sábado, 28 de dezembro de 2013

COMO PODE TÃO BELO?

Acabo de fazer esta poesia, e a vejo como celebração neste momento em que nos despedimos de um ano e começamos outro, partilho-a com vocês:
Como pode o mundo ser tão belo?
Tão delicioso este tao entre a luz
E a noite povoada de silêncio e estrelas?
O canto áspero das cigarras
Roçando-me a pele nos galhos das árvores
Anuncia-me apenas as alegrias do dia
Com suas tristezas feitas da etérea
Matéria que constrói nuvens floculares
Manifesta-se e se esvai logo acima do céu
Na cúpula íngreme das montanhas
Que cercam minha casa no vale do mundo.

Por isso meu canto é feito de todos os sentimentos
E sustenta-se no encanto que é viver!

Não temo muitas coisas, embora seja covarde
Corro os olhos nos lugares escondidos e perigosos
Da alma humana e me divirto aonde as lágrimas
Convidam-nos à reflexão quanto à fantasia da seriedade.

Bebo a luz que o dia me traz e a noite que do dia se faz
Enquanto recebo cada um dos presentes que a vida comporta
Desde a cor iridescente no corpo da mosca sobre a bosta
De gado, ao gado, assim como ao gato e seu saltar caprichoso;
O brilho nas folhas após a chuva ou as formas mutáveis
Do pó embalado pelo pneu dos carros no solo ressecado;
O campo estendido qual cobertor de retalhos
E a verticalidade da serra contra o céu feito de asa de periquito.

Por isso meu canto é feito de todos os sentimentos
E sustenta-se no encanto que é viver!

E ainda tem a profusão de sabedorias humanas
A peculiaridade de cada um em suas manias
A dor que apenas sente o ser humano por existir
O jeito único de cada individualidade caminhando
Como se não fosse parte de um todo que repete a unidade;
Banho-me todos os dias nas águas abundantes dos sorrisos
Que me trazem os vizinhos, seus abraços e exclamações fartas
Deixo-me levar pelo cuidado que o mundo me tem
Pelo embalo que a existência me obriga, me faz e me quer.

Vai daí que meu canto é feito de todos os sentimentos

E sustenta-se no encanto que é viver!
                      recebam um abraço de ano novo de Aureo Augusto.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

VOLTOU A CHUVA DAS ÁGUAS

Na segunda-feira, como de hábito dormi como uma pedra. Mas no meio da noite em algum momento escutei chuva forte golpeando o telhado e reentrando no mundo dos sonhos sorri agradecido, mas não percebi a dimensão da chuva. Só tive realidade quando no amanhecer molhei os pés ao andar na sala da casa. Aí reparei que todas as velhas (e em certa medida queridas) goteiras ressurgiram a todo vapor.

As águas voltaram! Aqui no Vale do Capão sempre me encantou o exagero deste período, quando os rios se perdem dos limites, avançam sobre as ribanceiras nas margens, superam barreiras, arrastam troncos gigantes, deixam de lado o respeito pelas pontes. Havia já 5 anos que a “chuva das águas” tinha se esquecido deste lugar. Sabemos da seca inusual que assola a Bahia, levando dor para tantos. Aqui também aconteceu a debandada da chuva, mas não sofremos tanto quanto outros lugares. Mesmo assim foi triste, muito triste.

Hoje, quando escrevo estas linhas, é quinta-feira. Segue a chuva. Desde aquela segunda-feira não pude mais tomar meu banho matinal no rio. A quantidade de cisco (restos pequenos de mato) é enorme, na água e nas margens. O poço onde me banho está tomado de troncos enormes, retorcidos, embaraçados em uma confusão de gigantes.

Quando vim para o trabalho pela manhã o carro descia as ladeiras como criança no escorregador, e por isso não pude voltar para almoçar em casa. Agora tenho esperança que possa voltar com o pouco estio desta tarde. Um caminhão atolou na rua logo depois da escola pública; um pessoal que mora aqui há pouco tempo viajou e deixou os carros (um Fiat e uma Kombi) perto do rio – vixe! A água passou por cima. O povo ficou agoniado, mas não pôde fazer nada. Vários acidentes de moto por escorregões, lama e lama pra todo lado. A gente encharcada. Uma alegria!


Recebam um abraço molhado de Aureo Augusto.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

MAESTRIA

            MAESTRIA
Você me ensinou nada mais
Do que eu já sabia.
Não desvendou caminhos desconhecidos
Sabendo no coração que locais
Absolutamente ermos do saber
Não existem, são quiméricos sonhos.

Fez com que recordasse do poder latente
Em minhas células
Nelas e na alma, lembrou-me do prazer crescente
Que a vida pode impor, dispor
Se o coração se abre e investe em ser
Algo a mais que apenas raiz.

Lembrou-me de raiz e fez flores, folhas e frutos
Ensinando-me do poder embutido em mim
Trouxe-me a humildade do amor
Árvores seculares e relva úmida curvando-se ao orvalho.

Uma vez que saboreei apenas a migalha
E com ela me satisfiz da sua beleza
Acometeu-me de renúncia;
Quando lançou-me em toda a luz
Acolheu-me nas trevas e no silêncio
Enquanto de mim fazia senhor dos pássaros chilreantes.

Se construiu o sabor dos corpos amantes
Ausentou-se;
Se ensoberbeceu-me de seu olhar bondoso
Construiu obscuridades;
Se alimentou-me a alegria contagiante
Experimentou em mim saudades;
Se despertou-me todos os dias na esperança
Tornou-me íntimo da morte;
Se ampliou-me a percepção do universo
Fez-me ver o pequeno que sou
Acolheu-me terna no pequeno que sou
E grande como o oceano onde as estrelas se banham.

Dess’arte estendo minha mão ao infinito
E beijo os pés do mendigo
Assim de mim foi feito o silêncio
Que sustenta o meu discurso atroante
Caminho pelas margens dos povos
Enquanto lhes guio os passos
E ouço o canto da vida universal
Surdo que sou, surdo que sou.

Grato, meu coração dispara raivas
E aprende humilde que nada pode exigir
Expandindo-me aos confins do prazer
Estóico e ascético às bordas da fortuna
Estou aguardando o que não virá
Louco da esperança pelo que não será
Feliz na plena alegria que não despreza a dor. 

                                   recebam um beijo poético de Aureo Augusto


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

PRECISAMOS DE NÃO

Precisamos de não, porque se tudo é sim não se instala a felicidade.
Às quartas, 7 horas da manhã, tenho um compromisso delicioso: O grupo de senhoras da unidade de saúde onde trabalho. Ali fazemos ginástica psicofísica e depois uma roda de conversa. É um dos momentos mais agradáveis do meu trabalho. Um dia pedi que me falassem da vida delas quando eram jovens. Não era brincadeira. Trabalhavam muito, desde crianças, cuidando de roça, de irmãos menores, catando lenha... Quando queriam comer algo diferente, nos poucos momentos em que estavam livres, iam catar mamona nos terrenos baldios, para tentar vender e com o pouco que auferiam compravam na feira um peixe seco ou um pedaço de requeijão para trazer uma satisfação diferente da comida habitual. E esta era o feijão, arroz e farinha. As verduras vinham do mato. Elas me trouxeram e fotografei várias plantas que eram usadas na cozinha do Vale do Capão em tempos idos. Maria gondó, quiabinho, serralha, berduega, mangerome, taioba etc. Plantas rústicas e nutritivas. Além disso, o godo de banana e a jaca verde esmiuçada e cozida (hoje conhecida como palmito de jaca), ou caroço de jaca cozido completavam a alimentação. Às vezes o pai trazia uma caça, ou conseguiam badogar um passarinho.
No mais era trabalho, muito trabalho. Mas não perdiam oportunidade de diversão. Conversas à luz da lua faziam parte da vida, até a hora que os pais chamavam para a cama, pois o acordar era com o chegar da luz – o sol no Capão nasce mais tarde por conta das serras (da Larguinha a leste e do Candombá a oeste) altas que o escondem, mas o dia com seus passarinhos e a luz filtrada pela frequente neblina cedo nos convida à vida desperta.

A cada 15 dias havia a quermesse, um forró com leilão de produtos doados pelos próprios habitantes com a finalidade de arrecadar fundos para a festa de São Sebastião em janeiro. Era um grande momento. E a festa do santo padroeiro era o ápice da vida, único instante em que se inaugurava traje novo de chita. Natal? Aniversário? Não, não eram comuns estas celebrações.
Depois que contaram muitas histórias de padecimentos e trabalhos pelos quais passaram perguntei a elas se eram felizes e foi unanimidade a resposta positiva. Começaram a contar como era maravilhoso por o vestido novo em janeiro, ou aguardar o forró pra se exibir (muito discretamente para os pais não castigarem), ou saborear aquele peixe, ou o converseiro enquanto catavam café – coisas simples, pequenas alegrias que ‘maculavam’ de dons o marasmo cotidiano. Riam enquanto contavam e celebravam as coisas alegres, as bramuras, a festa, os olhares, o ajudar-se umas às outras no namoro e no casamento...

Então lhes perguntei se achavam que os jovens de agora são tão felizes hoje, como elas eram ontem. Também foram unânimes no dizer que não. Estão sempre queixosos e alguns revoltados ou deprimidos. Outros não se queixam, mas tampouco se alegram. Vivem uma vida sem pontos altos. E, segundo elas, “tinham tudo”. As condições de vida hoje são maravilhosas, no entender delas. Escola, computadores, televisão, mais empregos, facilidades, carros, mil coisas. Por que não são tão felizes quanto era de se esperar?

Pensamos que o fato de terem tudo à mão e mais desejos, muito mais desejos, cada vez mais desejos, ter mais do que podemos alcançar, e, deixar de olhar com gratidão e graça o tanto que já temos é algo que nos torna infelizes. Hoje vivemos uma sociedade onde o sim virou obrigação, quase religião e, assim perdidos no enorme não que tanto sim construiu com a argamassa dos desejos a alegria vira moeda, coisa que se guarda na carteira e que some na consecução das coisas. Mas não perdura por não ser auto realização.
A coisa não se resume a isso, mas disso se faz também.

Recebam um abraço repleto de não de Aureo Augusto.


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VIAJANDO PELO PLANETA PALMEIRAS

Estávamos, eu e Natália (enfermeira do posto – minha chefa) indo para Conceição dos Gatos, com um motorista contratado pela prefeitura quando notamos que saía fumaça do capô. O motorista saltou para ver. Falei: é a ventoinha. Natália me perguntou o que era isso. Disse-lhe que não sabia, mas que sempre que carro sai fumaça por aqui é essa tal de ventoinha. Rimos os dois com a minha sapiência ignorante. Aí o motorista voltou e confirmou: É a ventoinha.

Aliás, este carro já me veio buscar 4 vezes e em todas quebrou. O motorista labuta bastante no processo de manutenção do sujeito, mas parece que os resultados não condizem com o esforço. E quando está bom, dentro da cabine tem um fedor de descarga de automóvel que me faz sentir dentro do túnel Américo Simas em Salvador. Talvez seja para eu não ficar excessivamente viciado no ar puro daqui.
Às terças ausento-me do Vale do Capão para atender os povoados de Rio Grande, Conceição dos Gatos e Lavrinha. Regra geral, vamos eu, a enfermeira e a agente comunitária de saúde que acompanha estas localidades. É um trabalho bastante agradável com um povo bom e feliz por ter a oportunidade de atendimento. Sempre tem alegrias, risos, às vezes aborrecimentos, muito pó e raramente lama. O tipo da coisa que estimula o ser humano a viver.

Habitualmente me mandam carro e motorista da própria prefeitura. Porém às vezes todos estão ocupados (época de vacinação, por exemplo) e vem alguém contratado. Cada motorista tem seu jeito – de dirigir, de se relacionar etc. – mas todos são loucos por direção. Parece algo como um brinquedo para uma criança. Como eu mesmo não curto dirigir, fico admirado. Tem uns que além da direção são apaixonados também pela parte mecânica, outros me decepcionam quando o carro quebra porque não sabem nada. Tinha um que fedia tanto que Natália ria de mim, pois eu ficava com a cabeça pra fora da janela. Outro, o carro atolou (porque caiu na vala em minha casa) e não sabia o que fazer. Tirei a roupa, peguei a enxada, cavei abaixo da roda, pus um macaco, levantei o carro e fui jogando pedras embaixo até que deu pra tira-lo dali. O homem ficava se admirando de minha experiência no assunto. Mas também tantos anos de Capão! Fiquei admirado que ele, sendo motorista, fosse tão inexperiente na coisa. Há um sumamente simpático, João, que fala o tempo inteiro de tecnologia de antenas parabólicas. Zé Alfredo era muito legal, mas ele se mudou para Barreiras. Uma pena, eu gostava demais quando ele vinha, pois sendo ele pastor evangélico conversávamos horas sobre as mensagens bíblicas. E ele é daqueles que seguem o pregam – começa que não é rico – e ademais é muito tolerante com outras religiões, coisa nem sempre comum. Além de falar de Deus, Zé Alfredo gostava muito e gastava bastante do seu tempo pescando. E quando nos encontrávamos se alegrava em contar as aventuras. Deduzo que, em oposição à regra dos pescadores, não mentia, já que é pastor.

Algumas vezes é cansativo viajar pelos ermos destas estradas esburacadas e empoeiradas, mas o mais do tempo é gostoso. Palmeiras é um planeta bem especial, tem áreas altas como o Capão, semiárido, zonas de gado, outras de garimpo, enfim, um lugar rico e belo. Vejo, aprendo, saboreio.

Recebam um abraço palmeirense de Aureo Augusto.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O OVO GORO DA CASCAVEL

Seu Elísio (o nome é falso, que ele é meio invocado e não pedi permissão) disse que o escorpião nasce do ovo goro da cascavel e é por isso que o veneno é tão forte. Segundo ele “quem for mordido por um dos dois não encontra felicidade”. De onde será que veio esta ideia?
Tem algumas pessoas que me encantam pelo seu jeito peculiar de falar e o melhor de tudo é que essa maneira de falar tem a ver com o jeito pessoal de ver e de relacionar-se com o mundo. Um deles é Seu Elísio que é bem regular no acompanhamento médico no posto. Tem problema com hipertensão e mais recentemente diabetes. No início era muito óbvio que não seguia nada da orientação. Mas sensibilizou-se aos poucos com o meu interesse – consegui até que fosse atendido por um cardiologista em Seabra, sem pagar nada – e foi demonstrando aos poucos maior cuidado. Hoje é razoavelmente provável que use as medicações com alguma correção. Mas sei que quando sai pra beber não usa o remédio de jeito nenhum. Além disso, come do jeito dele, muito especial e carregado. E como é dono de várias tiradas interessantes e sábias, agarra-se a elas e vive conforme sua verdade negando-se àquilo que não faz parte do habituado conceitual em que se arruma e se reconhece.

Acho isso lindo. Gosto. Vejo que retirar do ser humano aquilo que lhe faz sentir-se distinto é uma condenação. O processo de mudança em uma pessoa como ele seguirá um rumo distinto do processo de outras pessoas. Paciência devo ter se não consigo avançar na direção que eu penso ser a ideal. Cabe aqui até algumas reflexões quanto ao que é ideal, quanto a se é desejável o ideal que imagino, se o que ele precisa para si. Claro que sendo médico tenho o pensamento focado em sua saúde. Porém, por isso mesmo estou obrigado a respeitar nele a identidade, uma vez que não há saúde sem felicidade ou identidade. E faz parte da identidade o capital cultural e o respeito ao jeito pessoal.

Nem sempre isso é fácil, principalmente quando temos a noção de que somos donos do saber. E, na formação médica está implícito que detemos todo o saber possível, e tendemos a ver que paciente tem apenas noções rasas de saúde que às vezes são inconvenientes.

Creio que os educadores podem nos ensinar. Hoje sabemos que para melhor alfabetizar uma criança devemos reconhecer o valor de suas hipóteses quanto ao que é escrita. Sendo desafiadas a cotejar suas hipóteses com a realidade, elas vão construindo um saber. Penso que nós médicos deveríamos usar desta sistemática (aqui excessivamente resumida). Até porque há a possibilidade real de que muitas hipóteses populares sejam corretas, como, por exemplo, o conceito de alimentos remosos e depurativos. Para a cultura popular, certos alimentos tendem a gerar resíduos negativos para a saúde (remosos) enquanto outros estimulam a eliminação tóxica. Hoje, vemos autoridades médicas e pesquisadores de ponta reconhecendo (com outra terminologia) esta realidade que tem sido esquecida.

Mas no início comentei do Sr. Elísio. Realmente ser mordido por cobra venenosa ou por escorpião dos brabos é forma de não encontrar a felicidade. Amei este jeito de falar. Poético. E esta poesia que toca o coração de quem escuta nos alerta para olhar dentro dos sapatos antes de calçá-los, para que a felicidade persista mais tempo.
Lembrando que a vaidade intelectual é uma peçonha que envenena a alma e o sentimento, dela decorrente, de superioridade nos impede de estabelecer laços relacionais mais produtivos com as pessoas. Além disso, a visão meramente analítica da realidade tende a desconstrui-la enquanto lugar de prazer e alegria (sentimentos que passam a ser vistos como superficiais) tratando-a como mundo de dificuldades. O mundo, as coisas e as relações passam a ser problema, mais do que solução.


Recebam um abraço de coração, Aureo Augusto.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

VANDA (que não é Vanda) E A MUDANÇA DO CLIMA

Vanda não se chama Vanda de batismo. Seu nome é Evani... Quando era pequena seu pai chamou-a Vanda e pegou. Isso é coisa comum. Dentro da minha família eu sempre fui Gusto, meu irmão Carlos Aníbal, ficou Nick (porque Milinha – que era Palmira Emília – assim dispôs), a mais velha, Maria José, sempre foi Marizé; só Dionísio ficou Dionísio e nada mais.
No Vale do Capão tem alguns casos bem interessantes. Um dia atendi Célia, ela me deu o nome dela como Célia, porque é Célia que todos assim a chamam. Algum tempo depois a atendi no posto e aqui, nas regiões da oficialidade governamental, as coisas são com carteira de identidade, a identidade é a da carteira, então Célia ficou Sebastiana. Temos outra Sebastiana que é Neuza. Não sei bem o que Célia e Neuza têm a ver com Sebastiana, mas, como se diz vox populi vox Dei. Não discuto.
Mas dizia de Vanda. Não era de nomes que queria tratar e sim do que me disse no almoço. Ela faz a comida deliciosa que como todos os dias e depois rimos um do outro na hora da refeição (e rimos também com e dos hóspedes e vice-versa). Comentava que quando era criança e adolescente trabalhava muito na casa dos pais. Ela gostava de determinados dias quando tinha que lavar a roupa e botava a bacia na cabeça com todos os panos da casa e caminhava quilômetros até a beira do rio onde lavava tudo. Era bom, me disse, porque tinha muita água. Hoje o rio está seco.

Era bom, porque tinha muita água. Hoje o rio está seco.
Estas palavras são, para mim, atordoantes. Assustadoras mesmo. Estou acostumado a ver na televisão os documentários sobre as modificações que a Terra vem passando no passo lento do tempo. Milhares de anos e o gelo retirou-se vagarosamente do Hemisfério Norte, liberando um mundo que estava mermando sob o peso cristalino do frio. Milhares, milhões – são números geológicos. Gostava de me refestelar no conforto do tempo contado em milhões ou bilhões. Não me dá a mínima segurança saber que um caudaloso rio há uma ou duas dezenas de anos atrás hoje é um caminho onde minguam o pasto e os animais e nas margens do qual as pessoas ruminam lembranças da infância.

Moro no Vale do Capão há 30 anos e vejo que o mundo mudou e, pelo menos climaticamente não foi para melhor. Neste momento a seca assola a Bahia e o Nordeste. A pior dos últimos 60 anos. Depois teremos um período mais ameno, mas menos chuvoso do que o ameno anterior. Aqui no Capão o tempo está claro, claro demais, pois que o sol faz as folhas minguarem antes do seu tempo. Claro porque as nuvens não beijam o solo com suas gotas de frescor. Tão claro como pode ser triste o pensamento de que o mundo, ou pelo menos este mundo está se desertificando. Muitos córregos que antes eram perenes, hoje jazem desaparecidos no matorral. E com eles somem certos bichinhos que fizeram ali uma casa úmida e agradável. E olhe que o Vale do Capão é um oásis por assim dizer nessa região. Temo que o oásis metafórico se torne geográfico rápido demais.

Gosto de limo e de musgo. Agrada-me o frescor da água corrente e dos recantos úmidos deste pedaço do paraíso. Temo que o mundo esteja mudando não pelos milhões e sim pelas dezenas e até pelas unidades de tempo. Às vezes sinto que as coisas de alguma forma dirão a todos nós suas verdades e que nós escutaremos, já em outros momentos fico apreensivo.


Recebam um beijo úmido no coração, Aureo Augusto.

sábado, 9 de novembro de 2013

VI ENCONTRO DE ESF (2)

Neste momento, manhã cedo, estou vendo um grupo de pessoas praticando yoga no pátio da pousada onde ocorre o VI Encontro de Profissionais de ESF no Vale do Capão. Esta é uma das atividades que abençoam aqueles que aqui compareceram (mais de 200 pessoas).

Começou com uma fala de Roberto Crema, que deu o tom ao evento. Ele conseguiu compor um substrato intangível onde todas as subsequentes atividades encontraram onde apoiar-se. Sua fala nos conduziu por trilhas psíquicas que nos permitiram estar em condições de absorver o caráter multi do evento. Diversas nações do pensar e do sentir estão convivendo colaborativamente durante estes dias.
O tema geral foi Saúde do Homem. E as falas foram brilhantes. Comoveram e elucidaram. Analisamos e vivenciamos.

Eu, particularmente, fiquei bastante tocado com as falas sobre as dificuldades de soluções, os avanços no cuidado do homem. Somos resistentes entregar-nos ao fato de que não somos invulneráveis e preferimos com alguma frequência a morte ou a doença a reconhecer que doença não é coisa de mulher. Tomar conhecimento de que em todas as faixas etárias os homens morrem muito mais do que a mulher, pode nos fazer parar para pensar quanto a nossa vulnerabilidade.

Belíssimo ver os depoimentos relativos às experiências que estão sendo feitas em maternidades públicas em Salvador e adjacências (Rede Cegonha) com a participação de acompanhantes nos partos, chamando a atenção à participação dos maridos. E os estudos mostram que os homens que participam de partos passam a respeitar mais suas esposas e se tornam pais mais participativos e amorosos.
Uma grata surpresa foi a participação de 25 alunos do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde da UFBa. Uma turma que trouxe os ventos da juventude e do entusiasmo que se somou à impressionante disposição dos presentes a fazer valer a mudança.

Agora a tarde declina. Volto para casa cansado, depois de uma reunião com algumas pessoas da Fundação de Saúde, cujos olhos brilham. Esta reunião foi para preparar uma oficina a ser apresentada em um encontro no Rio Grande do Sul sobre práticas exitosas no SUS e 3 pessoas do posto, Wanessa (agente administrativa), Marlene (agente comunitária de saúde) e Natália (enfermeira) foram convidadas a fazer esta oficina tratando da nossa experiência. Para nós da unidade, para o Vale do Capão, para cidade de Palmeiras, isso é um prêmio aos esforços que empreendemos para superar as dificuldades de um lugar bem pequeno.

Recebemos durante o encontro a notícia de que o Instituto Sinapse com sede em Seabra firmou convênio com a Escola Baiana de Medicina para fazer um curso de Enfermagem Obstétrica aqui na Chapada, gestiona-se a Universidade Federal da Chapada Diamantina, entre outras notícias maravilhosas.
O mundo está dando voltas e isso é muito bom.


Um abraço feliz para todos de Aureo Augusto.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

VI ENCONTRO DE PROFISSIONAIS DE ESF NO VALE DO CAPÃO

Estamos todos mobilizados para a próxima atividade da nossa USF. Trata-se do VI ENCONTRO DE PROFISSIONAIS DE ESF NO VALE DO CAPÃO (dias 7, 8 e 9 de novembro/13). Uau! Chegamos ao sexto encontro. Tudo surgiu de uma necessidade nossa. Precisávamos saber mais sobre o nosso trabalho, como fazê-lo de forma mais adequada. Convidar especialistas só pra nós não dava, então Gleiton Ulhôa, o enfermeiro do posto à época teve a ideia de fazer um encontro com as equipes de saúde da família da região e assim poderíamos ter mais peso para a vinda de professores. A DIRES 27 apoiou na hora e a SESAB, através o DAB (Diretoria de Atenção Básica), também. A Escola de Formação Técnica em Saúde (EFTS) também marcou presença.

Agora estamos no sexto evento com aquela sensação de surpresa esperada. Este ano o evento será gigante, graças à combinação de um diretor da DIRES27 (Braulino Peixoto) que é um sujeito tremendamente ativo e do desejo dos órgãos gestores de apoiar a iniciativa (governo da Bahia, prefeitura municipal...). e, mais uma vez contaremos com a presença de Jorge Sola, secretário estadual da saúde, o que para nós, que moramos em um lugarejo de um lugar pequeno é algo a ser considerado. Na abertura teremos uma fala de Roberto Crema, reitor da Universidade da Paz, o que é algo extraordinário para nós; sua fala será sobre o cuidado sustentável do homem e da humanidade. Mas não fica por aí. Teremos a presença de nomes e temas de grande interesse, tais como, Anamélia Franco que vai nos desafiar (como sempre) com sua fala sobre a transformação da saúde a partir da graduação. Ademais vamos debater a saúde do homem no SUS, a participação dele na Rede Cegonha, diarreia na criança, estudaremos o hemograma, dermatologia, terapia comunitária etc.

Estamos todos vibrando intensamente no aguardo deste momento tão especial.

Aureo Augusto.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ALHO PROTEGE CONTRA PARTO PREMATURO

Lendo a revista da PROTESTE (www.proteste.org.br), uma associação e consumidores da qual faço parte, fui alertado para um assunto que me chamou a atenção e isso me levou a ler um trabalho (Intakes of Garlic and Dried Fruits Are Associated with Lower Risk of Spontaneous Preterm Delivery) publicado em julho/13 no The Journal of Nutrition.

Desde há muito que se sabe que infecções, principalmente urinárias, durante a gestação podem aumentar o risco de parto prematuro e é este um dos motivos pelos quais o Ministério da Saúde quer que as gestantes façam o exame de urina pelo menos duas vezes durante a gestação. Também sabemos que o alho, a cebola, cebolinha nos protegem contra infecções. Porém o legal deste estudo é juntar as duas coisas. Fizeram um acompanhamento de quase 20 mil mulheres e notaram que aquelas que consumiam os temperos citados e também frutas secas (passas, damasco, ameixa etc.) que contêm substâncias que atacam os micro-organismos causadores de infecções, tiveram bem menos partos antes da hora.
Mais um motivo para que abandonemos de vez os temperos artificiais.
Aliás é também outro motivo para se filiar à PROTESTE.

Recebam um abração de Aureo Augusto.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

MORONETA

Participei na semana passada do I Simpósio de Fitoterapia na Bahia, promovido pela Escola de Farmácia da UFBa com apoio da SESAB. Aprendi coisa pra dar de pau. Foi muito legal. Dizer tudo que vi e aprendi é muito para um bloguezinho, mas bem que eu gostaria.

Teve uma fala que me causou grande impressão. Com o título, Etnofarmacologia, Eficácia e Segurança, proferida por Eliana Rodrigues. A palestrante foi ótima em seu jeito de trazer a nós sua experiência, o que por si já conta bastante. Além disso, fez suas pesquisas entre diversas populações indígenas na Amazônia, Maranhão e oeste do Brasil, grupos humanos com pouco contato com a civilização ocidental e que apenas dispõe como terapêutica seus próprios recursos recolhidos na mata, com observações bem interessantes, que me puseram pra pensar.
Comentou que para o pesquisador dono de uma postura científica existem algumas dificuldades no recolher material entre os índios. Um deles é que a relação com os produtos vegetais (e outros) é muito contextual, podendo depender de tempo, local, etnia etc. de modo que uma dada planta pode ter seu uso alterado de um povo para outro ou dentro do mesmo povo na dependência da miscigenação de uma pessoa com outra tribo. Vai daí que determinada planta pode ser usada para dor de barriga em um lugar e para problemas urinários em outro. Qual destes usos é o correto? O que é correto (refiro-me ao significado da palavra)?

Ou seja, a subjetividade pode ter um papel maior do que o desejado em uma pesquisa científica. Isso me pareceu bem interessante. Facilmente descartaríamos uma das informações ou as duas por não corresponderem ao ideal da pesquisa, mas isso pode ser um erro uma vez que a realidade não é apenas o que ali está e sim, também, aquilo que significa para nós. Não proponho um dilema de Wigner no que respeita à realidade, não proponho um solipsismo. Porém anoto que a realidade não é independente da pessoa, conquanto não seja fruto apenas da pessoa.

A fala me fez lembrar Etienne Samain, em seu livro Moroneta Kamaiurá. Ali o antropólogo explica que moroneta é uma palavra que poderia ser traduzida como relato. Mas este relato pode ser uma história, um desenho etc. e a mensagem a ser passada depende do lugar onde se apresenta. Assim a história é diferente se for contada na beira do rio ou dentro da oca, e, a moroneta é carregada do fato local (no tempo e no espaço) e refletem as crenças, os modelos de pensamento etc. da comunidade. Sendo assim não podemos dizer que moroneta é uma mera narrativa (escrita, cantada ou pictórica) de um fato. Pensei comigo que quando Eliana recebia informações sobre uma determinada planta, não recebia a narração de um uso e sim uma moroneta da planta. Gostei disso e não me importa muito se é certo ou útil esta interpretação.


Recebam um abraço de moroneta de Aureo Augusto.

domingo, 6 de outubro de 2013

ORGANICIDADE E POESIA

Disse Anaxágoras filósofo de Clazomenes (sec. V a.C.):
Temos ante os olhos um pedaço de pão. Parece pão e nada mais. Se o comemos, se transforma em pele, carne, ossos, cabelos etc. A matéria mudou de uma coisa a outra? Isso não é possível. Há, pois, que supor que no pão existe já um sem número de matérias de que se compõe o corpo humano. Seu pequeníssimo tamanho nos impede de distingui-las, e só as reconhecemos por seus efeitos. Agora, quem mobiliza estas partículas e as faz organizar-se de uma ou de outra maneira?

Anaxágoras, embora tenha vivido há mais de 25 séculos atrás teve uma mente bastante lúcida. A frase dele acima, que suscita mais perguntas do que entrega respostas, mostra a agudez com que questionava os fenômenos naturais.
Nos dois séculos anteriores a sociedade grega passou por uma transformação que iria influir todo o modo de pensar e de ser da humanidade. É agradável pensar que um país de pequenas dimensões, pouco fértil, pobre em recursos materiais e com uma população diminuta veio a trazer um extraordinário contributo para a formação da sociedade humana e, registro, não apenas à fração ocidental desta humanidade. Os gregos foram formados por um amálgama de raças que em ondas sucessivas ocuparam o sul da península dos Bálcãs. Pode ser que isso tenha sido decisivo para sua competência.

A diversidade da formação dos gregos foi algo essencial para o seu sucesso em determinado momento e talvez o orgulho e a vaidade derivados deste sucesso tenham contribuído para sua decadência posterior. Aqui, onde moro, no Vale do Capão, temos uma comunidade aonde aqueles que chegaram aqui na década de oitenta do século passado logo se misturaram com os locais, que, por algum atavismo raro, mostrou-se muito abertos para assimilar propostas vindas de fora. A sociedade culturalmente mestiça que se formou deu origem a um meio psíquico que tornou o vale, um lugar bastante interessante, fervilhante, promissor, desafiante, atrativo e outros adjetivos.

Por isso vale estar neste Vale e vale pensar no velho Anaxágoras. O que será que faz com que pão vire carne e osso? É maravilhoso que esta comunidade de elementos os mais variados que é o nosso corpo seja também um organismo, ou seja, um que capaz de autonomia, de auto-organização, de reconstrução quando ferido, enfim, de poiesis.

Poiesis é uma palavra grega que significa criação. Dela vem o termo poesia. A poesia da vida na terra é construída com os corpos dos diversos seres que nela habitamos, inclusive nós, claro. Poiesis é uma característica do mundo vivo. Os organismos têm a capacidade de criar a si mesmos, então nós somos a poesia de nós mesmos.

O que você acha de pensar em si como uma poesia? Pense em si como uma poesia que se desloca no espaço e no tempo, parte de um grande livro de poemas, que merece de nós mercê, atenção, cuidado, amor prático. E é isso que somos com cada folha de grama, caracol ou abelha, as poesias se tocam e maculam o nada, ousando existir.


Recebam um beijo poético em seus corações de Aureo Augusto.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

PRESCRIÇÃO SEM/COM AUSCULTA

Trabalhar em um posto de saúde da Estratégia de Saúde da Família é uma fonte perene de alegrias, preocupações, tristezas, e mais que tudo de lições de vida. Penso que o ideal para um profissional da saúde é morar no mesmo lugar em que atende, pois isso gera uma espécie de conivência com os moradores/vizinhos de modo que com o tempo a interação é tão grande que nos sentimos sempre em casa, assim como as pessoas que nos procuram para consultas.

Uma das premissas da estratégia é que nós profissionais devemos estar próximos dos nossos clientes, e esta proximidade implica em respeito mútuo. É verdade que temos determinados conhecimentos que as pessoas que nos procuram podem não ter. Mas elas conhecem seus corpos melhor que nós. Sabem bem mais de suas próprias mazelas e do sofrimento que elas lhes causam. Estão dentro do problema. Assim precisamos aprender a auscultar, mas não apenas com o estetoscópio e sim com a amizade, no sentido proposto por Aristóteles, ou seja, filia, que é algo que não julga, conquanto constate e aconselhe se necessário. Trata-se de uma abertura que nem sempre conseguimos, mas que deve ser perseguida.
Vivemos, eu e uma senhora idosa aqui do Vale do Capão, uma experiência ilustrativa. Para mim mais um aprendizado:
Esta senhora carecia de uma cirurgia para corrigir uma hérnia. Por apresentar um quadro de hipertensão tivemos que ser bem criteriosos no acompanhamento. Ela seguiu com rigor as recomendações alimentares e medicamentosas. Depois que sua pressão estava dentro dos níveis normais havia já um bom tempo, ela procurou o cirurgião (que também é clínico geral) em uma cidade próxima. Este, quase não tinha conversado com ela e irritou-se com a medicação que usava para pressão. Ralhou com ela e modificou a orientação. Fez então a cirurgia por aqueles dias, embora a pressão dela começasse a ficar alterada. Depois da cirurgia ela continuou com a medicação indicada pelo médico. Mas a pressão disparou. Procurou-o, pagando todas as consultas, registre-se, queixando-se da hipertensão, mas ele não lhe deu assunto quando disse que com as medicações anteriores estava controlada. Na verdade interrompeu sua fala e recusou-se a discutir o assunto. Acrescentou mais uma medicação, sem resultado. Então, a senhora voltou a me procurar.

Conversamos longamente sobre como se sentia. Segundo ela, no dia de tirar os pontos o cirurgião fora bastante rude na manipulação de modo que ficara doendo. Examinei, propus um procedimento e ela pediu para retornar às medicações anteriores que lhe “faziam bem”. Na conversa, juntos chegamos à conclusão de que esta seria a melhor conduta. Cúmplices, saímos do atendimento como dois bandidos prontos a fazer um assalto do bem.
A pressão dela já normalizou.

Em alguns momentos fico triste com a minha incompetência de manter um comportamento adequado durante as consultas. Muitas vezes não escuto como deveria, ou estou preocupado com o povo lá fora esperando, o com a fome e cansaço no fim do expediente etc. Outras vezes consigo auscultar a alma das pessoas sem precisar de um estetoscópio. Nestes momentos me dá a sensação de que sou médico e isso me agrada. Afinal o diploma não garante que eu seja o que nele está escrito, quem garante é a minha atitude.


Recebam um abraço médico, de Aureo Augusto.

sábado, 14 de setembro de 2013

A MALDIÇÃO DA CIGANA

Estou fazendo um trabalho no posto que me traz grande alegria. Trata-se de um grupo de senhoras com mais de 60 anos, para atividade física e roda de conversa toda quarta-feira às 7h. Começou recentemente. Primeiro fazemos meia hora de ginástica psicofísica; em seguida conversamos sobre vários assuntos ou fazemos neuróbica. Nas conversas manifestamos nossas preocupações comuns e nos ajudamos com relatos de experiências instrutivas.

Também acontece que relembrem histórias pitorescas, como a que prometi a elas postar nesse blog e mostra-las no próximo encontro. A história parece saída de um conto antigo, mas Dalva, Petrina, Luzia, Zélia, Nadir, Beli, Demildes, Araci e Geni foram taxativas quanto à veracidade da notícia. Gessy não sabia, porque ela não morava aqui quando aconteceu o fato só vindo a casar-se com Seu Nísio, nativo daqui, muito depois. Mas vamos ao fato:
Contam que o Vale do Capão bem antigamente produzia abacate normalmente. Como sempre o povo ia à feira em Lençóis ou Palmeiras para vender os produtos daqui (banana, café, açafrão, jaca, laranja, manga, pitanga, pêssego, uva, marmelo, aipim, jabuticaba, goiaba, pitanga, galinha, abacate – nêspera não, essa surgiu depois e o povo nomeiam-na ameixa). Certa feita a era época de abacate e a turma daqui levou a fruta para Lençóis. Ali uma cigana pediu alguns para comer e ninguém deu. Então ela lançou uma maldição, bradando que amaldiçoado seria aquele lugar, pois não mais produziria a fruta. Daí, por muito tempo os abacateiros negaram seu produto à gente daqui.

Agora temos abacates novamente, embora da casa de Derinho para o sul os abacateiros não crescem bem e não produzem. Mas a produção no restante do vale é boa e os frutos são excelentes. Dalva disse que a cigana deve ter morrido já que agora produz. Todas concordaram.


Recebam um beijo sabor reminiscências de Aureo Augusto.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

VEGETAÇÃO FEÉRICA

Hoje foi dia de ir à Conceição dos Gatos. Gosto muito do povo de lá. Às terças ou vou pra Conceição (na maioria das vezes) ou para Lavrinha (1 vez ao mês). Lavrinha tem quase ninguém morando por lá, mas foi o primeiro povoado de Palmeiras, e lá, quando se matava uma galinha sempre havia que olhar a moela porque era de regra encontrar diamante. Hoje tem uma igreja que conta com uma festa anual, e nada mais. Mas as pessoas são bem agradáveis no geral. Penso nos sorrisos quando encontro eles. O povo da Conceição também tem sorrisos bem legais. Mas hoje o que mais me tocou (embora sempre me alcancem o coração os sorrisos dessa gente boa), não foi tanto a presença humana e sim a vegetação:

Havia marcado de o motorista me pegar mais ou menos 12 horas, porém acabei terminando mais cedo que o esperado porque os pacientes não foram tantos. Então tirei os sapatos, arregacei as calças e parti a pé para o Capão. Havia chovido na noite e a estrada estava fresca aos pés, as folhas na beira da estrada foram lavadas de modo que mostravam suas cores e não a da poeira e as flores puderam brilhar como se o sol fosse só para elas. Por sorte estava com a máquina e fotografei algumas (até que acabou a bateria). Fiquei sobremaneira impressionado com a quantidade de plantas que eu não conhecia. Havia uma trepadeira com um fruto que era igual à melancia, mas com o tamanho de um umbu. Uma flor branco-violácea menor que a unha do meu dedo mindinho, ostentando detalhes ínfimos, mas lindíssimos. Uma amarela parecia querer me dizer que tamanho não era documento para a alegria. Tinha um capim que parecia uma luz acesa com forma de ponta de lança destacando-se no mato e na bifurcação de uma árvore nasceu um pequeno cacto. Outro cacto destacava-se no verde da mata pela sua cor púrpura.  E os troncos das árvores escondidos sob o líquen e o musgo fingiam carnavais discretos...

Não acredito que os botânicos tenham conseguido classificar toda esta multidão de tantas plantas que eu vi hoje. Até agora estou deslumbrado.

Recebam um abraço floral de Aureo Augusto.


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O BOM TRABALHO E A INJUSTIÇA (WANESSA)

Wanessa preocupou-se e veio me procurar entre uma consulta e outra. Ela é a agente administrativa do posto e também a recepcionista. Considero-a uma funcionária exemplar e o que vou relatar fará vocês, leitores, concordar.
Foi uma situação corriqueira. Uma das nossas clientes que apresentam um quadro de hipertensão e diabetes trouxe a receita para receber a medicação da farmácia básica. Ela vem regularmente às consultas e tem o quadro controlado, ou seja, está tudo bem. Mas Wanessa notou que na receita estava receitada determinada medicação. Ela se lembrou de que aquela mulher tinha se queixado de alguns sintomas desagradáveis com uma medicação para diabetes. Havia passado mal e sofreu bastante. Então me mostrou o nome e considerou se não era aquela medicação que fizera a cliente sofrer. Lembrei-me vagamente de que realmente havia acontecido aquilo, mas achei pertinente que lesse o seu prontuário. Enquanto eu ia atender outra pessoa Wanessa providenciou o documento e me trouxe no intervalo seguinte. Então li com cuidado e vi que a medicação havia sido mudada justo para aquela que ora ela pedia pelo fato de que uma outra lhe havia feito mal. Wanessa saiu, então, satisfeita e dispensou o remédio.

Quando ela saiu me deu uma sensação agradável por pertencer à equipe de saúde da família da qual faço parte. Wanessa poderia sem mais nem menos dispensar a medicação e pronto. Mas ela está sempre atenta aos possíveis problemas que possam surgir e trata de cuidar para que eles não aconteçam. É uma mão na roda.

O interessante é que nos arquivos do Ministério da Saúde a agente administrativa não faz parte da equipe de saúde da família. Aliás, a auxiliar de serviços gerais tampouco. Aqui em nosso posto, estas duas funcionárias jogam papel essencial. Elas estão presentes em todas as reuniões de equipe (que ocorrem invariavelmente às sextas) e participam efetivamente de todas as discussões, planejamentos e decisões. Sem elas nosso posto não teria o brilho que tem, tampouco a alegria de saber-se fazendo melhor dentro de nossas possibilidades. A Estratégia de Saúde da Família é uma das coisas mais notáveis que o Brasil criou na área da saúde, mas ainda tem alguns furos, como o de não notar que o não reconhecimento destes funcionários como potenciais (ou ativos) colaboradores na consecução de uma melhor saúde para a população. Uma pena.

Outra grande pena é pensar que Wanessa quando há poucos anos atrás passou no concurso e assumiu o seu posto ganhava 1 salário mínimo e meio; agora recebe 1 salário mínimo. É bonitinho ver os discursos dos políticos sobre a saúde... Reconheço que aqui estou sendo irônico.
Gosto de estar nesta equipe, que apesar das enormes dificuldades e injustiças que sofre, por conta da conjuntura sócio política e econômica de nosso país, assim como pela mendicância moral daqueles que controlam os postos de comando, dizia, gosto desta equipe, pois apesar de tudo, mantém-se firme na labuta e, ademais, com alegria.


Recebam um abraço em equipe de Aureo Augusto.

sábado, 17 de agosto de 2013

UNIDADE PSICO-FÍSICA e ÔMEGA 3

Nairania, jovem do Capão, disse que às vezes percebia que sua pele estava triste e me perguntou se isso era possível. Respondi que sim, pois que a tristeza não é algo fora do corpo. A tristeza pertence a todo o nosso ser. Achei de uma beleza triste aquela jovem com o olhar distante falar-me isso em uma consulta. Conversamos bastante sobre esta tristeza. Sobre suas tristezas e de como o corpo na tristeza perde a saúde.

Esta constatação de Nairania é bem interessante uma vez que desde que o saber científico nos iluminou a existência, o mundo se partiu em pedaços materiais e não materiais. Dicotomizamos universo, construindo frações discretas e muitas vezes incomunicantes. Vai daí que certa feita um rapaz estava no leito sofrendo uma afecção e ao percebê-lo tenso e buscando acalma-lo, lhe disse que ficasse tranquilo. Ele me respondeu que ele estava tranquilo, seu corpo é que estava tenso. Esta resposta é fruto da enorme penetração que o pensamento científico alcançou na maneira de entender o e viver no mundo.

Tal fato resultou em enorme bem para a humanidade. Não fossem os iluministas estaríamos presos a teorias obscurantistas e ainda acreditaríamos que algumas pessoas são melhores do que as demais, podendo mandar, tripudiar, ter poder de vida e morte sobre as outras, porque fazem parte desta ou daquela família aristocrática divinamente escolhida. Hoje em praticamente todo o planeta qualquer pessoa exige ser respeitado enquanto ser humano, reconhece-se como individualidade, quer justiça igual para todos. Não foi a religião, nem a bondade dos governantes que fizeram isso, foi o desenvolvimento do pensamento independente propiciado por pessoas com a mente livre que, muitas vezes, foram perseguidas por suas ideias.

Mas como somos seres falíveis, com os acertos apreendemos erros. Vai daí que um jovem acredita que está tranquilo quando o seu corpo está tenso. Pensa que o corpo é um algo lá fora de si. Fora de si esse jovem vive. De outra parte, uma jovem, em uma pequena localidade do interior da Bahia, redescobriu que seu corpo sente tanto como sente sua parte emocional. Mais um pouco e ela se dará conta de que não há separação e que somos uma unidade. O mundo está dando mais uma de suas voltas e podemos novamente nos ver como seres íntegros e não partidos, sem deixar de lado as conquistas que a mente científica propiciou.

E a ciência nos tem trazido marcos de como há uma união entre nossos aspectos físicos e psíquicos. Sabemos que quando estamos felizes ficamos mais resistentes às enfermidades infecciosas. Também a glicemia e a resistência da pele melhoram. A circulação mostra-se mais efetiva... As vantagens corporais decorrentes de um estado psíquico são inúmeras. Recentes estudos descobrem que a depressão (que é um estado psíquico) pode estar relacionada com a deficiência de ômega 3 (w3), uma substância química.

Um exemplo disso é o caso da depressão pós-parto. No fim da gestação e na amamentação a criança tira muito w3 de sua genitora que assim pode ter deficiência da substância. As mulheres que têm deficiência de w3 têm mais possibilidade de ter depressão. Pensar que uma coisa física pode contribuir tão diretamente para uma doença psíquica nos remete à unidade somato-psíquica.

Aliás, a depressão é um problema sério no mundo e alguns estudiosos acreditam que pode ser uma inflamação crônica dos neurônios, talvez por queda do w3, já que a nossa dieta está pobre neste insumo.

Alguns estudos sugerem que depressão pode ser uma forma de doença autoimune, como o reumatismo. Sendo confirmada esta teoria vou achar bem interessante porque na iridologia há um sinal que corresponde à tendência a reumatismo e ao mesmo tempo a tendência à melancolia. Outro sinal de que somos unos. E o w3 é antirreumático.

Tá bom, você leitor, deve estar querendo saber fontes de w3; aí vai: sementes de linhaça, óleo de linhaça (mais de 50% dele é w3), óleo de canola, de cânhamo, todas as verduras, principalmente beldroega e agrião, algas marinhas, espirulina etc. Aqueles que não são vegetarianos o encontram em óleo de peixe e em peixes pequenos.

Os óleos vegetais em geral são ricos em w6 que é útil, mas em menor quantidade, já que é oposto ao w3. Azeite de Oliva não tem nem um nem outro.

Legal saber que somos uma unidade, não é? Recebam um abraço unitário de Aureo Augusto.

sábado, 20 de julho de 2013

LÍNGUA DO VALE DO CAPÃO

A professora Jacira, aqui do Vale do Capão (Esc. Brilho do Cristal) fez uma pesquisa com seus alunos, buscando resgatar as palavras usadas pelos antigos daqui. Ela me mostrou o “dicionário de termos do Capão”. Guardei-o para fazer uma coisa mais arrumada, mas o tempo foi passando e eu sem ter muito tempo... Vai daí que resolvi apresenta-lo sem nenhuma arrumação. Muitas destas palavras ainda são de uso corrente. Veja só:
CESSAR  -  peneirar
DIFRUSSE-   resfriado
CONSTIPIU- estoporo
LICUTICHO- pessoa inquieta
MALINEZA- criança que mexe em tudo
URINÓLIO  -pinico
NOLO         -  nó
ARRIBAR -  levantar
QUIÇAÇA- mato alto
CISCO - poeira
CAPOEIRA  -mato
PONGA- carona
BISAQUE – bocapiu
BITUCA  -ficar de olho
CHACULATEIRA -bule/chaleira
ENGANJO -dengo
FUXICO - fofoca
MUFINO- medroso
SANZECANO/ CURRICANO- que passeia muito e/ou pessoa que não tem muito o que fazer
LOTADO-cheio
FÁTIMA-esmalte
MIXICUM inquietação
LUTRIDA -exibida
LIVUSIA -assombração
TIRIRICA -mato que corta e muita sujeira no corpo
PATETO -sem ação ou com excesso de paciência
CAPANGA- bolsa de tecido ou couro das quais os garimpeiros carregavam seus objetos
TALANGO-pedaços de roupas velhas
GRUDE-bolo
TUBATINGA -argila
LATUMIA- palhaçada
BUJINGANGA-variedades de pequenos objetos
LANÇADEIRA-vômito
CONSOLADOR- chupeta
PRECATA-chinelo
CURRIAR- xarope caseiro
JIBEIRA-bolso
SAMIADO-guloso
USURENTO-egoísta
CANDONGAR- reclama muito
CURRIÃO-cinto
CALUNDÚ-chorão
TRAQUINEZA variante de malinesa
ESTILO-educação
TAQUIN-pedaço pequeno
MEROA-minhoca
CHAPA-dentadura
SENTINELA-velório
PINICÃO- beliscão
PITAR-fumar
SAIOTE- anágua
GUARNIÇÃO-jogo de cama
TORNO pedaço de madeira colocado na parede que serve como cabide
GALINHOTA – carrinho de mão
OBRADEIRA- disenteria/caganeira
PILERA-falta de respeito
SALIENTE- ousado
FURTUME-cheiro mal
CATINGA-  geralmente se refere à  “odores” cheiro ruim
SEROL-sujeira
MORMAÇO- formação p/ chover
SAÍDA- exibida
ESTRUME- adubo orgânico
CUTELO- faca cega
BRUTA- estúpida
ARRELIAR - rir das   pessoas
CAXIXE – chuchu
BUCHO – mulher grávida
CACARIA- casinha com objetos velhos em que as meninas brincavam antigamente
SILIMITRIDA/SILIGRISTIDA – pessoa extrovertida
NANICA – muito pequena
INSUQUIR- comer demais
AÇOITADO- corajoso/determinado
Distrair os dentes – extrair os dentes.


Recebam um abraço vocabular de Aureo Augusto.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

MODERNIDADES DE ANTIGAMENTE

Pensar nas dificuldades dos tempos pretéritos é algo recorrente nas consultas no posto de saúde onde trabalho no Vale do Capão. Ocorre que quando os idosos vêm à consulta eles sempre gostam de se estender um pouco mais comentando do mundo e das coisas, inúmeras pertinências que fazem da minha vida mais vivível, agradável.

Coisa bem frequente é rirmos do pessoal que se queixa do Capão de agora, considerando-o excessivamente movimentado e confortável. Para este grupo de pessoas Vale do Capão de verdade era o de antigamente, quando não havia mais que 3 automóveis, vendinhas sem nada mais que fumo de rolo, cachaça, bolachão mata-fome... Querem um lugar sem calçamento ou água encanada, sem luz elétrica e sem o maior de todos os monstros da modernidade, a televisão.

O povo não se cansa de rir. Nem eu. Em geral as pessoas que disso fazem apologia, dispõem de recursos financeiros para os casos de problemas de saúde rapidamente se deslocarem para o sul do país onde logo são atendidos, ou, quando cansam da vida “selvagem” partem para outras plagas com outras ideologias.

Claro que alguns não são tão radicais e desejam mais repouso para os cansaços citadinos. Porém, mesmo estes deveriam pensar um pouco mais, pois pode ser romântico lavar pratos com folha de caiçara ou de embaúba e alvejar roupa com folha de mamoeiro, mas é bem mais prático o uso do sabão (como me disseram Beli, Dinha e Nadir). Das modernidades de antigamente, são poucas aquelas que o povo idoso lamenta a ausência.

Estes dois últimos dias temos tido pouco movimento no posto. É que amanhã começa um dos mais belos eventos do Capão, o FESTIVAL DE JAZZ. Aí todo mundo está trabalhando para deixar tudo pronto para os inúmeros visitantes. Trabalho para todos, dinheiro para todos, dignidade para todos. Sei que dignidade não se compra, mas vocês entendem o que quero dizer. Quando aqui cheguei as pessoas tinham vergonha de si. Hoje se sentem importantes na própria medida. Isso não tem preço!


Recebam um abraço jazzístico de Aureo Augusto.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

SÃO JOÃO COM QUARESMEIRAS

Dizer que o mundo está diferente tornou-se um lugar comum, mas o mundo está diferente!

O inverno chegou ao Vale do Capão e compensa nos corações a seca que assolou o mundo nos últimos meses. Os córregos inda não se recuperaram e muitos sequer voltaram a funcionar, mas já podemos divisar a Cachoeira do Batista, bela como a cabeleira branca de uma cigana idosa, roçando o flanco da serra. O frio abranda os humores e encolhe as almas chamando-as ao calor das fogueiras juninas. Tudo está arrumado, bandeirolas e janelas decoradas com cortinas de chita acenando boas-vindas aos que chegam para sentir frio, ouvir música, agradarem-se os olhos das belezas todas, dançar até o dia acordar do sono que não se permitiu, beber quentão a bebida típica da festa do São João.

A novidade é que devido às coisas do tempo e do clima, desta feita juntou-se a Quaresma com o São João. O vale está tomado da beleza das quaresmeiras que povoam o verde onipresente (mesmo na seca atroz que nos afetou) com manchas violáceas e magenta. O chão em vários lugares fica topado de pétalas que criam um jogo aos olhos entre o marrom e a areia e o roxo e o carmim, criando ilusões de movimento que nos remetem aos estados alterados de consciência quando caminhamos ensimesmados nos pensamentos de vida, amor, saudade, alegria, fantasia, planejamentos e poesia. Sim, o Vale do Capão não me desilude a alma que dele espera nada menos que o feérico.

Receba um abraço junino de Aureo Augusto.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

MARCONE DO CAPÃO E OS NEURÔNIOS

Marcone sorriu pra mim e não pude deixar de me lembrar do tremendo corte no nariz que teve há alguns anos, costurei e não ficou marca. Naquele então tinha um homem acompanhando-o e pedi ajuda para a sutura. Mas o tal sujeito que era negro como meu amigo Marcone, de repente ficou amarelo. Então chamei outro que por sorte passava por ali. Esse, pouco depois, de branco ficou azul. O ferido nem estava aí, mas os ajudantes não se aguentaram. Chamei, por fim, uma mulher. Ufa! Finalmente não precisei chamar mais ninguém!

Pois bem, dizia que o meu amigo sorriu pra mim. Sabendo que estou de férias, ele sabia também que naquele momento não tinha outro médico e a pessoa que sofria era uma senhora muito querida, por mim e por ele. Disse-me somente: “Médico, motorista e polícia não tem hora”. Ri. Assim fomos juntos, estrada afora conversando, pois ele é excelente (entre outras coisas) para conversar. Depois do atendimento, me trouxe em casa.
Devo acrescentar que além de ser uma pessoa bem agradável Marcone é motorista de uma das vans que fazem a linha Vale do Capão – Seabra. Como todos os dias vai a Palmeiras ou Seabra e como é pessoa bondosa o povo lhe pede inúmeros favores e ele faz tudo com uma boa vontade que dá gosto.
Ele me falou que não anota nada do que pedem. Fiquei surpreso com isso, porque sei que é uma grande e diversificada quantidade de tarefas. Tem que comprar medicações, levar recados, fazer depósitos, ir no fórum (quando isso acontece leva uma calça na sacola, pois só anda de bermuda – veste a calça resolve o que tem que fazer e tira – esse Marcone é uma figura), comprar coisas em diversos tipos de lojas... É muita coisa! Perguntei por que não anota. Ele me respondeu que não quer ficar mal acostumado.

Este diálogo foi bem legal pra mim. Sempre tive péssima memória para as coisas do dia-a-dia. Há alguns anos resolvi melhora-la, e tenho conseguido de modo que hoje lembro melhor as coisas do que há 15 anos. O cérebro, ao contrário do que muitos pensam, precisa de atividade. Tem que ser desafiado.
Muitas vezes alguém diz que não vai gastar neurônios gravando números telefônicos (isso é bem difícil para mim), ou estudando determinado assunto. Este é um erro grave. Desafiar o cérebro nunca é “gastar neurônios”. Os neurônios quando são chamados a vencer um desafio produzem substâncias neurogênicas que fazem com que eles fiquem mais sadios. Certas ramificações dos neurônios, chamadas dendritos, se multiplicam e quanto mais dendritos tem um neurônio, mais capaz e sadio ele é. E quanto mais dendritos, quanto mais neurônios ativos, menos possibilidade de doenças chamadas de demências (o Alzheimer é uma delas). Muitos fatores estão relacionados a uma doença, e não podemos dizer que as demências são resultado de preguiça mental crônica, mas o fato de não aprender coisas novas, não fazer cálculos, não estudar, não ler, enfim, o fato de não desafiar o cérebro tem o seu papel.

Com o advento da escrita, e pelo fato de que cada vez mais a nossa sociedade depende dos registros escritos, fomos ficando dependentes de agendas, notas, notebooks entre outros meios de fixar fora da nossa mente a memória das coisas. Tudo isso é útil e maravilhoso, mas devemos tomar cuidado, como sempre, com o excesso. Já que não é a coisa mais excitante e divertida do mundo decorar listas telefônicas, podemos desafiar nosso cérebro com o aprendizado de outra língua, aprender novidades científicas etc.

Aliás, temos outra situação dada pelo progresso. Das facilidades que o progresso nos trouxe, tais como o automóvel, a televisão, o computador, telefone, e tantas outras coisas boas, ganhamos a possibilidade de ter uma vida melhor e mais confortável. Porém o excesso (como sempre) nos faz deixar de beneficiar o nosso cérebro, pois este adora exercícios físicos. Sim, além de melhorar a circulação na cabeça, a atividade física estimula o desenvolvimento dos neurônios e a produção de novos neurônios a partir de células tronco presentes no encéfalo. Veja que legal!
Bem faz o meu amigo Marcone!


Recebam um abraço dendrítico, de Aureo Augusto.

sábado, 8 de junho de 2013

FÉRIAS 3 - MAIS COMENTÁRIOS S/O I ENCONTRO NORDESTINO DE PICs EM JUAZEIRO

Esta é a última postagem sobre o Encontro de PICs de Juazeiro. Quero partilhar umas poucas das inúmeras coisas que encontrei ali. Quem leu a última postagem verá que me repito em alguns comentários, mas as pessoas citadas merecem, tenham certeza disso.

A Enfermeira e parteira Suely Carvalho foi de uma propriedade e simplicidade (paradoxalmente) espetacular em suas falas no encontro. Admirável. Tem larga experiência com o parto domiciliar e é uma pena que não seja escutada como deveria. Pouco antes de ir ao Encontro li em jornal de Salvador uma matéria intitulada “Gestante peregrina quatro dias por hospitais em busca de atendimento”. Isso é fruto da hospitalização do parto. Entender o parto como patologia, como algo a ser tratado como doença leva a condutas que cada dia mais vão sobrecarregar o serviço público. O hospital e o domicílio deveriam ser vistos como complementares no atendimento à parturiente, como o que ocorre na Holanda, país que tem o menor índice de infecções puerperais e o maior índice de parto em casa.

Aproveito esta chamada sobre Suely para comentar que as filas enormes que o SUS acumula decorrem da medicalização da vida. Hoje somos chamados a ver cada um dos nossos problemas como passíveis de solução sem nenhum investimento emocional, ativo, pessoal, sem subjetividade. Somos tratados como objetos inertes diante da ação da doença a ser combatida pela intervenção salvadora do profissional da saúde. Urgentemente precisamos repensar o modelo de saúde. Faz-se necessária a adoção real da Estratégia de Saúde da Família em todos os municípios do Brasil e um amplo trabalho nos moldes da Terapia Comunitária do prof. Adalberto Barreto, ou da ação de Celerino Carriconde, como forma de atender a uma necessidade óbvia, mas pouco considerada, que é a participação efetiva do sujeito no seu processo de cura. Não espero que os clientes saibam mais que os médicos (contra-argumento usado frequentemente), mas espero que nós, profissionais da saúde em geral, entendamos que temos no cliente um sujeito com partes materiais (biológicas), dotado de subjetividade e que faz parte de um entorno socioambiental. Do ponto de vista da valorização econômica do médico pode ser útil medicalizar a vida, mas isso com o tempo irá gerar cada vez maior congestionamento dos serviços de saúde, para dizer o mínimo.

Vejam palavras de Celerino Carriconde: 1. “Onde está a palavra está o poder”; 2. “Quem não participa está desempoderado, está doente”; 3. “Não mais revolução para o povo, mas com o povo”. Em uma fala sobre a apropriação do conhecimento pela comunidade. Conheçam este sujeito e vão se admirar dele.

Chorei de emoção com a apresentação da professora Lenice Maia, sobre o trabalho que ela e equipe fazem no Hospital das Clínicas de Recife. As fotos dos pacientes encantados com corais, teatro e música... Os resultados quantificados em gráficos mostrando a recuperação e o conforto dos internados é algo de arrepiar o mais duro dos homens.

A professora Anamélia Franco da UFBa, falou sobre o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde (BI). Fiquei com a maior inveja dos estudantes que passam por este curso que, em realidade introduz os jovens (e também os não jovens) em um mundo bem mais amplo do que aquele das estreitezas de uma carreira estrita. O contato com aqueles que são alunos da BI confirma amplamente isso. Tenho certeza que quem cursa BI e depois se dedica à medicina, fisioterapia etc. será profissional que se destacará no cuidado. Aliás Anamélia foi uma das pessoas que se destacaram, mas para mim, não apenas pelo conhecimento e competência, sim também pela cara angelical e ao mesmo tempo traquinas. É especialista em futucar as pessoas para fazê-las se mexer.

O professor Nelson Filice Barros deu um show em sua fala. Sua presença era de tranquilidade e paz enquanto nos conduzia por uma apresentação pelos caminhos do conhecimento das PICs e mostrava até as relações de poder que estão por trás da atitude da sociedade frente às PICs. Queria ver sua fala por escrito, pois não deu para anotar tudo. Excelente!

Sei que estou sendo injusto com outras pessoas que brilharam neste evento em Juazeiro, sob a batuta do brilhante Alexandre Barreto, mas teria que escrever um livro se fosse dizer tudo. Não assisti a nenhuma mesa que possa ter dito “essa não valeu a pena”. Espero que estas poucas linhas para tão grande evento sejam úteis e estimule a quem leia.

Recebam um abraço estimulante de Aureo Augusto.


quinta-feira, 6 de junho de 2013

FÉRIAS 2 - PRIMEIRO ENCONTRO NORDESTINO DE PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES (PIC)

O encontro aconteceu em Juazeiro, na UNIVASF e foi simplesmente espetacular!!!
Tinha um subtítulo: Pela reconstrução do modelo de cuidado. Fizeram com que até a prática de recepção das pessoas fosse um modelo de cuidado. Alexandre Barreto, da UNIVASF, foi o coordenador do evento e ele e sua equipe merecem elogios e mais elogios. É claro que aconteceram algumas situações problema, mas foram contornadas com grande cuidado, alegria e amor pelo grupo que nos recebeu. Fiquei feliz e devo dizer que aprendi também com os azulzinhos (toda a equipe usava blusas azuis) além de ter aprendido nas oficinas e mesas de debates. Muito bem, muito bom!
Uma pena não ter a possibilidade de dividir-me em inúmeros Aureos para participar de todas as práticas corporais, minicursos e rodas de diálogos. Queria ir pra tudo, mas tive que escolher. Acabei fazendo dança terapia (Rejane Amaral), terapia comunitária (equipe do Dr. A. Barreto) e bioenergética social (Regina Araújo). Havia uma prática corporal que pratiquei por alguns anos com o querido amigo Gian Carlo Coretti, aqui no Capão, o Rio Abierto, mas optei por dança terapia que não conhecia. Amei a vivência que fiz, mas fiquei com um gostinho de querer viver de novo o Rio Abierto, inda mais que quem conduzia era Carmem de Simoni. Mas não dava pra fazer tudo...

Além disso, assisti às rodas de diálogo (também com dificuldade de escolher ante tantas oportunidades de ouro) sobre educação popular, PICs na formação em saúde, parto como experiência amorosa (um retorno às raízes e naturalidade do corpo), que me encantaram. Fiz parte de uma roda de diálogo sobre experiências do manejo da fitoterapia e da medicina natural na atenção primária e de uma mesa sobre histórias do pioneirismo das PICs no Nordeste do Brasil.

Conheci alguns personagens que desde há muito queria conhecer, como Suely Carvalho – parteira que se destaca pelo centramento calmo e pela amorosidade –, Adalberto Barreto (criador da Terapia Comunitária), Anamélia Franco – professora da UFBa – que só posso definir como uma pessoa deliciosamente instigante. Tive a grande oportunidade de finalmente conhecer Celerino Carriconde, um sujeito sempre pronto, disposto, feliz em partilhar conhecimentos em plantas medicinais e alimentação, assuntos em que poucos lhe alcançam.

Ainda assisti a algumas apresentações de trabalhos realizados que me encheram os olhos de lágrimas de emoção. Um deles foi apresentado por uma estudante da UFBa, Camila (acompanhada de Eduarda). O interessante que o trabalho realizado pela equipe que elas duas faziam parte foi o disparador de minha presença no Encontro. Pois me filmaram e a professora Anamélia mandou o filme para os organizadores do evento que, a despeito de minha cara de tabaréu, me convidaram para falar aqui. Ganhei um grande presente.

No último momento algumas pessoas foram homenageadas pelo pioneirismo nas PICs, eu entre elas, e o fechamento teve música, alegria, esperança renovada. O próximo será em Recife nos dias 4 a 7 de junho/2015. Vá! Vamos!
Na próxima postagem quero comentar algumas coisas que me vieram neste Encontro.


Recebam um abraço cuidador de Aureo Augusto.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

FÉRIAS 1: FILME, MORTOS VIVOS e outras coisas

Estou de férias! Estava cansado, necessitava. Agora estou ainda mais cansado, porém bem feliz com as últimas aventuras.
Primeiro fui a São Paulo, para a pré-estreia do documentário PRA LÁ DO MUNDO, dirigido por Roberto Studart, cujo tema é o Vale do Capão. Será lançado no circuito comercial em Salvador em 14/6/13 e em São Paulo em 21/6/13. Fui um dos entrevistados e com Zé Duarte (do Instituto Riachinho) e mais Roberto partilhamos uma mesa de conversa com as pessoas de Sampa. Foi assim que reencontrei pessoas queridas tanto de lá quanto de cá. Reencontrar amigos que não vemos há muito dá uma sensação ao mesmo tempo muito íntima e expansiva. Mesmo quando nos encontramos no mundo virtual, este encontro não se compara à beleza no coração que é abraçar a quem amamos!

 O filme é muito legal, fiquem ligados para assistir, e não deixem de notar a fotografia impecável.

Graças a esta viagem pude rever a bela São Paulo, cidade bem especial para mim. Bonita e cheia de museus, teatros, cinemas, vida cultural exuberante. Uau! Também um lugar para viver aventuras pitorescas. Foi assim que saí um dia a caminhar e me perdi. Fiquei contente, pois a sensação de estar perdido é legal – no dia seguinte me telefonou Taunay Daniel, queridíssimo filósofo, que reside em Campinas e me regalou com uma frase de Fernando Pessoa: “Ninguém nunca se perde, Tudo é caminho e verdade” – e continuei meu périplo. De repente me vi em meio a um lugar onde as pessoas pareciam ter saído daqueles filmes (que nunca assisto, mas vejo as propagandas) de mortos vivos andando a esmo. Um deles se aproximou, me pediu comida e lhe respondi que não tinha, então me pediu dinheiro e lhe falei que tampouco lhe daria dinheiro. Falei numa boa e numa boa ele se retirou. Foi depois deste diálogo que reparei que havia outros e que estavam em péssimo estado. Jogados na calçada, alguns sem sequer um papelão para servir de cama. Notei gente que parecia haver saído de classe social mais abastada. Os olhares perdidos e o desinteresse pela vida eram notáveis. Porém não me senti ameaçado. Retirei-me sem ser perturbado exceto pela sensação presente no espaço da energia de que algo muito estranho ali se passava. Depois me disseram que entrei em uma cracolândia!

Pouco depois, já reencontrado no caminho, fui interpelado por uma simpática jovem que trajava duas tábuas enfeitadas, nas quais colara 4 cadernos. Apresentou-se como recolhedora de histórias. Amei isso. Ela pedia que as pessoas escrevessem histórias em seus cadernos, o que fiz e só então notei que estávamos sendo filmados por um rapaz; devia ser algum projeto artístico. Gostei da ideia. Tomara não se importe que eu a imite algum dia.

Como sempre estar em São Paulo me marca fundo e me traz reflexões.

Depois retornei para Salvador, de onde, 2 dias depois embarquei para o 1º Encontro Nordestino de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, mas isso eu conto daqui a uns dias neste mesmo blog. Esperem um pouco e saberão das maravilhas pelas quais passei por lá.


Recebam um abraço viajante de Aureo Augusto.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

RÁPIDAS NOTÍCIAS DO VALE DO CAPÃO


No transporte, nas conversas, na beira da fogueira num velório, na feira, ou escutando a conversa dos outros, descubro coisas interessantes deste lugar que tanto amo. Aqui um a seleção de curtas notícias daqui:

1. Enquanto íamos para Palmeiras, D. Lourdes e D. Marilza conversavam das coisas de antigamente. Lembraram que D. Mariquinha fazia uns tijolinhos de licurí com rapadura que até hoje ninguém faz igual. Para elas aquele petisco jamais será igualado, o que é verdade, pois o sabor não é apenas aquele da coisa, mas também do contexto.
Aliás, apesar de ser um lugar tremendamente remoto, o Vale do Capão não escapava de modismos que aconteciam em outros lugares: Lourdes também se lembra de que aqui no Capão houve uma época da língua do “p”.

2. Seu Manoel Messias da Conceição dos Gatos é conhecido por Hélio que seria o nome escolhido por seus pais para batiza-lo. Ocorre que inda muito pequeno teve varíola e quase morre. O padre veio batiza-lo encontrando-o enrolado nas folhas de bananeira, e disse que não poderia chamar-se Hélio e mudou para Manoel Messias com aquela autoridade que os padres tinham antigamente. Assim é nos documentos, mas ficou com dois nomes, um do padre e dos documentos e outro, mais usado, o do povo e dos pais.
O interessante que este negócio de nome no Capão tem suas coisas interessantes. Conheço duas Sebastianas que não usam o nome: Uma é Neuzinha (que de inha não tem nada), a outra é Célia. Foram batizadas com nomes que homenageavam o padroeiro do lugar, porém nunca usam. Outros dois apodados Sebastião, só são conhecidos por “Tio”. Já com Celina, foi nas consultas que descobri que seu nome é outro na certidão, mas gosta de Celina e assim ficou até mesmo para os pais, cuja escolha havia sido outra.

3. D. Sebastiana manteve-se fiel ao nome. É muito idosa, muito mesmo e, é surda como uma porta, fazer consulta com ela não é fácil, porque tenho que gritar para que me escute, mas é um doce de pessoa e por isso, mesmo ficando rouco gosto de vê-la – embora meu sonho seja vê-la com aparelho auditivo. Vivia só e sua pressão e glicemia estavam no lugar com o uso adequado de medicações e dieta. Porém, depois que a irmã chegou para viver com ela, a pressão desregulou. A irmã diz que não comer sal dá anemia. Um claro exemplo de como as superstições podem interferir negativamente na saúde.

4. O Sr. Manoel Messias do Riacho do Ouro me disse que antigamente o povo usava folha de embaúba para lavar pratos, pois sai uma espuminha. Também usavam angico da beira do rio com o mesmo resultado. Ele é uma figura! Quando comecei no posto ele brigava porque sua pressão nunca ficava legal apesar de usar os remédios. Com o tempo conquistei-o e mudou a alimentação. Hoje se alegra com a pressão normal. Outro dia me disse sobre isso: “Mas também, tô cumeno igual ao doutor”.

5. Duas jovens senhoras aqui do Vale encontraram uma bela forma de salvar seus casamentos. Não vou poder dizer os nomes delas para evitar problemas. A primeira se separou do marido porque ele estava bebendo muito, mal influenciado por um tio e um sobrinho que gostam da farra. O tio inclusive brigou com ela porque dizia que ela queria mandar nele. Ela se separou dele por uma semana e depois voltou a pedido do cônjuge. Disse que foi bom porque “ele agora está igual à manteiga” de tão dócil. A outra também fez o mesmo, ela disse que também se separou quando o marido “tirou onda”; não sei exatamente o que significa este “tirou onda”, mas acredito que ele estava querendo mandar demais nela. O fato é que depois que se viu só ele pediu para ela voltar e se comportou bem legal desde então. Não estou preconizando o método, mas penso que o resultado, pelo menos nesses casos, foi um sucesso.

6. D. Eleni, irmã de Deli – um sujeito bem especial aqui do Capão –, me disse que acha que homem bonito só serve pra enfeite. Quando jovem marcou um encontro e já estava “arrumada”, que acredito seja algo assim como bem perto de casar, mas não seguiu adiante porque o cara era muito bonito. Doutra feita, separada do marido, um mulato lindo quis sair com ela, mas não aceitou porque era bonito demais. A conversa começou porque ela disse que Tuza, seu sobrinho, era bonito. Ela também disse que foi embora do Capão (para São Paulo) porque desde criança tinha fobia de gafanhoto. Abandonou este lugar aos 16 anos. Realmente morria de medo. Ontem viu um e começou a chorar desesperadamente. Marejou os olhos apenas ao falar do caso.

6. Em dezembro de 2009, Hiandra, uma jovem mãe de dois filhos, disse uma frase que gostei tanto que guardei: “A gente é sempre alguém atrás”.

7. E D. Alair disse: “Quem não quer ser velho morra de mal de 7 dias”.

8. Já Landinha é danada; digna filha de Seu Anísio e D. Argentina, pessoas bem especiais. Embora seja mãe de muitos filhos, sua cara e seu sorriso denunciam uma pessoa pronta a fazer traquinagens. Ela é trabalhadora como poucos. Não corre do serviço, mas é impressionante como gosta de rir e brincar. Contou-me que quando era criança sua mãe às vezes falava das coisas que tinha feito de malinagem na infância.  Contou que o pai ia bater nela por algo que havia feito e para se defender fingiu um desmaio. Foi um Deus nos Acuda e a mãe dela não deixou mais o pai bater, botou algodão com álcool pra ela respirar e ela fingiu que acordou aos poucos. Aí um dia D. Argentina foi bater nela e ela caiu no chão com tanto vigor que chegou a doer o osso da bunda, mas a mãe percebeu a treita e deu-lhe uma boa surra. Ou seja, imitar não vale, tem que ter criatividade até pra não levar surra.

O Vale do Capão, como qualquer outro lugar do mundo, tem seus pequenos segredos e o povo daqui é tão pitoresco quanto a bela paisagem. Às vezes penso que é uma pena que os turistas (ecoturistas, turistas de aventuras etc.) que aqui aportam não notam a riqueza humana aqui presente e perdem de conhecer um tesouro do mais alto valor.

Recebam um abraço humano de Aureo Augusto.

domingo, 19 de maio de 2013

HISTÓRIA DE VIDA


Em 2004 escrevi esta poesia como parte de uma exposição de pinturas que fiz na cidade de Seabra. Relendo-a me deu vontade de partilhar com vocês.

HISTÓRIA DE VIDA
O tempo imprime sua marca,
Vinca rostos, fere pedra e madeira
Rompe a singular estrutura
Estraçalha e refaz significados
Que marcam cada individualidade;
Ferro, casa, cidade, cadeira
Braços, árvore, serra, saudade
Cada coisa sofre o efeito da idade
E é nisso que se fez a história
Que define o que somos e à coisa
aquilo que ela é e somos nós
nesta vitória inglória
do existir sobre o não ser!

História de vida: a marca inalienável
O vinco, o sinal, o registro indelével
Do tempo que passou inelutável.

Só viveu quem sofreu a infalível
Dor que sempre nos visita, o inefável
Prazer do qual somos fruto improrrogável,
As marcas deste intemperismo inacabável
Que é experimentar o acontecer inadiável
Que ocorre entre o nascer sempre inábil
e o adeus impreterível.

Abraço poético para todos de Aureo Augusto.