sábado, 20 de novembro de 2010

CUIDAR (SOLIDARIEDADE)

Ontem fui fazer as visitas domiciliares do posto de saúde onde trabalho. Instigado por um convite que recebi para uma fala sobre o cuidar, ao chegar em casa me vieram estes pensamentos:
Em primeiro lugar, antes de tudo, ocorre-me dizer que o principal é esquecer que nós somos seres especiais. Nós da saúde nos sentimos como uma elite. Nem vou falar no médico que é tratado como tal e, praticamente é induzido, quando estudante, a sentir-se como tal. Exemplo: há alguns anos atrás tive uma prova da consideração com que nós médicos somos agraciados, pois sendo minha conta bancária um ermo, mesmo assim o gerente do banco me procurou pra eu ter cheque especial porque, segundo ele, não se concebia um médico sem cheque especial. Mesmo mostrando meu saldo, ele não considerou. Médico é tratado como elite (seja ele proveniente ou não da elite), mas isso acaba contaminando todo o pessoal da saúde – não penso que se deva menosprezar a contribuição do pessoal da saúde à sociedade, mas aqui quero trazer os aspectos negativos desta elitização. Nós, os seres humanos, temos uma tendência muito forte a considerarmo-nos como fazendo parte de um grupo especial. Os católicos acham que as religiões são uma coisa muito boa, mas o João Paulo II disse que a que leva mesmo pro céu é o catolicismo. Já os evangélicos são taxativos: cristãos mesmo, só eles. Quer ir para o paraíso após a morte? Converta-se. Os muçulmanos não entendem um paraíso se não for ocupado pelos seguidores de Maomé. Já que falamos de religião, e seguindo o pensamento de Berthrand Russel, convém dizer que os comunistas se acham os únicos com a verdade. Outrossim, o pessoal do consenso de Washington, pelo menos antes de ver a cagada que propuseram, consideravam-se a verdade econômica sem apelação. Bem disse Hannah Arendt quando considerou que o totalitarismo é o governo da verdade. Isso mesmo, achamos que estamos certos e o passo seguinte é achar que os outros estão errados e, corolário lógico, estando eles errados e nós certos, somos melhores, ou superiores, a eles; logo depois, em nome de Deus, da História ou dos bons costumes declaramos os opositores culpados de lesa majestade, lesa religião, lesa história, heterodoxos, ortodoxos, ou de pervertidos passíveis de cadeia, hospício, gulag, paredão, campo de concentração, tortura etc. Mesmo que a nossa opinião seja verdadeira, o governo que dela sai (sendo excludente), é totalitário, injusto, e, mesmo, assassino. Dito assim parece que este tipo de coisa só acontece no mundo grande, na política internacional. Mas acontece todos os dias, no dia-a-dia, na vida cotidiana. Desconfiamos daquilo que é diferente do consenso (quando nós participamos do consenso) e detestamos o senso comum (quando dele não somos exemplo), este é o primeiro passo que pode chegar ao desejo e ao ato de eliminar aquilo que não se alinha à nossa verdade. Agora pense o pessoal da saúde, com toda a quantidade de informação que tem, horrorizado porque – uma que aconteceu comigo recentemente – a velhinha recusa-se a ir ao hospital. O quadro era grave, vi que não podia tratá-la em casa. Implorei, ou melhor, imploramos – porque toda a família estava lá comigo – para que fosse, mas ela irredutível: “Se eu tiver que morrer disso, morro em casa”. Com seus oitenta e tantos anos de vida e autoridade, ninguém a moveu. E ainda não morreu. Entendam: Temos razão em muitas coisas. O problema é que não vemos com a mesma presteza a razão do outro. Aí está o cerne do belicismo e também (e paradoxalmente) do cuidado. Não ponho aqui a questão de quem estava certo; a questão é que cada um tem as suas razões e como todos têm razão, acontecem as guerras, os guetos, as exclusões e as elites (que vão desde as famílias tradicionais até a nomenklatura da ex-URSS). A face bonitinha disso é o paternalismo travestido de bondade e compreensão, que ajuda, mas não liberta.
Cuidar do outro é cuidar com o outro. A palavra ‘com’ traz algumas implicações. Uma delas é que o cuidador não sentir-se-á superior àquele a quem dirige o cuidado. Ou seja, seu motor virtuoso será a ‘solidariedade’ no sentido posto por André de Comte-Sponville, em seu belíssimo Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Explica-nos o autor de uma forma deliciosa que esta virtude ocorre entre iguais. Você será solidário com alguém que considera como um parceiro, companheiro, enfim, um igual. Caso se considere superior, já não será solidariedade e sim generosidade. Quando uma pessoa da classe média dá um prato de comida a um mendigo está sendo generosa, porque ela se considera mais bem aquinhoada no quesito finanças (pelo menos). Mas quando esta mesma pessoa se reúne com os colegas de trabalho para um movimento por melhores salários está agindo em solidariedade com os demais. O mundo foi solidário com os mineiros chilenos, porque ninguém se sentiu superior, todos se colocaram no lugar deles, como seres humanos que todos somos, e, consequentemente passíveis de sofrer as dores do existir (não necessariamente presos em uma mina, mas partícipes das malhas da vida, que tanto nos pode trazer condições de alegria quanto de dor). É assim que devemos receber a pessoa que nos procura em um posto, hospital ou outro lugar de atenção à saúde (ou doença); ou quando, sendo Agente de Saúde ou de Endemias, chegamos à casa das pessoas a perguntar-lhe coisas, penetrar-lhe o recôndito da vida e do lar. Solidariedade.
Georg Grodeck era radical na atenção ao que a pessoa falava (leiam o instigante Estudos Psicanalíticos Sobre Psicossomática. Para ele o atendente devia respeitar absolutamente a linguagem do assim chamado paciente. Pois ali estava registrada a sua verdade e a expressão da sua vivência única. Pense: O cara diz que sente as vermes andando dentro da barriga dele. Esta é sua experiência. Você pode achar que são gases, mas ele vivencia vermes. Em que medida, gases não são vermes? E, sendo gases, e se eles forem frutos de vermes? Outro exemplo: No Chile certa vez uma mulher me disse que tinha o estômago doente. Desacostumado à linguagem local demorei a descobrir que para aquela gente estômago não é apenas um órgão específico do abdômen e sim o abdômen. Para mim o problema era intestinal, para ela intestino e estômago são uma coisa só. A verdade anatômica pode não ser a verdade cultural. Mas que importa? Importa que eu compreenda que descrições servem ao propósito de comunicar e não ao de impor verdades. Talvez devesse dizer ‘deveria’ porque nós, os depositários do pensamente científico confundimos ciência com verdade, e tomamos nossas descrições e nossas opiniões (doxa) por únicas expressões da verdade (episteme), o que é epistemologicamente falso, e, parece-me, Karl Popper já nos mostrou isso claramente em Conjecturas e Refutações, livro delicioso e imprescindível. A linguagem científica é prática e objetiva para descrever fenômenos e objetos, mas tem o grave defeito (que é sua principal qualidade) de evitar a subjetividade, como se fosse possível observação sem subjetividade. Comento isso apenas para mencionar que no quesito subjetividade a poesia ganha longe. Ou seja, existem diversas possibilidades de linguagens. Perguntar qual a falsa e qual a verdadeira é um tanto ocioso.
Nós que trabalhamos com a saúde precisamos entender (ou devo dizer compreender?) que aquela pessoa que está carecendo de apoio por encontrar-se enferma (sendo este o caso) é uma igual, na mesma medida em que somos também passíveis de padecer doença. Sofrer é condição sine qua non de existir. Sofremos a vida, sofremos as agruras e as benesses do clima, sofremos as alegrias familiares e as dores de nascer e crescer. Lembre que, como assinala Ralph Blum, sofrer é submeter-se a. Todos nós, inclusive o melhor médico do mundo, e mesmo o Ministro da Saúde (que me parece um cargo assim bem grande) está submetido às contingências de viver aqui no Planeta Terra. Portanto não somos maiores nem melhores que os demais e sim e apenas e sim e gloriosamente iguais (já que somos gente humana). E para mim esse é o primeiro passo do cuidar.
Ontem fui fazer visitas domiciliares, atributo do serviço em uma Unidade de Saúde da Família (USF). Quase todos os visitados eram idosos, com os rostos profusamente vincados por rugas e olhares tocando um passado que desconheço. Como eu, construídos de história, aquelas pessoas me tocaram da mesma maneira como lhes despertei a gratidão por nada mais fazer que cumprir a minha obrigação. Olhava para seus olhares e percebia que logo serei tal qual eles, com o rosto e alma ainda mais vincados pelo tempo. Não sou diferente e meu diploma não me fará viver mais, não me protegerá necessariamente das agruras que a idade traz ao corpo físico. Dona Marica tem uma espécie de domínio das dificuldades físicas, muito semelhante ao diálogo que estabeleceu com o clima e as condições de vida que vivenciou em um lugar duro como foi o Vale do Capão durante o quase século que viveu. A dor é assim e assado, mas ela continua catando café e fazendo a própria comida, driblando posturas dolorosas e lentidões inevitáveis, como antes organizava a vida para a época “das águas” quando a chuva forte rompia com a possibilidade de sequer sair à porta. A montanha de batatas colhidas pouco antes da estação da chuva forte, o fogo no meio da sala em um buraco no piso de barro batido. As conversas e a fumaça afastando insetos. Seus meios são os métodos que utiliza para continuar viva e feliz. Ela à despedida sincera agradeceu-me e à agente comunitária de saúde (ACS) pela visita tão grata e pelas medicações e conselhos. Em meu coração sabia que não lhe havia dado apenas e sim trocado.
Foi o velho Anísio que me ensinou a usar o mastruz com sal para as pancadas. E foi ele e Seu Artur que me mostraram na prática que a fala de Shakespeare, “há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga a nossa vã filosofia” é poesia pura e verdade. Ambos tiveram miíase no nariz em épocas distintas e testemunhei o fracasso de todas as medicações em ajudá-los. Ora, foi um benzedor que os ajudou. Logo depois da reza as larvas começaram a cair em profusão. Contado assim é forte, testemunhar foi chocante. Qual a linguagem você escolherá? Caso venha eu a ter miíase optarei pelo benzedor. Até porque o tratamento não tem efeitos colaterais. Seu Artur careceu de cataplasmas de argila para reduzir as inflamações que lhe ficaram como seqüela da miíase, enquanto o velho Anísio usou medicações “de farmácia”. Descobri no final que as diversas linguagens da nossa bela humanidade, podem (e devem) comunicar-se entre si e devo tal aprendizagem a essa gente que concedeu-me a graça de estar com ela.
Caso você saia incólume do contato com esta pessoa a quem chama de paciente, ou sua carapaça é muito dura e impenetrável, ou está dormindo tão alienadamente que perdeu a competência de conscientizar fatos interiores.
E tantas vezes aquela pessoa que está a nossa frente e solicitando o nosso socorro pode tornar-se nada mais que mais um número em uma estatística! Talvez porque estamos cansados depois de um dia de labuta, ou até porque a vida tem se revelado a nossos sentidos e pensamentos algo sem muito sentido, ocorre muitas vezes que nos pomos na condição de querer se livrar mais ou menos rápido daquele caso. Permitimo-nos não sentir. Como máquinas, orientamos poções, porções de substâncias e horários e deixamos que se vá mais uma oportunidade de sermos gente humana. Mas se o percebemos, no momento seguinte podemos olhar a pessoa e deixar que flua de nós todo este amor que podemos manifestar no conselho quanto às medicações, alimentação ou conduta... optamos por uma vida, ou seja, uma rede de relações que à máquina não é dado dispor.
O primeiro passo é permitir-se ser apenas um ser humano, despido dos diplomas e títulos cujo valor define-nos em certos ambientes, mas não em outros e muito menos naquilo que nos diz de nós mesmos a nós mesmos do que somos per si. Em seguida podemos olhar para as pessoas à altura dos olhos delas e estabelecer comunicação que será de variada profundidade (porque, como sabemos, o outro é o outro e o querer é um dever que cabe a cada um dizer se fará ou não). Uma vez isso estabelecido, podemos dizer que o processo de cura iniciou-se.
Em 20 de novembro de 2010, recebam um abraço orgânico.

sábado, 13 de novembro de 2010

TELEVISÃO NO VALE (E PÁSSAROS)!

Hoje passei por uma experiência inesperada: Fui fazer algumas imagens para a emissora de televisão que está prestes a ser inaugurada no Vale do Capão. Imagine! No Vale do Capão! Nesse fim de mundo (que prefiro chamar de princípio do mundo). O Vale é um lugar um tanto remoto; tanto é assim que a estrada chega aqui e daqui não vai pra lugar nenhum. Se você quiser seguir adiante terá que andar. Quando aqui cheguei e comentava com as pessoas que um dia este lugar seria conhecido no mundo, e que atrairia muitas pessoas, o povo ria na e da minha cara. Ninguém acreditava. O tempo passou e olha só. Até televisão vamos ter. Já temos uma rádio, devidamente regularizada, que é um sucesso enorme entre os meus vizinhos. Neste momento está parada por causa de uma pane e as pessoas se lamentam bastante por isso. E logo mais, no dia 21 de dezembro teremos a inauguração de uma televisão a ser acessada via internet. Por isso fui fazer as ditas imagens. Não é uma televisão igual às outras e por ser veiculada na net terá suas peculiaridades. As pessoas que quiserem acessar clicam sobre o programa, ou os programas e os assistem. Falas curtas sobre assuntos de interesse geral em saúde são o que vou fazer e também rapidíssimas entrevistas com os moradores. Estou todo feliz com essa nova onda aqui no Capão. Ô lugarzinho bom de viver. Aqui temos as vantagens do viver no campo, com uma paisagem inigualável, tranqüilidade, beleza, pássaros cantando, rios e cachoeiras e atividades que habitualmente não são comuns nos lugarejos camponeses (tais como circo, rádio, aulas de dança do ventre, capoeira, pilates, massagens, internet, drenagem linfática e, agora televisão). Há um ônus, não há dúvida. Embora as visitas em geral sejam de pessoas muito legais, às vezes aparecem umas pessoas que são desagradáveis. O barulho das motos também tem sido um incômodo. As drogas que estão alcançando todo o interior da Bahia, não deixaram de visitar o vale o que me causa muita tristeza. Mas agora não quero tocar nas tristezas e sim na alegria. E, além da televisão tive uma alegria gostosa ao chegar em casa. Um casal de pica-paus estava conversando animadamente com suas imagens no vidro da oficina. Lindos! Depois pensei que talvez estivessem brigando (tenho visto garrinchas, bem-te-vis e outros nestes entreveros com os seus reflexos nas janelas) e por isso tapei o vidro. Fiz isso depois que um deles começou a bicar o vidro com aquele jeito de metralhadora dos pica-paus. Junto deles, como se estivesse curioseando, um sofrê mostrava-se em toda a sua beleza. Agora, uns pássaros semelhantes ao sabiá, que o povo aqui chama de ‘miado-do-gato’ está saltando de galho em galho bem na minha frente. Cigarras fazem um estardalhaço e motocicletas anunciam a juventude em seu dorso.
Gosto desta mistura de ontem com amanhã que acontece por aqui.
Recebam um abraço de Aureo Augusto.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

DILMA E O FEMININO

Lembro-me que nos tempos do regime militar comentava-se a boca pequena (e não poderia ser de outra forma) que no tempo em que Costa e Silva ocupou o cargo de presidente imposto, sua mulher deitava e rolava na governança. Inclusive naquela época se dizia que “a diferença entre o Brasil e um trem é que o trem vai pra frente e apita e o Brasil vai de costa e silva”. O povo sempre encontra uma forma de inventar alguma piada sobre quem está no poder. Isso é uma mostra da resistência, mas também denuncia o medo de se colocar ostensivamente. É verdade que naquela época quem ostensivamente colocava-se na oposição tinha alta possibilidade de desaparecer, ser torturado e morrer. Coisas, convenhamos, desagradáveis. Mas, ainda que a mulher de Costa e Silva realmente tivesse algum papel no poder, ela não era efetivamente presidente da república. Agora temos oficial e efetivamente uma mulher como dirigente maior da Nação. O que tenho pensado é quanto ao quanto esta mulher representará verdadeiramente um caráter feminino no governo. Devo dizer que dois livros me vêem à mente quando inscrevo no papel virtual estas letras. Um deles escrito por uma mulher, O Cálice e a Espada de Rhiane Eisler, Ed. Imago, um livro de leitura obrigatória. Uma das vezes que o li tomei o cuidado de fazer comparações com outros livros de história o que me causou maior certeza do seu valor. Deveria ser livro de texto nas escolas. Acho-o essencial para conhecermos nosso tempo e os tempos passados. O outro é A Teia da Vida de Fritjof Capra, Ed. Cultrix/Amana Key, que nos remete ao futuro em termos de compreensão da vida. Penso que a leitura destes dois livros podem contribuir significativamente para que consigamos superar este momento da humanidade onde as mudanças partilham presença com o sofrimento e a incerteza. Além disso podem trazer luz sobre o papel da mulher (e consequentemente do homem) no mundo hodierno, seja no dia-a-dia, seja no governo de empresas ou nações, como é o caso de Dilma Rouseff. Há que registrar que estes comentários nada têm a ver com a qual partido a presidente esteve ou está vinculada. A presidente é de todos, inclusive daqueles que não votaram nela. Outrossim não estou aqui (e neste momento) tratando do bom ou do ruim da continuidade do governo Lula, ou da pessoa de Dilma enquanto indivíduo particular com ou sem competência para governar. Quero tratar agora da mulher no governo e de se esta mulher no governo traz uma governança feminina. Apenas como esclarecimento acrescento que caso Marina fosse eleita o artigo teria a mesma pertinência.
Temos dois exemplos marcantes de mulheres governando países em período recente. Margaret Tatcher e Golda Meyr. Sempre me pareceu que, embora mulheres, não eram distinguíveis dos homens quando de sua ação política. Ou seja, travestiram-se. Contingências do cargo e do tempo? Talvez. Penso que não teriam alcançado os postos que ocuparam se não tivessem se adaptado ao jeito masculino de fazer política. A feminilidade dessas mulheres impressionantes seguramente ficou reservada para os seus esposos, filhos e netos. Mas, repito, enquanto governantes, foram homens.
Há mais de cinco mil anos, na Eurásia encontramos civilizações que se caracterizaram por uma especial consideração pelos aspectos femininos da existência, que traçavam neste aspecto uma linha direta com os povos coletores caçadores, nos quais a mulher tem um papel bastante especial, conforme encontramos (por exemplo) no belíssimo livro de R. Leakey, A Evolução da Humanidade (Ed. Melhoramentos/Un. de Brasília). Na Sociedade Européia Primitiva as pessoas não escolhiam construir suas casas em lugares inacessíveis para proteção contra invasores e sim em recantos aprazíveis. Esta sociedade fomentava e valorizava a fertilidade, a construção de elementos que melhorassem a vida, em detrimento daquilo que a destruía, como as armas. Cidades como Çatal Huyük, na península anatólica, existiram por longos períodos sem guerras, assim assinalam os registros arqueológicos. Até que invasões de povos patriarcais (os kurgas ou kurganas) eliminaram este status quo e produziram novas sociedades com maior ou menor proeminência do elemento masculino, e com variadas formas de dominação de uns sobre os demais. Cidades como Mohenjo Daro na península indiana não tinham extremos de pobreza e de riqueza e seus habitantes contavam com sistema de eliminação de águas servidas há 9000 anos atrás. A última civilização com fortes características gilânicas (ou seja, de igualdade entre os sexos), os minóicos de Creta, nos legou cidades sem muros, um cuidado com o bem estar, expresso, por exemplo, no sistema de água para a população e uma arte totalmente desprovida de elementos guerreiros. Mas tudo isso foi substituído pelos povos patriarcais e nós, habitantes do século XXI, somos os produtos dessa radical mudança. Os nossos sistemas de pensamento têm embutidos a concepção de que a dominação de uns sobre outros é algo natural e interpretamos os fenômenos naturais e sociais como acontecimentos centrados na luta, na guerra, no confronto e na hierarquia de dominação. O filósofo grego Heráclito, filho de uma sociedade tremendamente machista – para os gregos a mulher era inferior a ponto de sugerirem que as relações homossexuais masculinas eram preferíveis às heterossexuais (veja isso n’O Banquete, de Platão) – considerava que o próprio ato de existir era fruto da luta entre os elementos da natureza. A idéia de interação dos opostos não era tão cara ou comum em uma sociedade onde a guerra era uma constante. Para os gregos a Ilíada, o livro de Homero que descreve os últimos momentos da Guerra de Tróia, era o texto onde aprendiam ética e moral, daí ser-lhes difícil compreender o mundo em termos pacíficos. O livro permanece hoje como fundante da nossa cultura, porém já começamos a, sem deixar de reconhecer-lhe o valor, criticar os princípios sobre os quais se assenta.
Nos últimos anos do século XX, principalmente no mundo Ocidental, onde é possível, graças ao pensamento democrático, a crítica, começou uma mudança deste paradigma. As percepções, técnicas, valores etc. que aprendemos têm sido questionados profundamente e iniciamos uma época difícil por trazer a insegurança do novo (e não estabelecido), porém fértil e rica em possibilidades para uma sociedade cansada (porém viciada) de injustiças. Daí, surgiram movimentos que propugnam novas relações entre as pessoas e insistem na percepção de que a diversidade é desejável, de que somos parte do meio-ambiente e também no reconhecimento da igualdade inerente a todos os seres. Neste novo paradigma não cabe avanços científicos ou econômicos sem avaliação de seu impacto social e ambiental. Nos estudos sobre ganhos de certas tecnologias há que incluir os prejuízos ambientais que a sociedade como um todo paga. A exemplo: Produzir energia com petróleo tem sido considerado mais barato do que a energia eólica ou solar (por causa do custo inicial dos equipamentos), mas não se incluía até agora nas contas o impacto da poluição decorrente do uso de combustíveis fósseis, custos estes que nós, pessoas comuns, pagamos, e pelos quais as empresas não são cobradas. Mas o principal são as relações interpessoais. Aqui não cabe dominação. E isso ainda é bem difícil para todos nós, mesmo aqueles que conscientemente querem um mundo melhor. Ainda estamos acostumados a mandar e/ou sermos mandados. Confundimos liberdade com irresponsabilidade, direitos com satisfação de desejos etc.
Dilma em sua juventude participou da luta contra as graves discrepâncias sociais. Diferentemente de personagens como Gandhi, que optaram por uma não luta contra a injustiça, ela optou por fazer parte de grupos clandestinos guerrilheiros. Àquela época eu estudava medicina e admirava a coragem destas pessoas, conquanto admirasse também a enorme coragem do Mahatma. Ainda os admiro, porque me lembro que os governos militares nos impuseram uma vida indigna e subhumana, uma vez que o ser humano existe, entre outras coisas, na medida da sua autonomia, da sua liberdade e responsabilidade. Dilma, como eu, ou como você que me lê, aprendeu que competir é mais aconselhável nas relações políticas do que cooperar. Ela alcançou o lugar que agora ocupa competindo arduamente contra outros grupos. Nesta competição, não apenas ela, mas eu e você, leitor, esquecemos que os adversários são pessoas da mesma forma que nós e que estão aprisionados no mesmo sistema de valores que nós. Os inimigos, de regra, são nossos espelhos reversos. Vejam, por exemplo, Franco e Salazar na Espanha e em Portugal e compare-os com Stálin ou Pol Pot na Rússia e no Cambodja. Os dois primeiros estabeleceram cruéis ditaduras de direita e, os dois outros, cruéis ditaduras de esquerda. Para as pessoas que sofreram perseguições, torturas, morte, perda de amigos, familiares e liberdade, qual a diferença entre esquerda e direita?
Hoje somos, enquanto espécie, muito poderosos e podemos destruir o nosso planeta. Em realidade o estamos destruindo. Movimentos pacifistas, ecológicos, eco-feministas, de economia solidária entre outros estão atuando na criação de um mundo novo. Dentre estes destaco os movimentos pelo diálogo reflexivo, franco, responsável e aberto (v. Adam Kahane, Como Resolver Problemas Complexos – Uma Forma Aberta de Falar, Escutar e Criar Novas Realidades, Ed. Senac). Os nossos governantes estão muito longe destes movimentos, ou de levar em consideração suas conclusões e propostas. Agradar-me-ia em grande medida se Dilma entendesse oposição como possível complementaridade (aliás, que a oposição também entendesse isso), percebesse que o desejável crescimento econômico só se justifica na medida em que as próximas gerações não tenham suas possibilidades de bem estar e de sobrevivência negados e, mais ainda, que educação é mais do que repetição de sílabas ou palavras preestabelecidas e sim a construção de leitores e escritores capazes, dotados de autonomia (inclusive para questionar nossos valores). Em realidade, a questão não é o sexo do governante e sim o quanto ele já compreendeu da necessidade que o mundo tem de que os seres humanos percebam-se dentro e não fora, participantes e não observadores, juntos e não contra. Mas antes de exigir algo de Dilma, devemos procurar em nós os sinais de um novo tempo. Quando queremos impor nossas idéias, mesmo que elas sejam corretas e imbuídas das melhores intenções, estamos mantendo um padrão de dominação (em muito semelhante à conduta dos colonizadores cristãos na África ou América, obrigando os moradores a usarem roupas européias porque consideravam os trajes nativos ofensivos à moral), quando insultamos àqueles que por ignorância, por preconceito, ou por qualquer outro motivo, têm propostas diferentes das nossas, estamos dando continuidade ao pensamento colonizador, dominador, elitista, onde alguns são os donos da verdade e os demais não passam de uma massa amorfa, sem nome e sem vontade, sem valor e sem rumo. Queridos amigos e amigas, a ignorância é algo conspícuo no mundo; os mais sábios, algo não sabem e os que menos conhecem algo sabem para ensinar até ao sábio. Não espero uma mudança rápida nos modos de comportamento e na filosofia de vida de nossa população, nem de nossos governantes, e, claro, nem mesmo de mim (porque, lembro, fui criado dentro de um sistema e mesmo vendo suas fragilidades filosóficas e estruturais, estou impregnado de seu modelo), mas convido a todos a que continuemos a mudar a nós mesmos no sentido de praticar democracia, e, consequentemente, tolerância.
Recebam um abraço gilânico, de Aureo Augusto

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

ELEIÇÕES 2010 NO VALE DO CAPÃO

O dia amanheceu frio e a neblina escondia as serras até bem abaixo da metade. O dia 31 de outubro de 2010 acordou com aquele silêncio que caracteriza a névoa, quebrado pouco depois pelos pássaros e crianças com seus cantos esparsos. Lembrei-me que o povo se arruma para a votação, mais ainda os mais velhos. Pensei que já estou entre os mais velhos, pois, com 57 anos, estou bem próximo dos 60 que marcam a terceira idade. Consequentemente me arrumei com uma roupa (para mim) bastante digna do evento cívico (conquanto obrigatório). Uma calça bege praticamente nova, camisa de manga comprida xadrez ostentando no bolso uma caneta tinteiro e uma lapiseira. Só não gravata porque não sou muito afeito a este adereço.

Durante o período ímpio do regime militar eu não votava. Pensava comigo que de alguma maneira estava colaborando, ou melhor, avalizando o regime se fosse escolher nas urnas os candidatos que, mesmo de oposição, eram permitidos pelo regime vigente. Porém, e, mais ainda, depois daquele belo movimento das diretas já, e também da movimentação que levou à queda de Collor de Melo, evidenciou-se que o Brasil entrou em um período de democracia. Reconheço que ainda estamos no início e que, como tal, cometemos ainda erros sérios. Mas somos, a meu ver, uma democracia bem mais robusta do que o esperado em tão pouco tempo, e disso me orgulho. Quero votar, mesmo quando os candidatos não são aquilo que sonho. Deputados e Senadores têm cometido barbaridades absurdas e sei em mim que para a maioria deles pouco importa a palavra democracia, exceto quando usada para preencher discursos hipócritas. Em que pese a dignidade de alguns, a regra para a maioria é o usufruto do cargo com olhos em ganhos pessoais. Sei que não se importariam que voltássemos a um regime militar, ou de exceção, desde que mantivessem sua ocupação. Comportam-se de modo tal que algumas pessoas, com pouca memória, até desejam um regime de força onde um homem nos salve da corrupção. Este sonho do homem forte nos remete à família patriarcal e nos faz esquecer que o patriarcado nos levou a beco terrível onde bombas atômicas, guerras, desrespeito ao meio-ambiente, homens-bomba, separação entre fato e valor, são a norma. Onde impera uma espécie de ética da força bruta.

Quero votar e o faria mesmo que não fosse obrigatório. Porque esta é uma das formas de estar presente. Estar acompanhando os atos dos eleitos é outra forma e muito importante do viver democrático; a república não existe apenas nos momentos do voto, mas também quando avaliamos aqueles que nos representam no executivo e no legislativo. Sempre há em mim uma esperança de que os eleitos correspondam à consideração que os meus vizinhos do Vale do Capão têm pelas eleições. Estas esperanças nem sempre se cumprem em realidade, porém tampouco morrem e em grande medida porque vejo como a gente do nosso país tem evoluído politicamente apesar da eleição de alguns palhaços.

Recebam um abraço democrático e aguardem um post sobre alguns pensamentos que tenho tido sobre mulheres no governo e feminismo (e ecofeminismo).

Escrito por: Aureo Augusto