sábado, 30 de janeiro de 2010

UMA MORTE NA MADRUGADA

Admirei-me do tamanho da lua sobre a serra do Candombá. Era uma bola gigante apoiando-se na orla entre o azul de poucas nuvens e o verde escuro da terra acidentada. Cinco da matina e eu cheguei à casa de uma pessoa muito sofrida. Poderia ser mais uma das muitas vezes em que a atendi. A senhora vinha de um longo padecimento e de muito desejo de morrer. Morreu.
Após constatar o falecimento comentei com o seu esposo que ela finalmente repousara. O seu filho, um rapaz magro e de modos nervosos, porém delicados, contou-me da labuta dos últimos dias, em que ela, muito fraca, recusava alimentos e quando os ingeria vomitava. Comentou de suas últimas respirações. O jovem fora dedicado à mãe. “Honrarás pai e mãe” diz o livro; este aí lhe será dada a palma pela dedicação. Fez o possível por ela. Sofreu com ela. Convidou sua esposa a auxilia-lo e ela não faltou. Olhei-o, a barba por fazer aos poucos se empapando das grossas lágrimas que escorriam pelo rosto.
A lua gigante escondeu-se e voltei para casa pensando na senhora. Ela, desde que me lembro, teve a vida como um fardo. Não gostava de viver. Até onde me vai a memória a dor, a repreensão, a queixa lhe eram mais companheiras do que o marido. Este, um homem pouco sutil, com um discurso acentuadamente religioso, mas que, tenho certeza, seus companheiros de fé reprovariam a conduta se o vissem dentro do lar e seus modos para com a mulher sofrentemente sofredora. Um dia ela amou um homem, dizem que se perdeu com ele. Gosto deste uso da palavra: perdeu-se com ele. É verdade que a paixão nos faz uma perda. Perdemo-nos de nós mesmos. Afogamo-nos no outro, ou melhor, no que no outro vemos ou sentimos como nós mesmos. Toda paixão tem uma algo narcísico. Porém a perdição mencionada na frase tem que ver com a idéia, convenhamos, falsa e até esdrúxula, de que rompendo-se o hímen, a mulher perde o direito a uma convivência social normal. Bom que esta sina perdeu valor na hodiernidade. Mas realidade foi que aquele que ela amou, perdeu o gosto por ela e após algum tempo se afastaram, não por desejo dela. Será que só a partir daí tornou-se amarga? Será que já o era e o moço percebeu que sua vida seria um sempre carrega-la inutilmente para a vida? Talvez você já tenha visto pessoas que menos vivem do que são mantidas na vida por outras pessoas, ou pela situação em que se encontram. É um custo para aqueles que estão ao redor sustenta-las. Pode ser que o rapaz tenha se desencantado. No início estas pessoas sofridas e sofredoras atraem porque se colam no nosso desejo de ajudar (no lado positivo) ou no reforço de nosso sentimento de onipotência. Mas logo vemos que o sorriso belo e oraliforme é ocorrência de um momento inicial. Logo os problemas (supostos no geral) e as dores (mais psíquicas do que físicas), a vitimização, ganham da paixão e do amor. O fato é que tempos depois ele encontrou outra mulher, esta bem alegre e com ela está até hoje. Aquel’outra que fora abandonada dedicou um ódio à nova amada, como se ela o houvesse arrancado dela. Quando a história me foi contada imaginei que havia ocorrido traição. Mas não foi assim. Tempo havia transcorrido até o novo amor se instalar no coração do sujeito. Há pouco tempo, a senhora que agora estava na cama, pálida e morta, procurara sua (suposta) rival para pedir perdão pelo ódio tanto tempo alimentado...
Aí a vida seguiu seu curso de sempre ter motivos para aborrecimento. Com a chegada das enfermidades confirmou-se o destino ao sofrimento. Para piora, apenas um filho dela cuidou com denodo. Sempre presente e, registre-se, criticado por toda a família por sua insistência em levar a mãe ao médico, a outro médico, ao hospital e por aí vai. O único na casa ao qual se pode avalizar as lágrimas.
Enquanto conduzia o carro pelos inúmeros buracos da estrada de cascalho aquela enorme mariposa voou à frente do pára-brisa, indo na mesma direção que eu. Sorri para ela como sempre o faço e ela desviou-se para seus próprios caminhos. Volto para casa olhando a luz do sol que ainda não nasceu, mas se anuncia.
Em 30/1/10, um abração, Aureo Augusto.

2 comentários:

  1. Prezado, Dr. Áureo.

    Que texto pungente. Cheguei a sentir as lágrimas qdo vc descreve a emoção do filho dela e o sofrimento que ela agarrou com unhas e dentes, até concluir o seu processo, aqui na Terra.

    É muito triste optar em viver assim.

    Como a sua viência é rica aí no Capão. E somente o senhor, com tanta sensibilidade e peito aberto, para captar tantas nuances, muitas vezes despercebidas. A sua alma tem olhos bem abertos.

    Eu fiz uma oração por esta senhora que desencarnou. Esperou, de coração, que ela possa olhar a vida com mais doçura, mesmo sendo a vida espiritual.

    Que Deus lhe abençoe e continue escrevendo.

    E parabens pelo texto.

    Um abraço,

    Jussiara

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  2. Fico imaginando o que aconteceu com esta senhora, qdo despertou "no outro lado". Ocorre-me que terá uma panorâmica de todos os equívocos e isso não deve ser fácil. Porém penso que será mais difícil para o marido dela, qdo ele tiver a oportunidade de avaliar a própria vida depois que sair dela.
    Como se sempre fico mto grato pelos seus comentários.
    Receba um abraço

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