quarta-feira, 30 de junho de 2010

DIMINUIR E CRESCER

Etevaldo era uma figura. Alto e forte, um verdadeiro trator quando trabalhava. Também era muito tímido e eu me aproveitava disso para gozar a cara dele. Uma vez ele e Ditinha, sua esposa, foram visitar-me, mas ela caiu na asneira de dizer que haviam se atrasado no caminho, pois era para chegar mais cedo em minha casa. Logo comecei a dizer que se atrasaram porque a cada moita que encontravam paravam para namorar. Etevaldo ria rubro para si mesmo, enquanto Ditinha dizia que eu era muito do sem vergonha de dizer aquelas coisas. Ontem encontrei-a no velório de Nézinho. Aí descobri que eram irmãos, Etevaldo e Nézinho. Eram muito diferentes um do outro, física e psiquicamente. Nézinho era baixinho e muito mais conversador; ademais era muito divertido no seu jeito de falar, enquanto Etevaldo, se precisasse falar, ainda assim não falava. Etevaldo estava recolhendo lenha quando foi picado por uma cabeça de capanga (uma cobra). O jeito dele jamais o faria sair correndo. Etevaldo não era de sair correndo; não por coragem (que não lhe faltava), mas por um certo jeito paquidérmico, conquanto fosse enxuto de corpo. Portanto, terminou de colher a lenha e depois foi buscar socorro. Como conseqüência desta lentidão, ficou com seqüelas e desenvolveu hipertensão a qual o levou à morte mais cedo do que prometia o corpo são.
Agora vai Nézinho. Este não gostava muito de médico, melhor: Não gostava nada de médico. Não o critico por isso, mas ele não ia nem quando necessitava. Quando fizemos a campanha contra a hipertensão no Capão convenci-o a vir assistir a uma palestra e a uma consulta. Miraculosamente veio e me disse que tinha gostado muito. Falou pra mim: “Você deve jogar o laço no boi, pode ser que você não pega ele, mas se não jogar aí é que não pega mesmo”. Assim me dizia que aprendeu um bocado, mas que nem tudo era do entendimento dele. Rimos um bocado naquela consulta, mas nunca mais botou o pé no posto. Era o seu jeito!
Padecia de dor e ardor em epigástrio desde muito. A mulher lhe dizia para ir ao médico, para vir ao posto, nunca nem pensou nisso. Quando finalmente a coisa ficou feia, já era câncer de estômago e teve a sorte de morrer rápido. D. Heleninha, sua esposa, é bem mirrada, mas já passou por muitos sofrimentos, como, aliás, todo o povo mais velho do Capão, pois os tempos antigos não eram nada fáceis. Por causa do tanto de labuta, luta e dor que já experimentou, era como um caniço na tempestade: curvava, mas não quebrava. Já dois de seus filhos estavam quebrados. Conversei com Ditinha justo em um momento de tranqüilidade entre os atendimentos daqueles que sofriam com maior manifestação somática. Depois fui pra casa assuntando o escuro das árvores agitando-se ao vento muito frio. Já hoje, há minutos uma das filhas do morto desmaiou após o sepultamento e foi atendida no posto onde trabalho. Um irmão cuidava dela. Não pude deixar de notar as formas distintas pelas quais nós, os seres humanos, reagimos ao que o mundo nos traz. Uma filha desmaia, enquanto outra a sustenta. Um filho tem dores no peito, enquanto o outro o ajuda a caminhar. Claro que aquele que mais sofre pode ser mais ligado ao pai do que o mais tranqüilo, mas não é o caso sempre. Como não o foi aqui. Há muita variedade de gente neste mundo e cada um que vai reduz a variedade, cada um que nasce aumenta. E nesse diminuir e crescer o mundo segue...

E mudando num sopetão de um assunto pra outro: O Vale do Capão é um lugar bom demais para as artes. O povo tem a poesia na veia, é impressionante. Vai daí que chegou o circo e gente daqui tanto fez que virou professor na escola do circo e por aí vai. Uma jovem daqui do Capão, Ecatherine da Silva Santos, 21anos, ficou em segundo lugar no concurso Rio Orient Fast de dança do ventre categoria profissional agora em 26 de junho. No ano passado já ficou em 1o lugar amador no Salvador Orient Fast. A menina é muito boa, vocês têm que ver ela dançando!
Recebam um abraço,
Aureo Augusto

sexta-feira, 25 de junho de 2010

UM ANO!

Pessoal,
Desprevenido fui apanhado e o tempo já passou. Um ano em que este blog está funcionando. Há um ano estou nessa onda de blog. Quem me avisou foi meu sobrinho, Thiago, quem, aliás, me ajudou a bota-lo pra funcionar. Deveria ter preparado algo especial, mas de especial mesmo, só a minha gratidão a vocês que estiveram aqui, me visitando. Um abraço bem carinhoso,
Aureo Augusto

sábado, 19 de junho de 2010

JOGO DE INVENTAR REGRAS

Como todos os moradores do Vale do Capão, fui chamado a uma reunião com a Defensoria Pública, o IBAMA, um representante da prefeitura de Palmeiras etc. Cheguei ao local, e fui informado que haveria um pequeno atraso no início do encontro, por isso resolvi brincar de bola com alguns meninos. Entrei em um jogo repleto de regras. Era um gol somente, com um goleiro e 4 na linha; o goleiro lançava a bola, o primeiro que pegasse podia tocar quantas vezes quisesse na bola, os demais podiam tocar apenas uma vez. Uma vez que todos tocavam podia ser chutada a gol. Se o goleiro deixasse entrar três bolas estava mofado. Para ‘desmofar’ tinha que pegar uma das bolas. Se um jogador chutasse em gol, mas a bola fosse pra fora ele iria para o gol, da mesma forma que ocorria quando o goleiro pegava o chute. Mas se fosse de cabeça e não entrasse não precisava ir pro arco. Estas eram apenas algumas das regras e não pude deixar de pensar que as crianças realmente gostam de regulamentação. Pode parecer que não, quando protestam no momento em que os adultos lhes negam alguma vontade. Mas a realidade é que estão ansiosas por encontrar limite. Talvez porque limites definem e elas estão aprendendo a definir-se. Nós, adultos, também, esta é a verdade. Como era de se esperar me dei mal porque esquecia com freqüência alguma regra (e às vezes me impingiam alguma nova lei que, tenho certeza, não me haviam contado) e ia castigado para o gol. Mas estava tão entretido na brincadeira que não percebi quando começou a reunião. Por isso acabei me atrasando um pouco. Felizmente começou o encontro com a leitura de um documento que já havia lido de modo que pouco perdi.
Logo no início da reunião percebi que o tema era semelhante ao que havia experimentado durante o jogo de bola uma vez que o assunto era o conjunto de leis que regem a vida em uma comunidade como a nossa, nas proximidades de uma floresta com remanescente de mata atlântica, encravada, cercada pelo Parque Nacional da Chapada Diamantina no norte, leste e oeste ficando apenas o sul liberado. Por isso somos uma APA, ou Área de Proteção Ambiental. Daí que não podemos fazer o que quisermos das terras que nos foram adjudicadas por compra ou herança. Ocorre que há alguns anos foi efetivado o PRUA, plano criado e aprovado pela câmara de vereadores com a finalidade de reger o uso da terra por aqui. Este plano nunca foi respeitado, mas agora, principalmente se consideramos que o Vale do Capão tem atraído a atenção de um número cada vez maior de pessoas, muitas delas querendo não apenas visitar, mas também se instalar aqui, no que não as critico, já que é arriscado vir por estas bandas porque é fácil não querer mais sair.
As autoridades presentes souberam apresentar o assunto com compreensão, mostrando que estavam no dilema de multar-nos a todos pelos nossos erros, em sua mor parte involuntários, ou re-adequar aquilo que no passado havia sido decidido. Por exemplo, em nossa área, qual o tamanho de terrenos que podem ser vendidos? Se muito pequenos o que será do Capão em pouco tempo? Se muito grandes, como poderia uma pessoa aqui nascida vender um pedaço de terra para implementar algum negócio que lhe facultasse a sobrevivência? Como continuar as atividades agrícolas se há um sem número de restrições impostas pela legislação. Como as crianças do jogo de bola, fomos convidados a elaborar um conjunto de regras para este jogo que é morar nesta localidade, regras estas que nos comprometeremos a seguir.
E nisso não há nada que seja estranho à nossa existência, pois viver é limitar-se. Submeter-se às leis ou à sistemática da existência é algo indiscutível. Não podemos fugir do fato de que temos que comer, dormir, exercitar-nos, relacionarmo-nos uns com os outros, respirar, cumprir determinadas solicitações da sociedade etc. Bem fazem as crianças com seus jogos/treinos que os capacitam a interagir com as limitações que o ato de existir nos impõe.
Este texto foi escrito há muito tempo, em 17/10/05, e a realidade é que o PRUA ainda não é obedecido de rigor, mas chegamos lá (assim espero).
Recebam um abraço,
Aureo Augusto

domingo, 13 de junho de 2010

GENEROSIDADE

Dinha é uma pessoa generosa. Como poucas. Precise dela e verá. Sua bondade manifesta-se clara e fácil. Já houve quem se aproveitasse disso, o que é uma pena, mas é assim mesmo, como diz o povo daqui. Uma vez alguns rapazes, vindos de uma caminhada lá do Pati, passaram na casa dela e perguntaram se havia comida. Disseram que eram moradores “das Campinas”, uma comunidade alternativa que existe no início do caminho que vai dar em Lençóis. Como ela gosta do pessoal da comunidade, deu de comer aos caminhantes. Logo saíram felizes e, como eu estava indo para os lados do sul (que é o lado da casa de Dinha), cruzei com eles assim que deixaram a casa dela, o que ela percebeu. Perguntou-me se os conhecia e neguei. Quis saber se eram residentes daquela comunidade e eu disse que não porque à época conhecia bem todos os moradores de lá. Ela se aborreceu. Mas nem por isso abandonou sua generosidade. É que esta virtude costuma se enraizar com força nas pessoas que a desenvolvem. Talvez porque além de ser uma virtude é uma alegria, já que, de certa maneira, é uma forma de amor. Os povos mais primitivos têm-na na mais alta conta. Nos ensina Etienne Samain no seu livro Moroneta Kamayurá que entre as tribos do alto Xingu os líderes são tão mais respeitados quanto mais generosos forem. Interessante comparar com os costumes celtas, onde o líder só era querido e respeitado na mesma medida. Isso, evidentemente, não implica que não tenham outras qualidades, mas esta é muito importante. Alguns psicólogos evolucionistas, ou darwinistas, consideram que a generosidade é uma estratégia de um tal gene egoísta, que nos inspira a certas atitudes com o interesse de se autopreservar. Acho essas explicações um tanto estapafúrdias porque o mero bom senso me diz que a autopreservação pura (que seria um egoísmo) jamais levaria à doação de bens, pelo contrário, trataria de acumula-los. Dinha, fosse puramente ‘autopreservadora’, não sendo ela uma pessoa monetariamente rica, veria no pedido daqueles caminhantes uma ótima oportunidade de ganhar dinheiro, que lhe fortaleceria a renda, principalmente se levarmos em conta o fato de que ela nada devia ou deve ao pessoal “das Campinas”; ainda mais se levarmos em conta que ela e sua família mourejam e muito para conseguir viver satisfatoriamente. Penso que às vezes os cientistas estão tão envolvidos com uma determinada explicação do mundo que se perdem da realidade. E nisso não são diferentes de nós, gente comum, e relativamente ignorante. Mas gosto do que comentou o biólogo Rolf Bencke em seu prefácio ao livro de Varela e Maturana, A Árvore do Conhecimento; disse que todos os seres sociais, inclusive nós, humanos, temos um impulso biológico fundamental para a cooperação e mesmo para o altruísmo. Dinha, assim me parece, corresponde com profunda leveza e tranqüilidade a este impulso.
Seguramente alguns, observando os noticiários, perguntam-se onde está este tal impulso biológico altruísta, uma vez que já estamos saturados de escutar ou ler as notícias de tantas mortes, guerras, roubos, extorsões etc. Sim, a generosidade pode não estar tão à mostra. Talvez seja porque, culturalmente aprendemos a não ter tanto interesse pelas boas notícias. Observe: Quando acontece uma situação desagradável rapidamente junta gente para ver; não é o mesmo número se acontece algo edificante. Mas isso não significa que não nos emocionemos com o bem, pelo contrário; o Brasil, tão rico em notícias lastimáveis, também é rico em gente que ajuda aos demais e de vez em quando, nos noticiários, espremidos entre as histórias terrificantes encontramos notas sobre aqueles que são como minha vizinha, Dinha. E estas notícias nos tocam o coração. Somos bem egoístas, não nego, nós os seres humanos, talvez tenhamos também um impulso biológico para o egoísmo, afinal não fosse nosso desejo de sobreviver, não viveríamos. No entanto, me parece que a generosidade é mais freqüente do que imaginamos. Precisamos apenas retirar os óculos de ver miséria e limpar os olhos com a água de ver generosidade.
Recebam um abraço de Aureo Augusto.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

FESTIVAL DE JAZZ NO CAPÃO

No último fim-de-semana tivemos aqui no Capão uma coisa maravilhosa: Um festival de Jazz! Tudo foi legal. Veio gente pra dar de pau! Teve um momento que assistia ao show (simplesmente delicioso) do Grupo Garagem e quando terminou saí com Cybele pra dar uma olhada geral. Fiquei impressionado com a quantidade de gente. Muita gente mesmo! Como eu nunca vi aqui no Vale.
E, no entanto, tudo tranqüilo. Nada de briga, ninguém muito bêbado. Tinha um ou outro cara que exagerou na bebida, mas não a ponto da inconveniência. A polícia rodoviária e a catingueira fizeram blitz na entrada do Vale, o que foi muito bom. Deram um tratamento muito bom às pessoas, não houve truculência e pegaram várias pessoas transportando drogas (inclusive crack) o que eliminou de imediato certo tipo de gente. A mera presença da polícia teve o papel de desestimular um grupo de pessoas bem desagradáveis que adoram dizer que a polícia é algo “baixo astral”, quando este grupo sim, que é baixo astral demais, com suas drogas, incluindo o álcool, o barulho e o desrespeito aos costumes locais.
O som na medida certa, nada de bate-estaca destruindo tímpanos. Banheiros químicos (olha só que chique, tive até vontade de ir lá só pra ver como era), horários sendo respeitados...
Penso que esta experiência é ótima para a população do Capão, por vários motivos. O primeiro é quanto à questão da organização. Ficou claro que com um bom planejamento, muita gente agride menos o ambiente e o modo de vida local do que pouca gente sem planejamento. As pessoas, bem informadas, evitaram espalhar lixo. Inevitavelmente houve sujeira, claro, mas nada daquela exaltação de mijo e bosta por toda parte. Nada daquele cheiro amoniacal nos cantos escuros ou menos visitados.
Também me parece muito boa a oportunidade da gente experimentar boa música. O Vale tem um padrão musical muito legal graças ao Coral do Vale, às escolas etc. Mas o bombardeamento da música barulhenta e midiática, voltada para a exploração e o incentivo de uma sexualidade adulterada (e não liberada como alguns dizem), que busca lucro fácil, está presente em toda parte. Por isso eventos como este nos ajudam a educar o ouvido e ensina-nos uma beleza também quente, menos fácil e viciante.
Uma mulher de meia-idade, nativa, conversou comigo de sua alegria porque não teve fedor de maconha. Comentou que quem quiser fumar que o faça em suas casas, não na praça, como acontece quando a polícia não está. Outras duas senhoras que encontrei na apresentação do Garagem estavam muito felizes porque tinham muito trabalho fazendo comida pra os visitantes e aproveitaram alguns minutos para deliciar-se na praça. Um jovem me disse que queria que fosse de Reggae. Mas depois disse que gostou apesar de tudo (!). Ainda bem que gostou, pois seu ouvido merece reggae, que é um ritmo muito gostoso, mas merece também samba, jazz, blues, clássicos e outros.
Para que exerçamos o livre arbítrio precisamos conhecer outras opções e não apenas o que nos martela a publicidade.
Teve trabalho para todos, alegria para todos, música para todos. Paz para todos!
Agora aguardo ansiosamente o próximo no ano que vem.
Um beijão pra todos, Aureo Augusto.