sábado, 6 de março de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO

DE ONTEM E DE HOJE
O finado Cavalcante, homem dotado de variegado conhecimento, me disse que antigamente uma viagem de Salvador a Palmeiras (no centro exato da Bahia) demorava dias e dias. Havia que pegar um vapor até Cachoeira, nas margens do Paraguaçu e daí sair a cavalo no rumo de Itaberaba antes de imbicar para o destino final.
Como seria aquele tempo? Pergunto-me. Tudo era tão demorado, difícil até. Inda mais quando comparo com a mesma viagem nos tempos de hoje, que demora entre 5 a 7 horas de automóvel, apesar do estado da estrada. Os idosos aqui do Capão, apesar das preocupações que sentem com certas “modernidades”, acham o mundo de hoje bem melhor. Pelo menos é o que transparecem quando gabam a aposentadoria, outrora inexistente, o preço das roupas na feira, a eletricidade em casa, a televisão, a facilidade de transporte que torna menos distante o hospital, o banco, a repartição pública.
Quando vou fazer um parto, sempre fico conversando com as “comadres” e escuto histórias do passado, algumas escabrosas. Conversando, uma delas futuca a outra e diz:
- Lembra do parto de Maria de Zezinho, filha de Iaiá?
E começam a contar intrincados detalhes de um parto pavoroso no qual a mulher teve que ser pendurada por cordas ao telhado, e a criança nasceu tão mal que foi preciso muito tempo de bater panela no ouvido para que finalmente desse o ar da vida. Sei que as histórias costumam crescer com o tempo, são como crianças que se esticam com o passar dos anos e de repente nos surpreendem, adolescentes, maiores do que nós, que as criamos. Também uma peculiaridade das histórias, peculiaridade essa que não é freqüente nas crianças, é que com o tempo tornam-se mais terríveis. Mas mesmo com esse crescer em tamanho e intensidade, dá pra perceber que a coisa antigamente muitas vezes ia por caminhos de muita dor e desespero, quando não se sabia o que fazer sem dispor de meios de, por exemplo, deslocar-se com alguma facilidade para outro lugar com mais condições.
Escutando notícias de alguns dos partos complicados de antigamente (e é claro que sei que a infinita maioria dos partos era ótima, pois desde a faculdade que sei que o parto acontece, no dizer gozador dos estudantes, com, sem e apesar do médico), lembro-me de Stanislav Grof, que, entre outros, estudou a relação entre a forma como acontece o parto e determinados processos psíquicos. Numerosas condutas neuróticas originam-se, ou melhor, fixam-se naquele momento de um nascimento distócico, ou dito de outro modo, complicado. Escutando a fala das comadres na descrição dos partos complicados, com um ouvido ‘grofiano’ fico imaginando a bagaceira psíquica que ali se instalou. Pode ser que isso explique, pelo menos em parte – já que nada explica tudo por completo – alguns hábitos de certas pessoas por esse mundo que é o Vale do Capão. A par de alguns hábitos sadios como o parto de cócoras, que dispõe a mulher em uma posição mais favorecedora do nascimento da criança, encontramos outras atitudes explicáveis, mas, para dizer o mínimo, desagradáveis, como a mania de algumas parteiras de colocar temperos e até pimenta na xoxota da mulher cujo parto se demorasse. A irritação da parede vaginal estimula a contratilidade uterina, porém existem outras formas mais amenas de fazer isso, como o chá de algodão via oral e em banho de assento, que também é um aprendizado que tive com as pessoas do povo. Por sorte, ou porque o tempo passa e com esse passar coisas novas e boas podem ser apreendidas, hoje já não se fazem mais certas coisas como temperar a parturiente. Também observei que o desconhecimento das fases do parto pode levar a problemas. Por exemplo, não adianta dizer à mulher para botar força se ainda não chegamos ao período expulsivo, nome que se dá à fase do parto quando já ocorreu a dilatação completa, ou seja, quando “as portas” do útero já estão completamente abertas e podem ser franquedas para que ocorra o nascimento. Conhecer o que se faz é muito legal. Muitas parteiras são intuitivas e com essa intuição conseguem muito. No entanto, mais conseguem quando unem a essa intuição o conhecimento. Nós médicos, outrossim, devemos observar os cuidados que essas mulheres dedicam às demais, porque com elas temos muito a aprender (como o chá de folha de algodão para citar apenas um exemplo).
E o fato é que os tempos de hoje são distintos dos de antes e concordo com os idosos quando dizem que, apesar de certas “modernagens” danosas e mesmo perniciosas, vivemos em um mundo melhor hoje do que antigamente. Existiam coisas belas que se perderam, assim como nasceram coisas ruinosas, mas quando nos queixamos da falta de respeito pelo trabalhador, por exemplo, isso mostra que há falta de respeito, mas também que há indignação por isso, quando antes era o padrão aceito. Longe estamos do bem comum, mas mais perto estamos do que em outros momentos da nossa história.
Não vou parar de escutar atentamente as conversas das senhoras idosas que me ajudam com os partos por aqui, tampouco descuidarei da fala dos velhos garimpeiros e agricultores. Cada vez que os ouço tenho a sensação de ler o capítulo de uma enciclopédia, tanto quanto ao que devo fazer quanto ao que não devo imitar. Quanto mais os escuto procuro introduzir em minha vida determinados valores dos quais eles são exemplos (inda) vivos. Aproveito para agradecer à vida por eu estar nesse momento, em um tempo tão interessante, sendo o veículo de suas experiências.
Um abração, Aureo Augusto.

2 comentários:

  1. Meu Deussss....Dr. Áureo.

    Acredite em mim. Hoje mesmo, eu estava visitando minha mãe e meu sobrinho, formando em Medicina, escutava atentamente a minha genitora descrever cada parto, dos 5 filhos que ela teve.

    O meu nascimento foi o Ó do borogodó. Parto caseiro, com parteira inexperiente, minha mãe primípara e foi preciso chamar o doutô para que me arrancasse de dentro de mainha, a fórceps, sem anestesia e na marra. Os outros filhos ela teve em hospital mas nunca suportou parir. Ela sempre diz que "parir é para bicho" e eu, a vítima do fórceps, assimilei estes dizeres bonitinho e marquei as minhs cesas bem eletivas, para desespero dos prós partos vaginais.

    Então eu me meti na conversa da minha mãe e fui contar do parto de uma marisquieira, lá de Cações que tb teve a sorte de ter a xoxota temperada com uma cebola imensa. E precisou ser socorrida, de canoa até Itaparica, para que retirassem o tempero malicioso de lá e sem conter a hemorragia, ela foi encaminhada, via navio, para Salvador e fez uma cesa de emergência. Era o seu primeiro filho e o médico a condenou a nunca mais parir, muito menos, parto normal. Em menos de 1 ano, ela estava novamente parindo o seu 2o filho, debaixo de uma árvore, pois a mãe dela a expulsou de casa, devido a tanta sem -vergonhice (ou seja, ser mãe solteira já duas vezes). Após este parto traumático, ela ainda teve mais 15 filhos.....

    Eu tb convivo com muito as estórias e histórias, tipo essa e procuro aprender cada vez mais. Certamente os tempos modernos são melhores em muitos aspectos e os tempos dos antigamente, também teve as benesses.

    Adoro os seus posts. Continue escrevendo. Este, ainda estou dando gargalhadas......

    abraços,

    Jussiara

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  2. Jussiara querida,
    vc é uma incentivadora e tto!
    Essa onda de temperar a mulher é mto pirada.
    Acho que vc deveria criar um blog.
    Um abração

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