sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

DOS VÁRIOS FINS DE MUNDO


O fato é que morri muitas vezes e renasci, dito melhor, reencarnei, nesta minha vida. Lembro-me de quando era jovem, um rapaz tímido tentando encontrar o próprio lugar no mundo (como se fosse fácil, e nem sempre é). Foi uma vida de percalços e dores, além do mar e das traquinagens. Até quando descobri o naturismo, fui ao Chile, vivi por lá um pouco, descobri dentro de mim uma força e uma coisa selvagem capaz de correr pelas encostas da cordilheira, rolar nas serras e saltas pelas pedras no rio Clarillo (perto de El Arrayan). O tempo passou e construí e desconstruí muitas coisas.

Aos quarenta anos, uma noite me veio uma dor abdominal extrema. Foi atroz e eu não entendo até hoje de onde veio (nem para onde foi). No dia seguinte viajei para Salvador e não conseguia entender porque as pessoas continuavam conversando comigo como se eu fosse a mesma pessoa. Não era. Havia morrido e agora reencarnara no mesmo corpo que, por sua vez, passara também por um trânsito difícil.
Esta nova encarnação foi mais plácida, e nela ocorreu aos poucos uma ascensão de uma racionalidade capaz de eclipsar em alguma medida aquilo em mim capaz de loucuras, conquanto o meu lado selvagem (e tantas vezes infantil) tenha sabido perturbar a calma de um mundo como um lago nas montanhas. 

Agora estou de volta às voltas com a morte e o mundo se acabou. Em 2012 meu mundo se acabou. Não foi de uma vez, foi aos poucos e de repente desabou, como uma ponte comida pela ferrugem e que uma brisa mais forte faz tornar-se farpas e bagaços. Caiu. As lágrimas presentes são apenas mais um elemento de corrosão. As lágrimas são como o mar, cuja maresia reforça o intemperismo dos ventos e das ondas. Por isso quando choro, nas vezes que choro, sei que o mundo está mudando mais rápido.
Agora , confesso que com um certo quê de diversão, vejo as pessoas me tratando como se eu fosse aquele mesmo de há alguns meses, apenas porque me vêm saindo para trabalhar e voltando todos os dias. Creem e enganam-se os olhos. Não sou mais o mesmo e noto em mim sensações e sentimentos que retornam de uma outra encarnação passada. Impulsos e forças, sensações para além da pele, pulsões, impressões cutâneas e corporais, como se o mundo lá, decidisse avisar-me de que está cá. Abraços e sorrisos, tudo muito dentro e profundo. Ininteligível.

Olho para o novo momento e não sei bem o que vai acontecer, coisa que não me preocupa demais a ponto de perder o sono, até porque sei que continuarei a tomar banho no rio todas as manhãs e amando atender em consultas a minha adorada gente. A única coisa que me faz falta é sabedoria. Neste instante seria muito bom se contasse com sabedoria.

Pergunto-me, como agiria um homem com 60 anos, como eu, percebendo-se recém-nascido, sentindo em todo o corpo as vibrações, a curiosidade e as interrogações de um recém-chegado sendo ele dotado de sabedoria. Como seria para ele? Esta é uma pergunta para a qual não tenho resposta.
Em 28/12/12.

sábado, 22 de dezembro de 2012

UM DIA MUITO ESTRANHO


Hoje foi um dia muito estranho! 22 de dezembro, sábado, meu desejo de ir a Salvador, comprar os presentes do natal e depois partilhar este período com meus familiares, especialmente minha mãe, uma mulher muito especial, contando agora 92 anos. A festa de natal é o momento em que nos reunimos todos e, por sermos uma família inclusiva, vizinhos, amigos, gente que nem conhecemos direito quer participar do amigo secreto como se fosse parente nato. Rimos a mais não poder, gozamos a cara um do outro, e assim nos alimentamos dessa coisa de ser família, reconhecendo os grandes defeitos, mas também saboreando a deliciosa realidade.

Saí de casa às 5h. Mais tarde do que o previsto, mas tivera que trabalhar na noite anterior, em um texto e também atendendo um jovem acidentado com moto. Ao sair dirigindo estava com o coração apertado. Normalmente quando viajo fico leve e contente. Dessa vez tinha o coração apertado e procurei justificativas para isto, tendo encontrado muitas, mas nenhuma de prova clara. Quando estava nos Campos, área logo depois da subida, na saída do Vale do Capão, tive que parar. As nuvens estavam com formas bem estranhas. Gigantescas aves, algumas desenhadas apenas como asas abertas, outras com cabeças e rabos bem delineados, feitas de nuvens se deslocavam no céu, saindo do norte e rumando para o noroeste. Eram imensas e voavam tranquilas. Em seguida, uma nuvem de cor dourada, parecendo vagamente uma ave de rapina, mergulhava sobre uma área que conhecemos como Boqueirão. Estas nuvens não se demoravam muito, tampouco se transformavam, em geral simplesmente se dissolviam, de modo que as gigantescas aves eram substituídas por outras. Depois apareceram riscos delicados (também feitos de nuvens filiformes) parecendo desenhos de montanhas, que duraram cerca de um minuto. Por fim voltaram as aves, desta vez se deslocando do oeste para o norte. Atrasei pelo menos uma hora da viagem observando este movimento nos céus.  Durante o processo lembrei-me que poderia fotografar, mas infelizmente não ficaram boas, até porque só tirei as fotos nos momentos menos marcantes. Quando tudo terminou segui viagem, com o coração menos angustiado. Tive a sensação de que as aves eram uma mensagem de caráter positivo.

Após bom tempo sem nenhuma intercorrência, comecei a ter a sensação da proximidade da morte. Foi forte. Senti-a rondando. Minha mente resolveu divagar na busca do por que desta sensação. Associei a minha mãe, afinal ela já está bem velhinha e sempre fala que só está aguardando o momento final. Meus olhos marejaram ao pensar na despedida. Pouco depois, a uns dois quilômetros da localidade de Amparo/Zuca, encontrei um acidente. Havia um grande caminhão afundado na lama ao lado da pista, como se tivesse o motorista perdido o controle. No afã de ajudar parei o carro e encontrei um homem que olhava outro que afundava na lama indo na direção da cabine do caminhão. Aliás, esta era a única parte reconhecível. Todo o resto havia se transformado em uma massa retorcida. O homem me explicou que o motorista estava dentro da cabine, mas aparentemente não estava mal. Indicou-me mais adiante um carro de passeio e informou que havia alguém preso nas ferragens. Corri preocupado. No caminho havia um homem deitado dobre o lado direito, como se dormisse placidamente. Algumas pessoas olhavam sem nada fazer, pareceram-me aparvalhadas. Um me disse para não toca-lo porque havia que esperar a polícia. Não obedeci. Mas constatei que estava morto. Os olhares me perguntavam e respondi: “Este está morto, tem algum outro?”. Havia transcorrido um ou dois minutos do acidente e havia aquele cheiro estranho de óleo, poeira e sangue. Apontaram-me o carro e corri até lá. Havia alguns homens sujos de sangue, andando a esmo (depois descobri que eram os ocupantes do veículo de passeio que não haviam sido feridos ou mortos) e outros, curiosos. Estranhei o aparvalhamento das pessoas. Estavam estranhamente calmas, como se ali nada de terrível estivesse passando. Aproximei-me do carro. Nele, todo o lado esquerdo estava arrancado; e o motorista pendia inclinado para fora do carro, em uma posição bem desconfortável. Ambos os braços mostravam sinais de múltiplas fraturas, a perna esquerda expunha-se em postas de carne sanguinolenta, o sangue escorria para o chão em gotejamento contínuo. Havia também sinais de que havia recebido forte golpe na cabeça que sangrava. O sangue também escorria pelo nariz e o homem, um sujeito enorme, bem forte e acima do peso, arfava com dificuldade enquanto agonizava.

Pedi ajuda para retira-lo do carro, mas os amigos que escaparam com vida foram bastante claros em suas afirmações de que havia que esperar o SAMU. Haviam pedido a um motorista que avisasse mais adiante. Eu não entendi nada. Disse que aquele homem estava morrendo, mas que talvez pudesse ser salvo, mas deveríamos tira-lo dali, eles recusaram ajuda. Debalde tentei afastar os restos retorcidos do carro que impediam a liberação do homem. Após cerca de quinze minutos de luta solitária chegou um motoqueiro que começou a gritar e ordenar. Conseguiu um pedaço de pau e arrombou uma das portas do lado direito do carro (que eu havia tentado abrir em vão), e tentou afastar o banco para liberar o homem. Então percebi que a morte havia cobrado sua fatura. Disse a ele que agora não adiantaria mais nada, mas ele não acreditou, continuou tentando salvar o morto. Fui saindo devagar uma mulher me interpelou: “Ele morreu?”. Respondi: “Acaba de falecer”. Ela correu para o carro, onde estavam seus familiares que não haviam ainda saltado e pegou uma máquina fotográfica e começou a registrar o acontecido, como suas primeiras fotos do passeio turístico natalino.

Achei tudo muito estranho, surreal. Conscientizei-me de que ali o ar era denso como se os movimentos fossem tolhidos por uma coisas espessa.

Ao chegar a Salvador, fui fazer as compras costumeiras, afinal meu amigo secreto espera seu presente, apesar do demais; sinto-me cansado e estranho. Amanhã acordo para outro dia.

Recebam um abraço pré-natalino surreal em 22/12/12.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

SAÚDE LOGO MAIS NO ANO NOVO

Tive a honra de ser convidado para falar na abertura do Projeto Gestar em Seabra e assim partilhei uma noite com Braulino Peixoto. Ele fez uma palestra tocante e que nos fez pensar e também fiz a minha, cujo texto aí está:

SAÚDE FUTURA
Por onde devemos começar quando pensamos na semeadura do futuro? Com certeza podemos nos perguntar como queremos este futuro. Acredito que as frases batidas e repetidas quase mecanicamente expressam o nosso real desejo: Feliz Ano Novo! Para vocês desejo feliz ano novo! Simples assim. Queremos que o próximo momento seja feliz.

Quando uma ameba entra em contato em seu ambiente com algo irritante ela daí se afasta. As raízes das árvores, no escuro úmido da terra, desenvolvem-se na direção das mais ricas fontes de nutrientes. Os cachorros e os gatos querem encher as barrigas e se deitam relaxados e... felizes, “quentando” o sol após sentirem cheios seus estômagos.
Não somos diferentes dos demais seres, nós, seres humanos, também buscamos o prazer, a felicidade, enfim, estados aprazíveis de estar no mundo. Porém, nós os seres humanos temos crenças. E, tais crenças frequentemente são para nós mais importantes do que qualquer dado inequívoco da realidade. Vai daí que subordinamos o existir a uma sequência cuidadosamente elaborada de situações complicantes capazes de afastar aquele feliz ano novo. Conto uma história recente:

A moça chegou no consultório do posto um pouco desesperada porque transou sem camisinha (foram suas palavras). Descobri com as perguntas que o rapaz era desconhecido. Ela estava carente (disse). Só pra saber, pois sou um tipo curioso, perguntei se havia acabado a carência, mas ela me disse que depois do ato a carência ficou esquecida, pois agora estava preocupada com outras coisas (como doenças venéreas, por exemplo). Somos seres extraordinários em nossa competência de substituir merda por bosta! Ela encontrou um bom método de não se sentir mais carente. Mas mais infeliz! Depois me contou que o mundo é complicado (também copio o que falou). Acredito, já que sou bem crédulo como podem testemunhar aqueles que me conhecem de perto.

Já fiz mais besteira em minha vida do que todas pessoas que estão na primeira fileira desta sala somadas, e vou fazer mais, por isso não critico a moça. Porém, coube a mim, naquele instante (e já que era procurado por ela para aconselhamento) tratar o fato para além de uma possível (e desagradável) doença venérea. Acontece que ela realmente não tem uma gota de amor por si. Gosto de estar com as pessoas que amo. Parece que isso faz parte de um atavismo gregarista da espécie humana e, é sobre isso que quero que conversemos hoje, dentro desta coisa de Feliz Ano Novo.
Dizia que gosto de estar perto de quem amo. Quando estou sozinho, o padrão é estar particularmente feliz. O corolário das duas afirmações é lógico:
A: gosto de estar com quem amo.
B: gosto de estar só.
C: Amo a mim mesmo (A≈B e B≈C => A≈C)
Mas esse negócio de amar é complicado, diria aquela cliente. E é mesmo. Não sei vocês, mas eu tive que labutar para olhar para o mundo com prazer. Felicidade pode ser uma falácia. Não dá para ser feliz sem olhar-se com um mínimo de carinho para si. E não adianta colocar substitutos tais como: festas e farras, dependência de amigos, trabalho, vagabundagem, riqueza, comida, pobreza, vitimização, política, poder e coisas assim. O buraco que abrimos na relação de nós conosco mesmos não será sequer minimizado por estas coisas.

Gosto de ter dinheiro dentro do bolso, pelo menos R$50,00. Andar de bolso vazio é bem chato. Também amo ir pro trabalho e ali exercer a minha competência para atividade, mas se não houver amor (Paulo aos Coríntios) a coisa não rola. Claro que não acho que podemos ser felizes sem nenhum dinheiro, com fome e frio e cheios de amor pra dar... mas se não houver amor...

Podemos criar para o futuro um mundo de obrigações, um mundo de deveres. Ou (e acho bem melhor) cuidar de que o futuro nos brinde com responsabilidades às quais respondamos – como o nome indica – com alegria e competência e poderia dizer com a competência da alegria.
Pode parecer estranho, mas este é um primeiro passo para a saúde, buscando um Feliz Ano Novo ou um futuro melhor. Por isso pensemos em cuidar de nós mesmos com carinho. Busquemos o prazer, mas tenhamos o cuidado de que o prazer que escolhemos não nos represente problemas futuros. Quando gosto muito de feijoada completa com toicinho e mocotó, pelo menos posso cuidar de não comer isso com demasiada frequência já que sei (sabemos) que não é bom para a digestão, para a circulação etc. Outrossim, façamos atividade física e mental. Há que mover o esqueleto, na dança, na roça, na caminhada, machado ou enxada. Desafiar a mente. Jogar longe de si a preguiça de não aprender coisas novas. Eliminar a rotina sem perder a disciplina... Algumas coisas há a fazer, mas sem esquecer o prazer de fazê-las. Não esquecer que cada ato é estético, ou seja, repercute em nós (e no outro).

O psicólogo Abraham Maslow estudou as pessoas felizes. É muito interessante o fato de que nós os que cuidamos da saúde estudamos muito mais a doença do que a saúde. Isso é algo parecido a apontar a pedrada para a jaca quando queremos derrubar uma manga (melhor seria usar um corrupichel!). Maslow seguiu outra direção: procurou os felizes e descobriu que esta turma consegue unir de forma satisfatória o egoísmo com o altruísmo. Ou seja, são pessoas que se comprazem em ajudar aos demais, gostam de trabalhos comunitários, estão prontos para reduzir o peso das outras pessoas, mas têm claridade quanto ao que querem da vida, do prazer a receber e não abrem mão de lutar pelo que consideram próprio.
Somos individualidades e não há mais como abrir mão disso. Mas também somos parte de um todo, somos divíduos (termo usado por Joseph Campbel). Você quer que seu ano próximo seja melhor? Você quer que seu futuro possa ser feliz? Então leve em consideração o fato de que

1.       Não há possibilidade de estar fora do mundo, à parte, algo destacado, longe. Toda atitude que tomamos repercute no mundo natural, assim como tudo aquilo que acontece lá fora nos atinge a nós, como parte deste pseudo lá fora. Nós temos uma responsabilidade com o planeta, com o Universo, com a sociedade. Os cadeados nas portas nos protegem dos ladrões, mas em quanto nós contribuímos para que aconteçam ladrões? Viver no Vale do Capão me garante ar puro, mas por quanto tempo? Quando a devastação do meio natural para satisfazer o meu egoísmo chegará à barra da minha porta? Não estamos lá, somos aqui.
2.       Somos uma equipe. Nós e aquilo que chamamos de restante de todas as coisas, na verdade somos uma equipe que funciona integradamente para que a vida siga em frente. Mas, de maneira mais limitada, aqui no mundinho de nossos trabalhos, na vida comum, somos uma equipe. Sou médico, mas não posso trabalhar sem as pessoas que secundam minha ação e vice-versa. Certa feita escutei a história de um famoso palestrante norte-americano. Ele havia sido aviador e seu avião foi abatido no Vietnã. Sofreu o pão que o diabo amassou, mas foi resgatado e a partir desta experiência passou a fazer palestras muito apreciadas sobre superação. Um dia estava em um restaurante e um sujeito veio até ele, por tê-lo reconhecido. Comentou que o admirava muito, escutava suas palestras e lia seus livros. Disse também que tinha sido seu colega em um porta-aviões da marinha dos EEUU. O palestrante perguntou-lhe o que ele fazia e o humilde interlocutor disse que ele era quem lhe dobrava o paraquedas. De repente o cara se deu conta de que aquele sujeito ali na sua frente lhe havia salvo a vida pois cuidara do seu paraquedas sem o qual morreria quando da queda do avião. Ninguém pense que pode viver só. A comida na mesa aqui chegou por conta de inúmeras mãos anônimas. Assim todas as atividades em que nos metemos.

Aqui me vem à lembrança uma frase proferida por Jesus Cristo.
Certa feita lhe perguntaram (v. Mateus XXII, 36 a 40) qual era o maior de todos os mandamentos. Ele respondeu que era Amar a Deus Sobre Todas as Coisas e completou “e o segundo, semelhante a este é Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Vejam que coisa interessante! Ele compara e equipara o amor a Deus ao amor que devemos ter pelo próximo. E reafirma que devemos amar ao próximo como a si mesmo. Não é colocar o outro acima nem abaixo, entenda-se. Em realidade só amo ao outro na medida em que sou capaz de amar a mim mesmo, senão a coisa fica meio na obrigação. Fazer o bem sem sentir alegria, é como dar um tiro no próprio pé. Penso que esta fala de Jesus é científica e isso está claro quando hoje entendemos que o mundo é um vasto ecossistema.

Pois bem, penso que este é o grande mote para o próximo ano. A Humanidade está se encaminhando para a constatação de que o individualismo enquanto degeneração da nossa consciência da individualidade perde-nos de nós mesmos. Pensando que estamos tirando o melhor proveito, na verdade estamos nos afastando do melhor que temos. Gilberto Gil dizia que “minha porção mulher que até então se resguardara é a porção melhor que trago em mim agora” e ele tem razão, mas lembremo-nos que esta porção também pode receber o nome de “o outro”. A porção melhor que trago em mim agora são vocês.
Aureo Augusto, em 13/dez/2012.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A ASSOCIAÇÃO DOS MEDÍOCRES


Às vezes é difícil trabalhar. Refiro-me a fazer aquilo que deve ser feito, mas fazer de uma forma mais completa e cuidadosa, se possível usando da criatividade para transformar o usual e corriqueiro em algo interessante e único. É delicioso para a alma, olhar as pessoas e construir caminhos onde haja interesse em fazer a vida ser vivida para além da subsistência. Porém, nós os seres humanos, graças à nossa tremenda complexidade, além de sermos tocados pelo desejo de ir além, também temos o hábito de ficar aquém. Não creio que devamos viver sempre atrás de superar obstáculos, ou crescer sempre, subir sempre, avançar sempre. Estar aqui e agora é mais do que suficiente. No entanto, aqui e agora é viver além da subsistência, uma vez que obriga-nos à atenção. Ligar-se intimamente ao existir (ou, dito de outra maneira, viver o aqui e agora) é um exercício que nos faz viver, pura e simplesmente, mas paradoxalmente, implica-nos no ato de estar além do cotidiano. Viver o aqui e agora poderia pressupor postura passiva. Longe disso, implica atividade, sem que isso obrigue à tensão psíquica, registre-se. Ou seja, viver implica ir além, do contrário apenas subsiste-se.

                Esse introito é para comentar de uma frase de um querido amigo, o filósofo Taunay Daniel. Ele comentou que os medíocres se aliam para mediocrizar tudo ao redor. E é verdade. No funcionalismo público isso é tão frequente que parece norma. Quando uma pessoa chega ao serviço, “cheia de gás”, disposta a corrigir imperfeições, alinhar condutas para maior otimização de resultados, logo encontra resistências. Quando explícitas, tais resistências podem ser contornadas, ou superadas, porém as piores são aquelas disfarçadas. O chefe fica feliz ao receber daquele funcionário uma proposta que com certeza irá superar resultados deficitários. Mas, por infelicidade, as coisas acabam não funcionando como deveriam. Em suma, por razões insuspeitas simplesmente as novas propostas não acontecem. O novo funcionário tenta, tenta mais e mais uma vez. Até que passa a acreditar que não tem jeito e adere ao padrão de bater o ponto, atender mal, deixar que se aproxime o tempo da aposentadoria.

Esta é uma história que se repete. E uma infinidade de pessoas presta concurso nos diversos ramos do serviço público com o intuito de encontrar a estabilidade sem perceber que isto é apenas a garantia da subsistência. Não garante o viver. E viver não é uma coisa só de fim-de-semana. Passamos a maior parte do nosso tempo no trabalho. 8 horas por dia, no mais das vezes. É muito tempo para imaginarmos que a vida só acontece do lado de fora das paredes do escritório, do consultório, da fábrica... Cabe a cada um transformar o labor em uma fonte de realização. Isso é fácil? Nem sempre.
Tenho a sorte de ser médico. E nessa profissão a oportunidade de realização é diária, em que pesem os numerosos momentos tensos, tristes, apesar dos fracassos, às vezes decorrentes menos da gravidade ou da insolubilidade dos casos do que das condições sócio-econômico-burocráticas. Mas não apenas a medicina nos proporciona realização.

Uma das pessoas que atendi e que me marcou profundamente foi um homem que era caixa de banco e gostava de ser caixa de banco. Veio à consulta por curiosidade da filha já que não tinha queixas, gozava de boa saúde e levamos bom tempo conversando sobre o como ele gostava de olhar no rosto as pessoas que atendia, perguntar como se sentiam e naqueles poucos minutos em que faziam um depósito ou retirada e pagavam uma conta, descobria singularidades das vidas dos demais que lhe enriqueciam o dia. O resultado disto é que a fila em seu caixa era sempre maior do que nos demais, porque as pessoas preferiam ser atendidos por ele. É dessa maneira que atuam aqueles que não são medíocres.
Está bem, você talvez deteste o seu trabalho e não necessariamente é medíocre. Porém olhe ao redor, pode ser que esteja excessivamente ligado nos aspectos negativos da existência. E pode ser que você tenha sido vítima do sistema de mediocrização:

Os infelizes que chafurdam na agonia de uma vida sem perspectivas além da mais rasteira subsistência, um sem número de vezes atuam no sentido de atrapalhar àqueles que cultivam a vida. Penso que o fazem porque carecem de mais gente igual a si, para significar mais fortemente a própria irrelevância. Ou porque quando alguém é vital, acaba sendo um contraponto que denuncia a mediocridade disseminada. Também o medíocre teme que se o outro se destacar poderá por em perigo o seu emprego, o seu cargo, o poder relativo que dispõe em dado momento. Podem ser estes os motivos e outros devem existir. A tristeza é que a associação dos medíocres contribui significativamente para atrasar-nos enquanto humanidade.
Os medíocres não estão apenas no serviço público, mas ubiquamente os encontramos em todos os lugares; entre os políticos são maioria absoluta, encontramo-los também no meio intelectual, entre os alternativos, os profissionais, alguns são materialistas convictos, outros espiritualistas radicais, tem os religiosos e os ateus, torcem por diversos times, mas mantêm-se fiéis ao estado anódino.

Não é uma vida fácil, porque falsa. Sofrem silenciosamente todos os dias. Vivem como se estivessem entrevados, amarrados no pé da mesa, como as crianças traquinas de antigamente. Há tanto tempo amarrados que perderam a traquinice. A única forma de labutar contra esta subversão da vida é ativamente buscar a felicidade, colocar atenção em cada coisa e tirar das coisas o que puder de sentido, sensação e prazer. A dificuldade reside no fato de que somos todos, em alguma medida, medíocres. Uma parte de nós é medíocre e está aí, de tocaia, pronta a dificultar nossa luz. Mas, todos nós, do mais medíocre ao mais genial, somos luz!
Recebam um abraço vital de Aureo Augusto

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

FRIA DE SAL e MEDICALIZAÇÃO

O texto que se segue, escrevi-o há muito (em 2008), em um novembro quente e incendiário, relendo-o gostei da ideia de partilha-lo. Aí vai:

Hoje o sol não se mostrou como nos dias passados de calor como nunca! Insinuou-se na madrugada uma mentira de frio, mas logo a manhã não economizou forno. Crestada a vegetação olha pra cima e se arrasta no chão. Mesmo a gente está cansada da borra quente que sopra à passagem dos carros na estrada, das motos enlouquecidas, dos cavalos e pedestres.
            Nunca vi calor como o que tem rolado no Vale estes dias!
            O povo assevera que isso é sinal de que o que falam dessas coisas de calotas polares que se vão e buraco na camada de ozônio que cresce (ou crescia) “né mintira não”. E o resultado, são os incêndios se espalhando, horríveis e belos, marcando a noite com sua linha luminosa. Uma coisa assim como um colar de gemas rubras ou amarelas cercando uma área negra estrelada. A beleza pode ser cruel. A beleza não tem moral, mas o coração sofre às vezes apesar da beleza. Alguém já deve ter dito isso.

            Mas o legal foi o que uma senhora me disse outro dia. Estava eu preocupado com a pressão arterial dela, muito alta. Ela disse que podia ser o calor, mas me disse também que quando morava em São Paulo (o povo nativo ia muito morar em São Paulo e agora está voltando todo mundo) sempre a pressão estava alta. Mesmo no frio! Mas me assegurou que sua alimentação era o contrário da serra ardente, era “fria de sal”. Acreditei nela, pois quem não confiaria naquele rosto amarrotado pelos anos. No entanto, procurei ver como estava sua alimentação e comecei a investigar os temperos. Acabei aprendendo que ela usava caldo de galinha ou de carne, cujo conteúdo em sal não é desprezível, acrescentava tempero pronto industrializado cujo teor de sal é impressionante e muitas vezes com glutamato monossódico que é 4 vezes mais hipertensor que o sal. Como se não bastasse ela botava um pouquinho de sal puro para “batizar”. Eu já estava horrorizado, mas aí ela ainda me informou que todos os dias saboreava uma gostosa carne de sol... Horrorizada ficou ela quando eu fui lhe mostrando um a um o teor de sal da sua frieza de sal. Brinquei que no calor que fazia, a comida dela estava mais pra água do mar do que pra rio da Chapada. Ela me olhava entre crédula e rebelde. Penso que ela sabe que tenho razão, mas não quer. E é direito dela não querer, que arque com as conseqüências então. Isso é sério e belo. Somos responsáveis pelas decisões que tomamos. O que levaria uma terna senhora a não seguir as recomendações, conquanto muito bem explicadas, justificadas? Apegos, descrença, outras crenças. Ela vem de São Paulo onde o médico do posto onde era atendida, nunca lhe falou assertivamente da necessidade de alterar a alimentação. Para ela as medicações tudo podem. Resolvem. Resolvida, para que sacrifício? Este é um dos erros desta medicalização tão freqüente em nossas vidas: Sub-repticiamente, quando não ostensivamente, informa-se que é possível não se responsabilizar.

A medicação cura o diabetes, ou a hipertensão, ou a bronquite... O tratamento afigura-se como um jogo entre o arsenal terapêutico e a entidade mórbida. Tais termos informam quanto às crenças que nos movem. Cuidar da saúde pode ser uma guerra contra um fantasma peçonhento. Seremos salvos pelo exército medicamentoso! Mas, e se não for uma guerra? E se a doença for um diálogo entre o que fazemos conosco e o que somos capazes de suportar?

            Cada qual tem o seu direito de atuar como bem lhe apraz ou crê. Porém vivemos em um mundo que nos traz respostas. Respostas virão. Portanto que nos responsabilizemos pelos nossos atos para não sermos apanhados na queixa de que fomos vítimas indefesas. Nem tudo depende de nós. Mas muito sim.

            Podemos especular em que a história da mulher "fria de sal" tem a ver com esta seca tremenda e com os incêndios. Não sei, mas durante a escrita vi que tinha a ver. O pintor não pinta a pessoa, mas a pessoa como é para o pintor. Matisse corrobora esta afirmação. Aliás, o célebre surrealista Salvador Dalí dizia que todos os quadros dele tinham um significado, embora nem sempre ele soubesse. Este texto tem alguma coisa que eu mesmo não sei o que é.
Em 13/11/08

terça-feira, 27 de novembro de 2012


LOUVO AS PARTEIRAS
As velhas parteiras aí estão por todo este Brasil contribuindo para que as crianças nasçam e apesar da tecnologia médica, não fosse por elas, milhares e milhares de mulheres estariam tendo seus filhos sem nenhum apoio. Seu saber não é fruto, regra geral do conhecimento livresco ou do contato com a universidade. Elas se tornam parteiras por força da necessidade local ou do atavismo familiar. Recolhem velhos saberes, conservam-nos e sua aplicação obedece a regras nem sempre inteligíveis para aquele habituado ao pensamento apreendido nas escolas.

Louvo as tantas parteiras que tenho conhecido!
Há quem julgue seu trabalho algo anacrônico e em vias de desaparecer. Triste seria se o cabedal de saberes daquelas senhoras desaparecesse por completo. Ocorre que teríamos nós, enquanto humanidade, perdas, tanto no âmbito do mundo científico (objetivo e analítico) quanto no âmbito da antropologia. Empobreceríamos enquanto coletividade subjetiva.
As parteiras, como de resto todos aqueles que lidam com os conhecimentos tradicionais dos diversos povos situados (seja pela geografia seja pela economia) distantes dos polos de pensamento dominante em nosso planeta, têm conhecimentos que merecem ser estudados pelos nossos farmacologistas, psicólogos, médicos etc. Um exemplo: Por que será que tantas parteiras recomendam que as mulheres se banhem e mesmo bebam o chá de mentrasto após o delivramento? Que eu saiba ainda não existe estudo sobre isso. Mas ocorre-me que este estudo deverá ir para além da química, pois o bem estar que o referido chá proporciona pode ter a ver com odores, com aspectos insuspeitos na interação energéticas entre seres de distintas espécies (as mulheres e as plantas). Eu gostaria de saber como uma planta – seu odor, seus óleos essenciais, seu “astral” (seja lá o que for isso) – pode interferir naquilo que Goldscheider, em 1932, chamou de “quadro autoplástico”, referindo-se às dores, angustias, medos, interpretações pessoais, fenômenos afetivos, sugestões da cultura da qual é produto, entre outros aspectos não palpáveis presentes nos processos de saúde/doença no evolver de nossa vida. Este é um exemplo daquilo que poderíamos, enquanto estudiosos da ciência aprender das parteiras.

Porém haveria também, como expressei acima, uma perda em nossa riqueza antropológica. Embora o processo tenha começado antes, foi a partir do Iluminismo que a humanidade adotou entusiasticamente o pensamento analítico (cartesiano/newtoniano) como forma de descrever a realidade. O sucesso deste método foi notável. Graças a ele fomos à lua e estou aqui digitando em um prático lap-top. O único problema é que passamos a acreditar que esta é a única forma de explicar ou entender o mundo, quando é a melhor forma de explicar e entender determinados aspectos do mundo. O ser humano é dotado de outras instâncias com as quais se aproxima das coisas e tais instâncias têm características mais identificatórias que o método analítico. Estão envolvidas outras competências (ou inteligências se queremos usar a terminologia de Daniel Goleman) tais como a emoção, os insights, a imaginação, e, mesmo, a espiritualidade.
A maneira como o ameríndio acessa o mundo do real é distinta daquela que o morador da grande cidade. A lógica é outra. Mas ambas as formas têm o seu lugar e papel. Karl Popper, no livro Conjecturas e Refutações, comenta que costumamos confundir as palavras ‘científico‘ e ‘verdade’, como se fossem sinônimas. Quando uma coisa só será científica se houver a possibilidade de se criar um experimento que demonstre sua falsidade (o oposto de verdade). O mesmo autor nota que a literatura, a astrologia e a psicanálise não são científicas, exatamente por causa da dificuldade de verificação pelo método cartesiano. Mas, insiste, isso não significa que não sejam expressão da verdade. Uma coisa pode ser científica e falsa e outra não científica e verdadeira. Conforme Harold Bloom, a melhor maneira de se conhecer o ser humano é lendo Shakespeare. Concordo, conquanto Shakespeare não seja científico, mas me impressiona sua percuciência no abrir nossa mente para o entendimento da psique humana.
O jeito de abordar o mundo das formas tradicionais é, por assim dizer, literário. Não é objetivo, mas muito verdadeiro e com resultados frequentemente positivos.

Porém incorre em erro quem pensa que minhas palavras impliquem que o método científico não é válido. Ocorre-me que o sistema analítico e os sistemas participativos (tradicionais) são complementares. O ser humano é grande demais para ser avaliado, descrito, compreendido e avalizado por um sistema ou método. Para descrever-nos é necessária muita pesquisa científica e uma visita às prateleiras das obras literárias e às trilhas dos pensamentos tradicionais, criando uma hibridização que, ainda assim carecerá de uma evolução para nos alcançar a grandeza.

Por isso quero atenção para o que dizem as parteiras, atenção para a maneira como suas mãos tocam, apalpam, “vêm”. Atenção para seus sorrisos e comentários curtos, para o texto oculto nas palavras simples.

Louvo às parteiras!
Em 27/11/12, Aureo Augusto.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012


A LINHA DO TEMPO NO SER HUMANO
Palestra de abertura do V Encontro de
Profissionais de ESF no Vale do Capão.
Agrada-me que um evento como este possa manifestar-se com toda a sua cosmicidade. Gosto de notar o mundo como uma totalidade multidimensional e entristece-me ver-nos a nós, seres humanos – eu incluso – atolados em uma psico-materialidade insípida, limitada pela necessidade fisiológica e pelo gozo superficial, ilusório e pouco capaz de propiciar estados consistentes de felicidade. Por isso nesta fala, peço a permissão de caminhar entre as estrelas sem esquecer os pés que me atam (prazerosamente) ao chão. Ocorre que tive uma experiência de cura há muitos anos atrás e isso abriu meus olhos para o fato raso de que somos bem mais do que imaginamos e, embora eu seja bastante capaz de esquecer minha grandeza para viver nos estreitos limites da minha mediocridade, também às vezes desperto (graças àquela experiência de cura) para minhas ilimitadas qualidades, características naturais de todo e qualquer ser humano, que isso fique registrado.
Abraham Maslow (in Introdução à Psicologia do Ser) nos diz que podemos escolher viver ou ser aquém de nossas possibilidades, mas acrescenta que isso nos trará sofrimento. Tenho sofrido exatamente quando me esqueço de ser o que eu sou amplamente. E lembro que o que eu sou o sou na medida em que sou com. Com meus companheiros de raça humana, com a enorme variedade de bichos e plantas de todo tipo, minerais etc. Sou com e jamais apenas.
Pensemos o humano. Limito-me a esta espécie de ilimitadas possibilidades, dentro do tempo infinito que nos conforma enquanto objetos históricos. Proponho que somos uma interação entre vontade e história, como filhos do tempo, a ele adstritos e para além dele naquilo que queremos. Nós, os seres humanos, somos filhos de Chronos e por ele somos devorados, mas perduramos. Perduramos enquanto espécie e enquanto seres criativos e criadores de cultura. É assim que nos incluímos no tempo.
Vai daí que o tempo ele também é algo que passa por nós enquanto objeto do mesmo jeito que somos objetos do seu passar. O que é o tempo?
Podemos entendê-lo como algo objetivo, marcado pelos nossos relógios cuja precisão vem sendo anunciada no evoluir da técnica. Mas mesmo este tempo claro e obvio é relativo. Ele não existe a não ser com. O tempo é uma das dimensões da têmporo-espacialidade em que existimos e depende das relações com os objetos e seus movimentos. Einstein nos ensinou isso. Lembro que quando um objeto atinge velocidades próximas à velocidade da luz, o tempo se encolhe. Então o tempo objetivo é relativo.
Ademais ele jamais pode escapar à nossa observação do seu caráter subjetivo. O tempo é também um fenômeno humano e faz parte da subjetividade humana. Vai daí que é um rio o qual, se bem ocupa toda a dimensão do visível, corre mais rápido ou mais devagar na medida da minha (nossa) calma ou ansiedade, dos nossos fazeres e compromissos, dos nossos apuros ou relaxamentos... esta subjetividade também marca a própria fisiologia corporal. Há quem velho seja, mas mantém-se ativo e mentalmente jovem, criativo, imaginativo e impressionantemente dotado da chispa do aprender – que caracteriza o bebê.

Nós falamos em linha do tempo. Mas não percebemos que se trata de uma curva – e relembro o velho Einstein que também nos ensinou que retas são improbabilidades físicas, uma vez que o espaço é curvo. Entre os povos celtas não havia esta linearidade retilínea dos acontecimentos. Para eles o tempo volta-se sobre si mesmo em um círculo perfeito. Isso pesa em nosso passar no tempo de nossas pequenas vidas (e é um exemplo que usarei neste momento para ilustrar uma abordagem do ser humano pautada em sua amplitude). Um círculo que se revela como uma espiral.
Acompanhando Theda Basso e Aidda Pustilnik (in Corporificando a Consciência), o evoluir da consciência em nós acompanha estágios que podem ser definidos em 3 fases básicas e suas subfases:
Fase pré-pessoal – que vai do nascimento até mais ou menos os 6 a 7 anos, quando a criança descobre o próprio corpo, desenvolve a sensorialidade, está muito centrada em si na medida em que precisa disso como meio de sobreviver e de inserir-se no mundo. Contém as subfases: Sensorial, Fantasmagórica Emocional e Mente Representativa.
Fase pessoal – em torno dos 7 anos começamos a adquirir a capacidade de perceber que o mundo tem leis, regras, aos poucos desenvolvemos a capacidade de raciocinar, de refletir e depois até de pensar sobre o pensamento. No final desta fase saímos da postura comum racional de ver as diferenças para buscar as semelhanças e a integração. Contém as subfases Regras e Papéis, Mente Reflexiva Formal (tipifica a mentalidade científica) e Visão Dialética e Integradora.
Fase trans-pessoal – quando uma vez que o ego está formado e fortalecido (o que significa resiliente), podemos adentrar as experiências da contemplação e da experimentação direta da realidade subjacente às leis do mundo. Contém as subfases Insight Metafísico, Mente Universal/Sutil e Supramente.
Estas fases e suas subfases trazem desafios para a criança, o adolescente e o adulto. Não apenas desafios mentais e emocionais, mas também físicos. Algumas doenças físicas acompanham o processo de crescimento da pessoa. Os medos são pautados em diarreias e as inseguranças podem traduzir-se na economia da obstipação, viroses da infância podem manifestar a apropriação do corpo pela consciência durante a infância; dores, febres, dificuldades respiratórias indicam as conflituosas descobertas e adaptações às vezes forçadas a um mundo que pode ser hostil – e o é tantas vezes (v. por exemplo, Georg Grodeck, Estudos Psicanalíticos Sobre Psicossomática; Melo Filho, Psicossomática Hoje; Angel Garma, A Psicanálise). Por outro lado algumas doenças caracterizam ou alinham-se mais com o coletivo da humanidade enquanto outras modulam-se pelos avanços pessoais (Angela Maria la Sala Batà, Medicina Psico-Espiritual).
Qual o desafio para a Unidade de Saúde da Família (ou a ESF e para o SUS), quando abordamos a pessoa humana olhando-a como espiral e como um ser multidimensional?
Uau! Esta é uma pergunta difícil de responder e não respondo. Aqui, neste encontro temos pessoas bem capacitadas para nos indicar caminhos. Porém, conquanto reconheça que o assunto é bem mais amplo do que alcança minha vista, pelo menos percebo que sendo multifacético o desafio, multifacetada será a resposta à pergunta.
A primeira coisa que me ocorre é que os profissionais de saúde, todos nós, devemos começar a sair da nossa tão usual mediocridade para acompanhar a pessoa em sua abrangência. Ou seja, precisamos nos preparar mais para estes novos tempos, onde as pessoas estão se revelando mais do que meras comedoras de insumos e eliminadoras de detritos. Como devo receber esta criança que está olhando o mundo atrás do vidro da pre pessoalidade na subfase x? O que eu faço (e isso é algo muito frequente no Vale do Capão) com esta moça que acredita que já alcançou o estágio transpessoal, mas que na verdade está vivendo um grave equívoco? Explico melhor este detalhe: Muitos acreditam que já vivenciou a fase pessoal, e que agora está “anulando o ego” e alcançando uma realização superior, onde experimenta insights que lhes garante o acesso à comunicação com dimensões (ditas) superiores da existência, quando na verdade estão vivendo uma fantasia típica da subfase fantasmagórica emocional não resolvida (v. sobre isso Ken Wilber, A Falácia Pré/Trans, in Caminhos Além do Ego organizado por Roger Walsh e Frances Vaughan). O erro já se impõe com a ideia de que o ego é um bicho a ser devorado, quando é uma ferramenta de comunicação. Mas, cabe àquele que acompanha compreender, contribuir para a superação da neurose, aqui vista como o vivenciar anacronicamente o mundo.
Mas, ao mesmo tempo em que vemos ou atuamos neste contexto, não devemos nos esquecer que diante de nós há uma pessoa portadora de diabetes ou hipertensão, pneumonia ou gastrenterite. A amplitude da consideração pode fazer-nos esquecer das raízes que (prazerosamente) nos nutrem no chão. Entre as insinuações do infinito e os desdobramentos do restritivo devemos proceder à nossa missão de contribuir com a saúde.
De passagem quero comentar que este povo que está vindo agora tem um modo de postar-se que por si já representa desafio. Tenho sido surpreendido com as novas gerações. Uma criança de braço estava na consulta e enquanto sua mãe falava olhei para o seu rostinho absolutamente lindo e enternecedor. Sem querer peguei a caneta e fiz um rápido esboço da carinha. A menina apontou para o desenho e disse o próprio nome. Interrompi a mãe e mostrei o desenho para a criança e ela me olhou e repetiu o próprio nome, indicando que sabia o que dizia, sabia o que eu fazia e rompia com o meu conhecimento quanto ao desenvolvimento infantil herdado de Piaget (conhecimento este que permanece válido, porém merece reajustes). Os jovens têm me procurado para consultas e nos seus sofrimentos, agruras, inseguranças e angústias tenho encontrado coisas que me deixam perplexo. As moças estão vendo a sexualidade como um instrumento para serem inteiras que deve estar deixando os jovens homens um tanto fora de foco. E os rapazes (que veem em menor número) estão querendo algo mais, muito além dos horizontes de seus pais (e dos meus). Sim, escuto-os e por isso manifestam ambientes psicológicos que para mim são searas desconhecidas, mas onde avanço confiado em que eu mesmo surpreendi meus pais e nem por isso desesperei-os. Há uma guiança nos caminhos desconhecidos das novas descobertas. Mares nunca dantes navegados guardam sinais antigos e visitados por lendas hoje mortas à superfície do olhar. Sereias espreitam viandantes odisseus, porém acontecem mastros para amarrar-nos, acontecem remos ferindo as águas e proas construindo trilhas no oceano móvel. Além de cuidar das significantes queixas (joelhos, menstruações, topadas, indigestões, gestações – “indesejadas” – quedas de motocicletas, álcool e drogas, e outras coisas) e do significado (secreto) das queixas, preciso acompanha-los na linha espiraliforme do tempo dobrando-se sobre si mesmo (como disse um físico) propondo-me uma medicina responsiva à ampla gama das necessidades dos que buscam o ambulatório.
Não posso me esquecer que sou mastro, remo e quilha para esta gente. Sou o SUS e sou algo mais que um prescrevedor de medicações. A ESF se me afigura como algo concebido para encontrar a pessoa em uma acepção muito ampla. Cumpre que nós, profissionais de ESF, consigamos alçar-nos para além daquela tendência latente, patente ou explícita em nós que nos faz meros prescrevedores inermes, vermes no lodaçal de um cotidiano fabricado para construir aposentadorias: o acostumamento à mediocridade.
Somos medíocres sim, mas também somos um alude de possibilidades! Enfrentamos dificuldades múltiplas, desde nossas próprias limitações, àquelas impostas por uma sociedade como a brasileira que se formou sobre bases muitas vezes equivocadas, que é injusta e difícil. Que é assim por conta de uma história. Que é fruto do passar do tempo no qual muitas vontades moldaram os ritmos dos acontecimentos. Somos nós similares vontades para contribuir com histórias. Só que desta vez a história pode ser muito diferente.
Uma equipe de saúde, em um dos tantos fins de mundo deste nosso sertão brasileiro, que deixa de fazer muito daquilo que merece (e tem que) ser feito (como vimos no AMAQ), mas que não tem medo de pegar os frutos da criatividade, tocar com eles a nossa poderosa vontade tornando-os inovações no tatear o coração da nossa gente em busca dessa coisa chamada qualidade de vida em sua mais ampla acepção. Dizia: esta equipe os convida a que aventuremo-nos por este mundão que se abre, o mundo da resposta à questão sobre como o SUS vai acompanhar este ser multifacetado e multidimensional que se apresenta à ESF na linha do tempo da pessoa humana.
Aureo Augusto em 30/10/12.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

PÓS QUINTO ENCONTRO


Você sabe daquela sensação deliciosa de cansaço após haver realizado, ou melhor, ter contribuído para a realização de algo bem legal? Pois é, senti isso no último sábado após o término do 5º Encontro de Profissionais de ESF no Vale do Capão, que desta feita veio acompanhado da realização concomitante do 1º Encontro de Gestores da Saúde da região.
O evento foi simplesmente maravilhoso. Tivemos, obviamente, dificuldades, preocupações, correrias de última hora, horários remanejados etc. Mas senti nos participantes, tanto aqueles que se encarregaram das palestras como o público presente uma vibração muito positiva, uma intensa vontade de aplicar no trabalho aquilo que ali via, aprendia e vivenciava. Olhos brilhando!
A nossa equipe ficou fascinada com tudo o que aprendeu, com as partilhas e sei que durante o próximo período será de conversas nos corredores e nas reuniões quanto ao que se ouviu e quanto ao que temos que mudar para melhorar.
Ainda contamos com a presença sumamente agradável de Jorge Sola, nosso Secretário da Saúde, acompanhado dos entusiasmados Washington Couto, Ledívia Espinheira, Alfredo Boa Sorte, que juntos representaram um grande incentivo para os presentes no sentido de superar as dificuldades e continuar alimentando a realidade/sonho de um SUS maior e melhor.
Agradeço do fundo do coração por ser parte desta equipe, por contar com parceiros tão dispostos e felizes como o pessoal da DIRES27, da SESAB (DAB, EFTS, CEDAP, DGC, ATSI, DGETS) – são muitas as siglas, que, aliás, me confundem, mas é bem legal o que está por trás delas!
Um agradecimento especial ao diretor da DIRES27, Braulino Peixoto que deu sangue para que os eventos dessem na maravilha que deu.
Tenho um sentimento de gratidão.
Aureo Augusto.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

UM POSTO BEM ATIVO


Tenho orgulho de trabalhar com uma equipe como a minha, no posto de saúde da família aqui no Vale. A turma é fera!
Temos inúmeras atividades além dos atendimentos ambulatoriais que fazemos. Isso implica em uma trabalheira, mas ao mesmo tempo é tudo muito divertido. Claro que nem tudo são flores, temos enfrentado alguns espinhos bem desagradáveis, mas quando botamos na balança, a alegria dá de dez a zero na tristeza.
Na próxima quinta-feira começamos mais uma atividade. Esta tem uma lindeza de peculiaridade: Trata-se de um encontro de profissionais de saúde da família da região. O lindo é que a DIRES, diversas instâncias da SESAB, como o DAB e a EFTS contribuem ativa e significativamente para que aconteça o evento que já está na QUINTA EDIÇÃO. Isso é incrível, mas só se tornou possível porque acreditamos no incrível.
Vejam a programação:

V ENCONTRO DE PROFISSIONAIS DE ESF NO VALE DO CAPÃO

TEMA CENTRAL: A VIDA HUMANA NA LINHA DO TEMPO

1o dia:
08/11/2012, quinta-feira.
9:00h – Recepção e entrega do material.
9:30h – Mesa de abertura.
10:30h – Exposição: A Linha do Tempo na Pessoa Humana – Dr. Aureo Augusto.
11:30h – Debate.
12:00h – Almoço.
12:30h – Espaço para práticas de relaxamento e massagem.
14:00h – Mesa redonda: Cuidando do processo de gestar, partejar e nascer: a Rede Cegonha na atenção básica.
Coordenador: Natália Andrade Souza
- Implantação da Rede Cegonha – Grupo Condutor da Rede Cegonha
- Teste rápido para o HIV e sífilis – DAB/SESAB
- Uma experiência com gestantes – equipe de saúde de Iraquara
15:10h – Mesa redonda: Profilaxia Pós Exposição – PEP
Coordenador: Helena Pessoa
- Acidentes de trabalho – Ana Azevedo 27ª DIRES/SESAB
- Abordagem da violência sexual e prevenção das DST/Aids - CEDAP/SESAB
16:20h – Merenda
16:50h – Exposição: Diarréia na Criança – Manejo clínico – Dr. Aureo Augusto.
17:30h – apresentação teatro de marionetes pela USF Caeté-Açú.
19:00h – Apresentação cultural
19h – jantar.

2o dia. sexta-feira
Dia 09/11/2012, sexta-feira.
9:00h – Exposição: Rede Amamenta e Alimenta – Área Técnica de Alimentação e Nutrição/DGC/SESAB
9:50h – Debate
10:00h – Exposição dialogada: O adolescente na UBS: conquista e acolhimento – Área Técnica de Saúde do Adolescente e Jovem/DGC/SESAB
11:00h – A Clínica Ampliada na Atenção Básica – DAB/SESAB
12:00h Almoço
12:30h – Espaço para práticas de relaxamento e massagem.
14:00h – Exposição: Análise da Situação de Saúde Bucal da Comunidade – Dra. Cristiane Castro, doutoranda do ISC.
15:00h – Exposição: Os exames laboratoriais na menopausa e na andropausa – Dra. Luciene Almeida Couto Passos, enfermeira obstétrica.
16:00h - Merenda
16:30h – Exposição: O Cuidado do Idoso na Atenção Básica – Área Técnica de Saúde do Idoso/DGC/SESAB
17:40h – Encerramento do dia

3o dia. Sábado
Dia 22/out/11:
9:00h – MobilizaSUS - DGETS
12:00h – Almoço.
    Despedida.

Eventos paralelos:
Dia 08/11, das 9 – 17h - Oficina: Humanização da Assistência segundo os Princípios e Diretrizes do SUS
Facilitadora: Dra. Lana Moraes - Unidade Descentralizada da Escola de Formação Técnica do SUS- EFTS/UDEFTS e Núcleo Microrregional de Educação Permanente na Saúde- ITABERABA
Público-alvo: ACS

Dia 09/11, das 9-12h – Oficina: Saúde do Idoso
1º momento - Caderno de Atenção Básica - Envelhecimento e Saúde da Pessoa Idosa.
2º Momento - Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa.
Facilitadoras: Silene Chacra e Leila Araujo Fernandes – Área Técnica de Saúde do Idoso / DCG/SESAB
Público-alvo: médicos e enfermeiros

E este ano, além deste evento, graças ao esforço do diretor da DIRES27, Dr. Braulino, teremos também um evento paralelo com Secretários de Saúde da região.
As coisas estão acontecendo!
Abração entusiasmado a todos de Aureo Augusto.

domingo, 28 de outubro de 2012

COISA BOA


Tem uma coisa que me causa alegria neste momento no Brasil:
Tenho acompanhado o julgamento do Mensalão no Supremo Tribunal e fico admirado que em um país como o nosso, que é democracia há tão pouco tempo já mostra um avanço inacreditável. O Supremo Tribunal está julgando e condenando pessoas que traíram a república fazendo jogatinas que, caso não viessem à luz da opinião pública teriam a possibilidade de enfraquecer a democracia. A compra de votos, o uso de recursos públicos ou não para subornar deputados e senadores, alugarem legendas, negociar fidelidades são ações que subvertem o estado democrático. Isso acontece com frequência dentro dos estados livres e precisa ser coibido. A lei é a solução. Porém em um país como o Brasil, a lei é lenta e, às vezes não cumpre o seu papel.

Mas desta vez, apesar de tudo, apesar de tantos empecilhos, o fato é que o partido que está no poder vê homens que jogam (ou jogaram) importante papel no comando do partido sendo julgados e condenados. Sei que ainda acontecem grandes injustiças, mas isso é sensacional.
Pense se isso estivesse acontecendo no Brasil de 20 anos atrás! Eu duvido que os governantes não interferissem de forma bem assertiva – impedindo com o exército ou com manobras infalíveis o desfecho desfavorável. Penso que em muitos países de nossa América Latina um julgamento como este seria impossível. Ainda mais em época de eleições.

Não deixemos de ver aquilo que está errado e merece correção, porém celebremos este momento!
Recebam um abraço de celebração de Aureo Augusto.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012


Dia 16/10 tive a oportunidade de fazer uma fala no Curso de Permacultura na Comunidade Campina, aqui no Vale do Capão. Foi muito legal estar com aquelas pessoas que se ocupam da sustentabilidade no Planeta. Aqui vai o material usado:
SAÚDE CORPO AMBIENTE PRAZER
Muito agradável saber que há um grupo de pessoas pensando agricultura, economia, vida humana enfim, em uma perspectiva ambiental. Tenho notado, mesmo morando aqui nestes confins do mundo, que este interesse está aumentando entre as pessoas.
Fico pensando no que poderia falar para vocês, que seguramente conhecem mais agricultura, ambientalismo e economia do que eu. Ocorreu-me de início trazer um texto de um precursor de todo o movimento que, em dado momento se autodenominou alternativo. Nome já bastante desgastado. Este autor a que me refiro talvez tenha sido o primeiro a propor a formação de uma comunidade alternativa, nos moldes pensados no final do século passado. Refiro-me a Epicuro, que viveu na Grécia (nasceu em 341 a.C.). Em 306 a.C. em Atenas fundou uma comunidade onde as pessoas viviam plantando o que comiam, encontrando prazer na vida simples, vivendo frequentemente em barracas. Esta comunidade atraiu gente de muitos lugares e sobreviveu ao mestre.
Começo apresentando um excerto da carta que Epicuro escreveu para Meneceu, seu discípulo, que aqui apresento retirado do livro Carta Sobre a Felicidade (A Meneceu), publicado em grego e português pela Editora UNESP em 2002:
Nunca devemos nos esquecer que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, e nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.
Consideremos também que dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz; em razão desse fim praticamos todas as nossas ações para nos afastarmos da dor e do medo.
...
Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer. Há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo.
A filosofia de Epicuro está centrada no fato de que todos os seres procuram sempre o prazer (aqui significando bem estar). Devemos considerar que seu exemplo é bem atual, inda mais neste momento, em que o processo desencadeado pelos seres humanos (que a rigor começou na pré-história, ampliou-se com as navegações portuguesas e agora culmina com a cada vez maior interdependência comercial e com a internet) de globalização das relações entre as diversas pessoas, culturas, nações, economias. De repente percebo que às vezes, mesmo morando no Capão, sei tanto do que acontece com meu vizinho, em tempo real, como do que se passa no Irã, na Indonésia, ou no Kwait. Somos uma comunidade terráquea e devemos atentar para o fato de que os nossos desejos não fundamentais, bem como os não naturais, frequentemente instaurados em nós por uma mídia a serviço do lucro de corporações que não levam em consideração a sustentabilidade, dizia, que tais desejos podem ser uma declaração de morte ao nosso futuro.

Vai daí que precisamos aprender a lidar com o prazer, uma vez que a nossa recusa a tratar isso da forma adequada nos tem levado a deixar-nos ser vítimas de uma mídia que nos impõe a medicalização da vida, e a agrotoxificação da vida. No afã de atender a prazeres imediatos não podemos nos considerar vítimas inocentes de corporações que querem lucro a todo custo (o custo será não das corporações – para elas apenas o lucro), uma vez que em grande medida (e sem querer tirar a responsabilidade – ou irresponsabilidade – das grandes empresas e governos) nós também somos agentes ativos de nossa própria desgraça ecológica.

“O futuro não é totalmente nosso, nem não-nosso”.  Mas é nossa a decisão de como vamos atuar no presente com vistas ao futuro. Isso tanto em nossa vida particular quanto na relação com o meio ambiente. Lembrando Morris Bermann (in El Reencantamiento del Mundo, Cuatro Vientos, Santiago-Ch) quando nos diz que o jeito com o qual lidamos com nosso corpo é isomórfico à nossa ação com o ambiente entendemos que agrotoxificamos a vida na mesma medida em que medicalizamos nossa vida.
Tenho notado a forma imediatista com que lidamos com nossas dores físicas e psíquicas. Os pais não suportam suportar a dor nos filhos e em si. As medicações antiálgicas são uma verdadeira praga.  Para não sentir a mínima dor, desconforto ou doença aguda nos medicamos assiduamente, o que traz consequências avassaladoras para a saúde, seja por causa de efeitos colaterais, seja por que deixamos de ter competência para lidar com a dor e a perda. Tornamo-nos aos poucos tomados de um narcisismo que, em última análise é autodestrutivo (sobre isso veja Dana Zohar, in O Ser Quântico). E acabamos por agir com o ambiente, como se estivéssemos fora dele e para sermos por ele servidos – corolário disto é a atitude tão comum hodiernamente quando tantos se consideram seres especiais a serem servidos pelos demais, pelos pais, pela sociedade; um número razoável de pessoas está exigindo muito dos demais, sem, contudo, se esforçarem pelos demais; usando argumentos justos, de crítica à sociedade, vivem à margem dela, parasitando-a, criticando-a, porém sem efetivamente contribuir para sua transformação ou sustentação e sustentabilidade.

Dessa forma e no desejo de atender a desejos tornados essenciais, mas que não passam de não naturais, ou não necessários, acabamos por sobre exigir da Terra que “pode prover a toda e qualquer necessidade, mas não a toda e qualquer cobiça” (Gandhi in Minha Vida e Meus Encontros com a Verdade, Diffel, São Paulo).

Saídas existem e são muitas, como um encontro como este que está ocorrendo, porém todas passam pela consciência. Passam por aprendermos com o passado, netamente com o século XX, o das ideologias, onde o culpado era sempre o outro (capitalistas, comunistas, fascistas, democratas, negros, brancos, europeus, cristãos etc.) que deveria, preferencialmente, ser eliminado.
Assumir a responsabilidade pelos nossos desejos e pelo futuro, bem como com pelo presente. Sem ver as medicações como obra (apenas) de interesses escusos, entendê-las como úteis em determinadas circunstâncias, mas evita-las sistematicamente. Procurar encontrar soluções para o desabastecimento de grande parcela da população mundial sem o uso fácil de insumos artificiais e alheios aos costumes locais. Não alinhar-se com hegemonias óbvias, apenas porque poderosas, porém não esquecer que aquilo de hegemônico assim se tornou não por obra do acaso. Entender as injunções que criaram um mundo tão injusto, tão hipócrita, tão terrível, mas que nos traz maravilhas que merecem contemplação. Estas são algumas das tarefas que devemos assumir.

Nossa tarefa não é fácil. Estamos sendo convidados a rever o mundo que criamos não mais com o olhar meramente e facilmente crítico depreciativo. É tão fácil derrubar, desconstruir, quando não temos competência para colocar-nos ombro a ombro com o nosso próximo. Por isso nossa tarefa é difícil. Somos nós, os que padecemos de narcisismo, de sedentarismo (ainda que seja uma forma de sedentarismo psíquico que nos faz acreditar em teorias nas quais mais uma vez clivamos o mundo entre pessoas certas e pessoas erradas). Nossos próprios desvios psicológicos e nossas necessidades narcísicas nos fazem condenar aos demais e repetir toda a história da humanidade onde sempre criamos a necessidade de ricos e pobres, líderes e liderados (rigidamente estabelecidos), nobres e plebeus, ortodoxos e heterodoxos, salvadores do mundo e destrutores do mundo, absolutamente bons e absolutamente maus, este partido e aquele partido...

Talvez esta globalização que estamos vivendo, com tudo de absurdo que há nela, seja enfim uma oportunidade de viver como se vivia na aldeia, um convite a sairmos do conforto umbilical de estar certo das nossas certezas. A chance de desfrutar prazerosamente do ato de viver a satisfação dos nossos desejos naturais e até alguns a mais, atendendo também ao desejo de que as gerações futuras possam desfrutar do mesmo prazer de cuidar do mundo.
Povoado do Vale do Capão, em 16/9/12, Aureo Augusto.

domingo, 9 de setembro de 2012

O VALE DE OUTROS TEMPOS


Ontem Ditinha foi à consulta. Amo Ditinha. Ela tem lá pelos seus 65 anos, é uma lutadora como poucas. Troncuda, redonda, baixinha. Brinco com ela dizendo que faz parte do time de basquete do Capão, que é a bola. Ela ri a mais não poder. Seu marido trabalhava no terreno que um pequeno grupo de amigos comprou e que depois se tornou a comunidade (e agora o Instituto) Lothlorien. Ele era um servo da gleba, como nos tempos medievais. Lembramo-nos daquela época e ela recordou como as relações trabalhistas eram absolutamente injustas com o patrão do qual compramos a terra. Como tudo era difícil e, repito, injusto.

Hoje, em Salvador, caso alguém veja uma moeda de 5 centavos no chão, talvez não se dê ao trabalho de pegar. No Vale do Capão, quando aqui cheguei há praticamente 30 anos, o equivalente a esta moeda era um valor nada desprezível. A vida era bem dura. E aproveitamos a consulta (que era coisa de pequena monta) para relembrar as inúmeras aventuras que partilhamos. Ela foi lembrando-se de quando foi me buscar para o parto de uma senhora sumamente irritadiça que parecia no parir estar em guerra com algo. Então passamos a recordar os detalhes daquele acontecimento. Depois a vez em que eu estava transferindo o gás de um botijão grande para um pequeno (usado na iluminação já que não tínhamos eletricidade) e ela chegou em casa tão desesperada pedindo socorro que trazia uma sandália na mão e outra no pé, coisa que me deixou assustado, pois vendo ela balançando a sandália sobre a cabeça, aos gritos, quase saio correndo pensando que ia me bater. Correra de sua casa para a minha porque seu cunhado havia morrido. Larguei tudo e sai correndo por dentro dos matos na rota mais curta e lá encontrei o sujeito, não morto, mas desmaiado após dor atroz. Ela lembrou que o seu estado era terrível. Mas que graças ao tratamento recuperou-se para morrer no garimpo em acidente.

Depois nos lembramos dos partos de sua filha, Reizinha, nada fáceis! Recordamos as várias vezes que me atalhou na estrada, chegando eu de viagem, cansado e sonolento, para dar socorro a este ou aquele. E das molequeiras que eu fazia com Etevaldo, seu marido, um homem bom e tranquilo, muito tímido que ria silenciosamente com as minhas brincadeiras. Ele era tão tranquilo que ao ser picado por uma cobra cabeça de capanga terminou o serviço que fazia na roça para só então buscar socorro, coisa que lhe custou a vida. Ficou Ditinha só com a multidão de filhos... Mas superou e hoje ri do passado (e do presente)!

Era uma época em que se morria muito, bem mais que hoje, de mazelas comezinhas, de picadas de cobras, de mortais acidentes. Filhas e filhos descendo, anjos, às sepulturas porque ventos, ou frios, ou fomes, ou estupores... E Ditinha com seus olhos miúdos, tratando de ver os meus, me falou de sua admiração com o fato de que as pessoas de hoje já não são tão felizes como aquelas dantes, como ela outrora e agora.

Rimos também daqueles que insistem em comparar o passado com o presente e lamentam as mudanças pelas quais passou o Vale. Cresceu, facilitou-se a vida, carros e motos alargaram os caminhos antes trilhados por pés descalços e sandálias velhas. Televisões e lâmpadas substituem conversas na obscuridade prévia ao sono e guardam estrelas esquecidas. Sim, o mundo mudou e por isso boas recordações de fatos que em seus momentos foram tão dolorosos. Hoje, só porque o hoje é agora no conforto, rimos do passado duro. Os desafios de outrora eram outros, agora novas demandas e amanhã outras. Que haja vida para tantos desafios!
Recebam um abraço antigo de Aureo Augusto em 7/9/12.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

FRIO E ATIVIDADE


Primeiro o vento derrotou todas as possibilidades de o dia surgir em silêncio. Depois ele mesmo, ruidosamente, permitiu um frio, ou melhor, ajudou o frio a penetrar os ossos dos seres viventes, fundir em tremor árvores e pássaros que quedaram mudos ante o assombroso do tempo cinza.
Já alto é o dia, mas os pássaros, ao contrário dos seres humanos, recusam-se o pipilar e o trinado. Ajustam-se aos limites dos ninhos.
Inquieta a humanidade parte ao labor, enxadas, pás, ancinhos e machados tornando frio em suor, nuvens chumbo em verde horta.
Assim somos nós, os humanos, um povo dotado do dom da construção de novos modos. E este dia frio e ventoso, quando as pontas de meus dedos pedem o calor dos cobertores, me faz estar aqui, matinalmente a escrever esta pequena ode à atividade desta raça inquieta.
Enquanto avançava através da neblina, divisava o caminhar dos meus vizinhos encolhidos por entre as nuvens, mas caminhando à labuta, suaves, sem pressa, mas certos do próprio destino. E admirei-os. E a mim.

Vai daí que escrevi esta ode ao que somos, e somos, entre outras coisas, nem sempre tão boas, mas somos iniciadores de possibilidades, construtores de futuros, aliciadores de sonhos.

Recebam um abraço de Aureo Augusto

domingo, 12 de agosto de 2012

ELEIÇÕES NO VALE DO CAPÃO


Época de eleições, como do nada surgiram paralelepípedos em vários lugares para fazer novos calçamentos, a escola está passando por uma grande reforma, os políticos vão e veem correndo atrás de promessas dos eleitores, barganhando por outras promessas, sempre maiores, sempre melhores, sem, contudo, dizer o como é que vão conseguir fazer tanta coisa. Palmeiras tem 3 candidatos a prefeito e a coisa já está quente. Só no Vale do Capão apareceram 5 candidatos à vereança, uma desistiu, mas alguns postulantes de outros lugares também ganham votos por aqui, o que nos faz pensar que o nosso vale terá pouca possibilidade de ter representante na Câmara. Quem vai gostar são os defensores do status quo, já que por tradição o povo daqui é o que mais questiona as atitudes de prefeitos e associados. Pelo meu gosto os candidatos se reuniam e decidiam por um nome e todos lutariam por ele, mas, será que todos os candidatos estão com o desejo vazio de ter emprego sem ter trabalho? Nininho foi vereador pelo Capão. Desistiu de candidatar-se para a reeleição. Tudo indica que, embora seja bem ligado em política, não se sentiu identificado com a forma, digamos, inadequada, com que os processos são conduzidos no meio. Pena que os honestos tendam a retirar-se (o que não significa que todos os honestos se abstenham de participar).


O povo se assanha, pois eleições municipais têm um quê de festa. Ganha-se muito, faz-se muito, aproveita-se muito. O povo fica animado com a chance de conseguir aqueles exames que necessitava há muito e que os políticos dificultaram a consecução para depois fingir que conseguiram para as pessoas. E o povo agradece, não sei se matreiramente, cônscios de tudo ou ingenuamente, achando que os caras são mesmo legais - ou os dois casos estão presentes no mundo. Tem gente como Landinha que uma vez o cara lhe comprou o voto por 20 reais, aí se lembrou que já havia prometido a outro. Foi lá e devolveu o dinheiro porque não poderia faltar com a palavra. Pena que os políticos não veem as coisas pelo mesmo prisma de Landinha. Pelo menos resta o consolo de que hoje ela não mais vende o voto, pois a minha gente querida do Capão está mais consciente e discute mais o que é melhor e o que é pior.


Fico acompanhando a movimentação dos políticos e percebo que este no quem quer que ganhe para prefeito terá pouca margem de vantagem. A disputa é dura, mas o que eu gostaria mesmo é que eles se sentassem em uma mesa redonda, para discutir como cavalheiros e damas desinteressados o melhor para este lugar. Palmeiras é um lugar muito legal, com uma gente adorável. Palmeiras merece mais.

Recebam um abraço eleitoral (rsrsrs) de Aureo Augusto.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

PACIENTE IMPACIENTE


As denúncias de mal atendimento do poder público à saúde são inúmeras e o mais das vezes fundadas em fatos reais. Aqui em Palmeiras vivemos uma situação triste no quesito saúde. Os motivos são muitos, e nem sempre a corrupção tem o primeiro lugar como causa de desserviço. Inoperância, descaso, manipulações eleitoreiras, tudo isso tem o seu papel. Além da prefeitura, muitos funcionários não entendem claramente qual deveria ser o seu comportamento como servidores públicos e dão sua triste contribuição para que a população sofra. Porém hoje quero comentar algo relacionado com a pessoa a ser atendida, que também acaba por tratar mal a si mesma.
Há aqui uma mulher que acompanho há muitos anos e sempre me preocupou. Ela é simpática e desleixada com a saúde. Mais de 10 anos atrás quando tentei mostrar para ela o risco que corria pelo fato de ser jovem e hipertensa ela foi bastante debochada, usando frases do tipo “todo mundo um dia morre”. Aliás, tomou a mesma atitude com um colega, Dr. Ricardo, que acompanhou-lhe uma das gestações, e também se preocupou com a hipertensão (que na gravidez é algo sério). O tempo passou e outros médicos também se preocuparam e ela continuou descontinuando o uso das medicações...
Como esperado tudo foi piorando. Seu sofrimento fez com que voltasse a atenção para si mesma. Porém, em que pesem as admoestações do pessoal da saúde, nem sempre, ou quase nunca segundo a agente comunitária que a acompanha, seguia com rigor as recomendações dietéticas e medicamentosas.
Recentemente fortes dores de cabeça a fizeram vir ao posto. Por alguns dias tentei debalde, usando diversas medicações, reduzir os níveis tensionais de modo que a encaminhei para internação. A prefeitura providenciou transporte e internamento. Chegando à clínica, o cardiologista fez uma medicação e pediu que esperasse para verificar se seria necessário mesmo o internamento. Ela então aproveitou o transporte grátis para fazer compras em Seabra e retornou pra casa sem voltar na clínica.
No domingo encontrei-a na feira, ainda com dor de cabeça. Ela sempre se queixa dos políticos, e da prefeitura; muitas vezes disse para mim que tentou fazer os exames que eu solicitava, mas não conseguiu, pois não dispunha de recursos e tampouco do apoio da prefeitura. E agora?
Recebam um abraço de Aureo Augusto.