de Beli, uma gozação de Lili e Luís, conversar com Salvador, Luís Quati, Dozinho, Gilsinho, Dalva, Beli e tantos outros antigos daqui... Mas voltando à dor:
Muito devargazinho meu organismo vem se descolando da mazela nas costas. Acompanho a melhora no uso do cataplasma de argila, do gelo, das mãos enormes de Ian, dos movimentos no Pilates. Aos poucos os movimentos começam a aerear-se do sofrimento. Hoje saí para caminhar pela manhã e contatei com a não-dor. Uau! Indiscutivelmente nada como o contraste! Não estou livre do desconforto, mas só a melhora me diz de um mundo de horizontes dourados.
Quando era jovem padecia de dores abdominais, diarréias e desconfortos muito desagradáveis. Era atroz. Porém com o naturismo minha vida mudou radicalmente. Hoje, muitas vezes estou fazendo qualquer coisa, nadando ou roçando, cuidando de doentes... O que seja. De repente me dou conta de que não mais sinto aquelas dores. Livrei-me delas há mais de 30 anos e ainda não me acostumei, no sentido de que ainda me surpreende esta extraordinária liberdade que é estar sadio.
Em 26 de novembro de 2009 recebam um abraço sadio de Aureo Augusto.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

DROGAS

DROGA
Vejam que coisa: Têm chegado alguns jovens aqui no Vale do Capão com uma característica. São viciados em drogas e os pais despacham para cá com a idéia de que, como aqui é um lugar tranqüilo, eles estarão em certa medida protegidos. Também afastam o problema para bem longe deles. Longe dos pais, perto de quem não tem nada a ver com a história. Esta turma fica aqui sem fazer nada a não ser fumar maconha e estimular os adolescentes locais a fazer o mesmo. Assim, não só não melhoram de seus vícios como aumentam a incidência dos mesmos aqui no Capão. Incomodam os vizinhos e contribuem para que os filhos daqui percam seus rumos. E isso é unir o inútil ao desagradável.
Há algum tempo os donos de uma casa de materiais de construção foram acordados no meio da noite por um jovem desesperado. Sonolentos perguntaram o que desejava. O rapaz pedia uma lata de cola, pois precisava consertar algo. Mas era no meio da noite. Teriam que ir abrir a loja e seguramente tal conserto não era tão urgente assim. Para aquele viciado em cheirar cola, era. Não atenderam ao pedido e, depois, retiraram das prateleiras toda a cola que tinham. Felizmente este rapaz não suportou o Vale. Foi embora. Aliás, esta é uma sorte que temos: Conquanto tenhamos uma vida rica em atividades (circo, capoeira, teatro, pilates, dança etc.), nunca é tão cheia quanto na cidade grande; ademais, faz frio, chove mais do que em outros lugares, e, por fim, muitos acabam contraindo enfermidades por falta de cuidados de higiene, o que os leva a buscar o litoral, quente, ensolarado, com facilidade de transporte e muitas “baladas”.
Nós não temos aqui uma incidência de viciados como nas cidades grandes. Mas temos usuários. Alguns jovens nativos me causam uma certa tristeza quando os vejo. Há aqueles que de quando em vez fumam maconha, aliás, esta erva chegou no Capão muito antes da sua descoberta pelos citadinos de outras paragens. Sabe-se que alguns dos idosos de quando em vez a utilizavam. Porém existem alguns rapazes (e moças, porém bem menos) que estão se afastando de trabalho e escola, permanecendo naquela modorra aflita e incapacitante. Coloquei há pouco a palavra aflita porque, embora aparentem total tranqüilidade com o que fazem – manifestam até um certo orgulho por sua pseudo-opção, como se fizessem parte de uma elite – todos são muito tensos como verifico nas vezes em que fazem consulta no posto. Há uma insatisfação impregnada em seus corpos. Eles não querem trabalhar seguindo o exemplo dos seus pais, até porque viram os mais velhos labutarem tenazmente por exígua recompensa. A vida do camponês não é nem um pouco romântica. Seus pais laboraram arduamente e sempre com grande dificuldade, daí os jovens não se entusiasmam muito em seguir-lhes o rumo. Porém nem sempre encontram uma alternativa realista à fantasia de viver como “os de fora” sustentados pelos pais.
Temos exemplos, como Lili, um jovem empreendedor que produz de tudo em sua horta e pomar, já tem quitanda e caminhão. Isso conseguido com luta e uma visão de economia superior a de seus pais. Nininho é outro que começou como guia, estudou, foi presidente da associação dos moradores onde se destacou e hoje é vereador (um dos poucos coerentes). A tristeza é que nem todos os jovens percebem que o caminho escolhido por estes dois (e outros) é mais seguro do que a fantasia de viver no país dos Lotófagos (na Ilíada Ulisses chega neste país onde quem come uma certa folha esquece de tudo).
O álcool ainda permanece sendo a grande droga dos lugares pequenos, mas segundo informações obtidas nos inúmeros contatos que tenho com pessoas de outras cidadezinhas das redondezas, maconha, cola e mesmo cocaína e crack estão avançando. Há um lugarejo na estrada para Irecê onde a incidência é chocante. Como não temos um policiamento adequado os traficantes ficam mais livres para agir. Se nas grandes cidades já é difícil o controle, imagine no sertão.
Por isso sou tão insistente defensor da instalação de uma sub-delegacia de polícia no Vale do Capão. Claro que não penso que polícia resolve o problema. Afinal, o problema não é de polícia. Passa por inúmeras questões que vão desde a criação dos pais, relacionamento pais/filhos, expectativas sociais, problemas pessoais, dificuldades no próprio processo de crescimento somato-psíquico, necessidade de transcendência etc. etc. etc. É muita coisa. Mas a polícia pode coibir certas condutas como a que descrevo agora:
Um cara bateu em uma porta de uma pessoa nativa, foi atendido por uma criança e pediu fósforo. A garota entrou e trouxe o fósforo, o cara acendeu um baseado e em seguida ofereceu-o à criança. Por sorte a mãe chegou na hora e fez um escândalo. Às vezes falta um mínimo de bom senso.
Talvez este texto traga a idéia de que as drogas invadiram o vale. Invadiram. Mas não significa que a cada passo você encontra alguém usando-as. Não é assim. Não se trata de que a vida está ficando intratável ou impossível. Porém, aqueles que temos bom senso, estamos preocupados.
Recebam um abraço,
Aureo Augusto.

sábado, 21 de novembro de 2009

AMBIÇÃO

Escutei a chuva roçando o telhado à noite e despertei para o mato curvo, ostentando grossas gotas em suas pontas. Há tempos perguntei-me, em uma poesia, porque os garimpeiros saíam a revolver as serras, engrunar-se na terra, se o orvalho brilha como diamante à luz matinal. E é! Vero como luz, como pedras preciosas, pérolas, peças lapidadas por mãos invisíveis, diáfanas. Nós, humanos, somos seres ambiciosos e não vejo muito de demais neste fato. Pode ser em parte por isso que conseguimos sobreviver, continuar no tempo, enquanto outras espécies são agora memórias fosseis nas pedras silurianas, devonianas ou cambrianas. Quiçá nossa ambição tenha feito com que o presente seja repleto de confortos (às vezes excessivos). Digito e a letra brinca de existir na tela, impressionando meus olhos, impressionando-me a tecnologia. Ambição.
Ambiciono crescer ou ter em mais o que agora em menos sou ou tenho. Isso faz parte em parte do dom de ser gente humana e olhar os horizontes não como paredes, não como limites. Somos também o dom de ambicionar ir além.
Ambiciono o dom de estar presente em cada momento e comunicar-me com as situações, fatos, pessoas e coisas em assiduidade total. Ambiciono ter o olhar que penetre além de fótons, que alcance almas em diálogos. Ambiciono penetrar percucientemente o encontro de tal modo que um e um, mais que dois, sejam esse um que é o normal da verdade de que não há separatividade no final das contas existenciais. Ambiciono que esta seja uma trilha habitual onde não aconteça a habituação mecanizadora das relações. Ambiciono viver. Diria: Viver pleno, mas isto é redundância.
E que este ambicionar esteja revestido da lição que me deu o garimpeiro quando me disse que ao ir para a lavra cumpre querer, desejar, porém, sem querer ou desejar. Sabedoria daquela gente zen que lavra a si nas buscas mosteiriticas diuturnas, sabedoria de trapenses secularmente dedicados ao som do silêncio, sabedoria de um sujeito eiro e vezeiro nas trilhas ermas das serras deslavadas desta Chapada Diamantina. Ambiciono, portanto, não ambicionar. Ambicionando.
Quem sabe um dia possa ser eu um mestre da ambição. Tanto que dela não me sirva senão daquela forma negativa.
Diz uma história que Sidarta Gautama, o Buda, estando a meditar, dormiu. Ao despertar aborreceu-se porque dormindo perdeu a atenção. Deixou de estar com o ser posto no ato. Olvidou o existir. Claro que a história é falsa, porque sendo iluminado o Buda, não aborreceria de si. Não teria essa sisudez insensata. Mas a história não pretende ser a verdade e sim contá-la na mentira, que este é o dom das lendas. Sabemos. Ambiciono aquela atenção de Sidarta, mesmo que em mim algo me aquilata como muito menos que Buda, muito distante daquela competência plácida desta gente que soube visitar aquele lugar onde as fronteiras deixam de fazer sentido.
Perdido é o estado de todos nós quando desatencionamos de nós e do todo e este é o estado comum, lugar comum. Mas como me disse o garimpeiro, atento, sem atenção. Ou dito de outra maneira (como já em outro lugar coloquei) sem tensão.
A chuva brincou no dia de hoje com não apenas telhados ou folhas, colou-se dócil e fácil ao solo plástico e os caminhos ficaram uma coisa enquiabada. Às vezes olho os caminhos e sinto paz. É como se nada mais houvesse a ambicionar. A ambição que é a vida – que todo vivo quer viver – jaz em silêncio, enquanto o olhar descortina a paisagem luminosa, ainda que a noite chegue.
Em 18/11/09, Aureo Augusto.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 13

Tenho estado sumamente atarefado aqui nesse bucólico lugar, que a maior parte das pessoas acha que é o lugar do repouso e da tranquilidade. Na verdade é, para quem não mora aqui. Mesmo assim, cheio de afazeres, tenho a grata satisfação de poder, no caminho de casa deliciar-me com a paisagem, tomar banho de rio, conversar com meus vizinhos... Bem, hoje não é dia de Medicina no blog, mas estarei viajando amanhã, até o final de semana, por isso coloco o texto deste período, desta vez comento a longevidade de um artista que gosto muito, o velho Hokusai:
HOKUSAI E A VELHICE
Paul Johnson (in Os Criadores) transcreve uma carta do célebre artista japonês do século XIX, Hokusai Katsushika:
“Desenho formas e objetos desde os seis anos... Aos 50, havia produzido um número infinito de desenhos. Mas não estou satisfeito com o que fiz antes dos 70... aos 73 comecei a entender a verdadeira forma da natureza dos pássaros, peixes e plantas. Aos 80 havia progredido muito. Aos 90 começarei a chegar à raiz de tudo. Aos 100, terei chegado a um estado superior de arte... aos 110, cada ponto e linha terão vida”.
Hokusai nos informa do que é envelhecer, uma vez que viver é arte, como o é a pintura. Vimos em uma crônica anterior que Turner não se preocupava muito com a conservação de seus trabalhos, o que os fez se deteriorar rapidamente. Isomorficamente, ou seja, da mesma maneira, tratamos o nosso corpo, a nossa vida. Freqüentemente olvidamos o futuro e esquecemos de comer, dormir, rir, pensar, não pensar, sentir e nos exercitar satisfatoriamente. Hokusai conseguiu chegar à idade em que alcançaria a raiz de tudo, pois morreu aos 99 anos de idade. Sua vida foi bastante sofrida, mas uma combinação de genética, dedicação ao que gostava de fazer, alguma excentricidade, forte desejo de aprender coisas novas, atividade etc. deram-lhe uma velhice admirável.
Hokusai nos leva a pensar que em muito somos o que de nós fazemos. Conheço pessoas que têm excelente genética, porém a desperdiça. Já outros, não tão abençoados pelo conjunto de genes que herdaram, usam o que têm com primor e, portanto, alcançam uma vida mais longa e prazenteira do que se esperaria para eles. Costumo pensar que as pessoas são como as portas. Se estas são feitas de jacarandá, tendem a durar muito, mesmo que não tão bem tratadas. Quando construídas com uma madeira menos forte, como o pinho, não necessariamente se deteriorarão rapidamente. O diferencial é o cuidado.
Agradeço aos cientistas que nos informam do valor dos nutrientes para o nosso presente e futuro, bem como àqueles que ensinam que devemos nos exercitar tanto para manter o funcionamento presente quanto para o próximo momento. Estão certos e não podem ser esquecidos. Mas aqui quero aproveitar o exemplo do mestre japonês para trazer outros aspectos.
Sua arte foi produto da capacidade de aprender a técnica ocidental combinando-a com as tradições de seu país. Ele não teve preconceito quanto a progresso e tecnologia, usando-os a favor de seus objetivos artísticos. Além disso, subordinava muito de sua produção ao mercado, isto é, costumava produzir aquilo que as pessoas naquele momento queriam (ou o que o governo permitia, nos muitos momentos em que viveu sob regimes controladores), sem, contudo, deixar de imprimir sua marca pessoal ao que fazia e, o principal, queria qualidade, e ele era o principal motor de sua excelência. Mas do que qualquer outra pessoa buscava fazer o melhor. Não como uma neurose e sim como um prazer. Avaliava um trabalho com os olhos complacentes de quem sabe que poderia fazer melhor, mas apenas depois de haver feito aquele trabalho. O que fazemos hoje, da forma como sabemos fazer agora é o que nos prepara para no futuro construir coisas melhores. É esta compreensão que nos dá uma sensação de paz. Nos confere um relaxamento no produzir e o torna uma forma de epicurismo que é a fruição da existência. E já que menciono esta filosofia fecho com as palavras de Epicuro:
“Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade”.
O velho Hokusai não se preocupava com a morte.
Escrito em 25/7/06.
Recebam um abraço carinhoso de Aureo Augusto

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 12

TURNER E A AUTOPOIESE
Já comentei em outro momento da beleza e fragilidade das pinturas de Turner, o extraordinário pintor inglês que lidava menos com tintas do que com luz. Hoje quero, ainda usando o mesmo pintor, comentar a capacidade de regeneração do nosso corpo.
As pinturas não têm a capacidade de se regenerar, ou se defender. Turner desconhecia o poder do mofo sobre os quadros e existem registros de que em seu ateliê, o bolor grassava sobre as tintas e mesmo sobre os quadros. Aqueles que ele mais gostava, guardava-os em um porão escuro, ambiente ideal para o desenvolvimento de fungos. E os objetos não tinham e não têm nenhuma defesa contra as intempéries. É por isso que adoro usar madeiras retorcidas e atacadas pelos elementos para construir objetos, molduras e mesmo quadros. As madeiras, uma vez que deixam de ser parte de um organismo vivo tornam-se inertes, incapazes de reagir à ação dos elementos, ficando repletas de buracos e distorções quase sempre muito bonitas. As máquinas tampouco reagem. Elas não se adaptam ao mundo, não dialogam com o Universo.
Uma vez viajava pelo deserto de Atacama e tomei uma estrada que ia da cidade de San Pedro de Atacama, no Chile, para Salta, na Argentina. Para alcançar meu destino teria que cruzar a cordilheira. A certa altura o carro parou porque, como me ensinaram os nativos, ‘apunou’. Ele não se adaptou ao ar rarefeito acima de 2500m. No entanto meu organismo não apunou. O ser humano inventará um sistema em que sensores captem as alterações do ar para que carros não apunem, porém sempre será uma externalidade. O meu corpo adapta-se intrinsecamente, uma máquina não se adapta, ela é adaptada, ou preparada a se adaptar por um ser humano, ou seja, um elemento externo à máquina. Se uma máquina for atacada por fungos, seu destino é embolorar, sem resistência, até perder a capacidade de funcionar. Já o ser humano funciona de maneira diferente. Há nele um sistema intrínseco de defesa, que analisa o que o mundo lhe oferece, interage, decide como atuar e reage. Trata-se do conjunto formado pelos sistemas imunológico, nervoso e glandular, que está sujeito a falhas, apesar de sua perfeição, mas que 24 horas por dia nos protege. Outrossim, ao contrário das máquinas, estamos em permanente interação construtiva com o ambiente. Crescemos, trocamos elementos, e, quando feridos, o corpo por si só inicia um processo de recuperação, reconstruindo as partes perdidas, dependendo de sua extensão. O corpo se cria a si mesmo todo o tempo, e isso é autopoiese, palavra que, tão técnica que é, tem a mesma raiz de poesia. Hipócrates, chamado pai da Medicina, dizia, cerca de 400 anos antes de Jesus nascer, que se abrirmos com machados uma clareira no meio do bosque, este por si só se recompõe, desde que o deixemos por conta própria. Para ele, havia algo, a Fisis (natureza), uma espécie de energia que recompunha os organismos. E na verdade, vemos isso na mata. As plantações abandonadas logo são tomadas pelo bosque. Aristóteles chamou a isso de Enteléquia (ou aquilo que se cria a si mesmo). Reconheciam na floresta um super organismo, e em nosso corpo um organismo, e como tal dotado dessa capacidade de, se o deixarmos em paz (ou seja parando de agredi-lo), ele se recupera por si só.
Sorte que não somos como as pinturas maravilhosas de Turner, pois, poeticamente, somos criadores de nós mesmos.
Aureo Augusto, 26/7/06.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

MUITA COISA

Algo me diz que estou com coisas demais na cabeça. Esse negócio de trabalhar em um lugar muito legal, como o PSF (posto de saúde da família), está me gerando uma quantidade de tarefas grande e de repente percebo-me algo sobrecarregado. Vejam o que aconteceu há pouco no posto:
Na reunião da equipe Neide, uma das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), me disse que há necessidade de fazer visita domiciliar a dois idosos que apresentam um quadro de hipertensão (pressão alta). Expliquei que está difícil neste momento cumprir esta deliciosa obrigação por causa da sobrecarga. Como as medicações que eles usam está para acabar, e na impossibilidade de vê-los, combinamos que desta vez apenas renovo as receitas do casal para que não parem de usar os remédios e assim que possa os visito. Isso Rozeli (ACS) me cobrou visita para outro idoso e nem deixei Marlene (ACS) cobrar minha ida a uma outra idosa acamada em sua área, pois já falei logo que ontem fui com Gleiton (o enfermeiro) ter com ela e já orientamos a família quanto ao que fazer. Então, terminada a reunião, Neide de imediato trouxe a minha sala as fichas dos dois idosos, entregou-me nas mãos e falou que só estava me esperando para seguir suas tarefas. Naquele momento estava fechando uma frase do relatório da reunião no computador. Alguns minutos depois atendi a uma senhora com uma dor na perna. Terminada a consulta saí e chamei a senhora cuja ficha Neide tinha colocado em minha mesa junto com a do marido. Então outra pessoa que estava na sala de espera me disse que ela tinha chegado primeiro até do que aquela senhora que eu havia atendido, e que ela não se importou dada a idade da mulher. Então a atendi. Quando saí chamei novamente as pessoas que apenas deveria fazer a ficha. Como todos perceberam meu erro começaram a rir, as ACS, Marilza, a enfermeira, e ao se dar conta do que acontecia, até o povo na sala de espera. Só então me contaram o que se passava. Neste momento no posto todos se esqueceram de seus achaques ou de seus trabalhos (no caso dos funcionários) e todos juntos nos pusemos a rir gostosamente. Naturalmente que ninguém reputou meu equívoco ao fato de estar com muita coisa na cabeça e sim aos meus cabelos canosos (para os mais jovens, canoso é o cabelo branco no linguajar de antigamente). O episódio pelo menos serviu para divertir às pessoas que sofrem e que vem aqui nos visitar, o que, em muita medida é também uma cura.
Mas o fato é que não posso me permitir estar fora de mim. Não é difícil ausentar-se de si, ainda mais para um tipo um muito esquizóide como eu, mas estar dentro deste corpo e aqui neste delicioso lugar é muito bom, em nenhum momento devo desperdiçar esta oportunidade.
Recebam um abração, Aureo Augusto em 12/11/09.

MEL DO BOM

Olhem que notícia legal:
No I Congresso Nordestino de Apicultura e Meliponicultura e Feira Cadeia Apícola o Vale do Capão brilhou, pois a nossa Associação Flor Nativa que congrega os produtores locais levou primeiro lugar como o MELHOR MEL DO NORDESTE. Sentiram o drama? Embora eu não seja apicultor estou cheio de orgulho com os meus vizinhos. O mel do Capão já tem o título de orgânico e sempre ganha prêmios em congressos.
Este reconhecimento é muito bom, pois quem trabalha fica feliz com isso.
Viva!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O MURO DE BERLIN E NÓS

Já contei isso em outra parte, mas é bom lembrar. Um dia estava em casa quando chegou Dozinho esbaforido. Quando o atendi me disse que estava preocupado com as notícias que a rádio estava trazendo com insistência, mas que ele não entendia nada.
- Sabe o que é Dr. Aureo? Estão falando toda hora que caiu um tal de um muro. E falam nisso demais como se fosse uma coisa muito importante. O que é esse muro?
Demorei algum tempo para entender o que se passava. Fiz algumas perguntas e de repente caiu a ficha. Exclamei:
- O muro de Berlim! Caiu o muro de Berlim!
Duro foi explicar ao meu amigo o que era este muro, e qual a importância sócio-histórica. Naquele dia, tive também que explicar a Landinha, que à época trabalhava para mim, cuidando da casa. Contei-lhe sobre a II Guerra e nazismo, e que a Alemanha fora dividida em duas, ficando uma parte sob o domínio da Rússia comunista enquanto a outra tinha sido dividida entre as potências vencedoras do ocidente. Cuidei de usar uma terminologia o mais simples possível. No dia seguinte tendo que ir à rua (a vila onde se aglomeram as casas aqui no Vale) encontrei-a, de pé na sala, assistida por uma platéia de parentes e vizinhos, explicando para todos, a Alemanha dividida e a queda do muro. Ela não percebeu minha presença e, portanto pude escutar parte da conversa. Ali descobri como surgem as lendas. Como um homem forte passa a ser Hercules ou um governante se transforma em um Deus. Como um bando de guerreiros maltrapilhos é transformado em um grupo de seres divinizados. Ela transformou o que eu tinha falado (sem faltar com a verdade) em uma outra coisa, bem mais interessante, diga-se. Adorei!
Mas o muro caiu e hoje se comemora esta data. Uma libertação! Que caiam outros muros! Principalmente, que caia o muro que construímos quando assumimos a posição de que existem culpados para os nossos males. Sim, culpados bem que existem. Porém, sempre que deixamos toda a imputabilidade pelas nossas mazelas recair sobre outrem, deixamos de assumir nossos erros e defeitos. Fugimos de nossas responsabilidades. Culpamos os comunistas, os ricos, os latifundiários, os capitalistas, os donos de empresas, os Estados Unidos, os políticos, os muçulmanos (e estes aos cristãos), os colonizadores, e, assim, não olhamos para nós mesmos. Não vemos que no dia-a-dia roubamos o tempo dos demais quando nos atrasamos para os encontros marcados, esgarçamos a trama social quando subornamos o guarda rodoviário que nos flagrou em erro, quando fazemos pequenas trapaças e roubos no supermercado, quando destratamos pessoas porque estão em condições econômicas e sociais menos favorecidas, quando nos deixamos levar pelo populismo de certos políticos, quando não votamos com responsabilidade... A lista é longa. O leitor seguramente lembra de outros itens.
A principal liberdade é, em realidade, a capacidade de assumir a responsabilidade pela própria vida.
Um abraço bem gostoso para todos,
Aureo Augusto, em 9/11/09.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 11

TURNER E A VELHICE
Tenho um livro de Michael Bockmühl sobre o pintor inglês J.M.W. Turner. O subtítulo do livro é “o mundo da luz e da cor”. E esta frase define Turner, que pode ser considerado um precursor do impressionismo, movimento artístico que resultou em obras de beleza ímpar, centradas na observação e reprodução dos jogos de luz impressionando as coisas. Como também aprecio labutar com os pincéis, levo horas bebendo a luz presente nas ilustrações do livro. Turner foi um dos pintores mais extraordinários, não só pela sua enorme produção quanto pela qualidade e liberdade desta produção. Há pouco, lendo o livro de Paul Johnson, Os Criadores, descobri que as obras do grande pintor estão se deteriorando rapidamente. O processo de envelhecimento começou desde que foram pintadas. Johnson nos informa que poucas delas ainda conservam seu brilho e frescor (dia que ‘The Temeraire’ como uma das que estão bem preservadas, o que me deu conforto ao coração já que é das minhas prediletas). Cita palavras de Ruskin, grande crítico, que comentou que Turner pintava “para deleite imediato” e que “não pensava no futuro”. E desde este momento podemos fazer um paralelo conosco e o nosso procedimento quando tratamos do corpo.
A maior parte de nós lida com o corpo como Turner lidava com a pintura, para deleite imediato. Lembro-me que certa feita fiz um quadro, uma aquarela. Cerca de cinco anos depois, de passagem pelo Rio de Janeiro, coincidiu de passar pela casa da pessoa que comprou o quadro e consternado percebi que a rósea pele do retrato agora era de uma anêmica palidez. Foi aquela experiência que me fez interessar por ter mais cuidado no uso das tintas. A partir daí procurei saber a durabilidade dos pigmentos e também a usar para aquarela papel livre de ácidos, pois estas substâncias reduzem a vida das cores com o passar do tempo. Turner não estava nem aí, como se diz hodiernamente. E, como ele, pelo prazer imediato prejudicamos o nosso futuro. É gostoso ficar se enchendo de sanduíches diante da televisão, ou, deixar-se levar pelo hábito de comer todos os dias as mesmas e restritas comidas. De cada um desses costumes vêm os males do sedentarismo (problemas cardiocirculatórios e obesidade) e deficiências nutricionais. Como resultado disso, deterioramos mais rapidamente, ou seja, somos presas fáceis de radicais livres e outros fatores de envelhecimento. Não cometer certas loucuras durante a adolescência e o início da vida adulta é também não cuidar do futuro, pois que carecemos de atitudes não alinhadas como forma de experimentar para encontrar o equilíbrio quanto ao que somos, ou seja, assim como não devemos sacrificar o futuro pelo gozo do presente, também não devemos sacrificar o presente pelo futuro. Devemos viver, todo o tempo, e não apenas sobreviver. Viver o presente (com vistas ao futuro) e não viver o futuro (perdendo de vista o presente).
A velhice não é a melhor idade. As limitações que nos são impostas pelo desgaste, fruto do tempo, não são necessariamente agradáveis. Mas, se tomamos alguns cuidados em tempo hábil, tais limitações tendem a ser menos imperativas e, assim podemos aproveitar certas vantagens que a velhice nos oferece, como a possibilidade de exercer a vida sob a ótica da experiência de quem viveu. Borges, o escritor argentino, em uma entrevista comentava que durante sua vida sempre fizera mais ou menos as mesmas coisas, lia os mesmos livros e escrevia do mesmo jeito desde que era muito jovem, porém a criança e o jovem, registrou, não sabem o que não podem fazer e o que podem. Para que alguém saiba dos próprios limites, precisa experimentar a vida. E conhecer os próprios limites é um grande dom.
Aureo Augusto, em 25/7/06.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

FINADOS E VIVOS

Josemar me contou, e Dozinho confirmou com inúmeros exemplos que antigamente aqui no Vale do Capão, em dia santo ninguém trabalhava. Dozinho contou que tal pessoa, parente de tal outra, filho de fulana, avô de cicrana, disse rindo que apesar de ser dia de São Bartolomeu ia cuidar “de eu”. Lá se foi pra roça com a enxada e nisso puxou pra si uma jararaca que lhe pôs termo à vida. Josemar, cujo pai afirmava com todas as letras não acreditar em nada dessas coisas de superstição, e que nisso segue bem trilhado o caminho do pai, logo rispostou que o cara ia ser picado de cobra naquele dia fosse o tal dia de Bartolomeu ou Sebastião, ou de ninguém. Dozinho não discutiu, nem eu. E pensei que bem que Jó tem razão. Até comentei com ele que nessas coisas tudo o que acontece valida a crença. Lembrei das mulheres que antigamente após o parto ficavam de resguardo e o tal podia durar um mês, a mulher na cama. Pelo demasiado tempo de imobilidade, podia desenvolver um coágulo nas veias da parte posterior do joelho (trombo), o qual assim que levantasse se deslocava e entupindo alguma artéria no coração, pulmão, cérebro ou outro órgão de importância, dando o maior problema. Mas aí, quem ia dizer que a culpa era do excesso de resguardo? Todo mundo logo dizia que foi porque demorou pouco.
Isso conversávamos porque era dia de finados e o Capão cheio de gente em visita, muito trabalho para a gente daqui. Claro que o povo foi visitar seus mortos, deixar-lhes flores, ajeitar aqui e ali uma cruz ou tampa que se abalou com a chuva recente e forte... Mas as visitas não puderam ser daquelas demoradas. É que embora mereçam consideração os defuntos, os vivos carecem de satisfação das suas necessidades. O trabalho esperava a todos e foi satisfeito, bem como os bolsos no final do mês.
O mesmo Josemar, juntamente com seu filho, faz um trabalho que é deveras lindo e em alguma medida tem a ver com a morte. Eles vão ao rio e recolhem os paus de enchente (as madeiras que o rio traz quando cresce muito) e escava velhos troncos há muito enterrados na areia e no lodo. Com esta madeira (canjerana, pau d’arco, louro do bom, jacarandá etc.) que ficou dezenas de anos sob a água, em parte corroída pelo intemperismo, eles fazem móveis muito bonitos, rústicos e cuidados, que eu (e muitos visitantes) admiro. É um trabalho árduo e dele resulta que aqueles troncos mortos adquirem uma nova vida. Ontem mesmo fui ver suas últimas produções e estou de namoro com um sofazinho lindo de ver que gostaria que todo mundo visse (alguém vai dizer pra eu botar aqui no blog uma foto; meu sobrinho, Thiago, já me explicou como – pergunte seu eu aprendi). Acho que vou ter aquele sofá em minha casa...
Também gosto de trabalhar material que aparenta não servir para nada. Gosto de transformar o feio ou estragado em algo que cause prazer estético ou que represente utilidade. Uma vez olhando uma moldura que havia feito para um quadro pensava comigo que a madeira que usei poderia estar no lixo, ou em algum fogão, mas que limpando ali, lixando acolá, pintando, adaptando, o fato foi que ficou uma coisa bem bonita. Enquanto reconhecia a beleza pensava em quanto dos meus defeitos eu havia transformado em coisa boa ou bela. Tive doença incômoda que me fez trilhar caminhos de saúde que acabaram por colaborar com muitas pessoas; minha irascibilidade é uma agressiva forma de produzir muito, para o bem; minhas enormes procrastinação e preguiça são instrumentos de criação de coisas bem legais quando as uso com sabedoria. Sou um pedaço de madeira bem corroído e esbodegado, mas bem que consegui transformar tais coisas em alguma arte. Gosto de pensar-me assim. Infelizmente sou lento no proceder, poderia ter a obra de arte que é minha vida bem mais, digamos, pronta, mas enfim, até agora até que as coisas estão se saindo bem legais!
Sem mais e com um abraço, Aureo Augusto.
PS: Agora me digam se não é uma maravilha ter vizinhos como os meus: Abri a porta e tropecei em uma caixa com tomates cultivados organicamente. Lindos de deliciosos. Não sei quem os trouxe. Mas sou grato.