domingo, 30 de março de 2014

TEMPEROS "NAS PARTES"

Foi há um bom tempo, tem já muita água passada por debaixo das pontes aqui deste Vale abençoado desde o acontecido que agora vou contar.
Fui chamado prum parto lá pras bandas do Militão. A mulher, me disse a parteira que me esperou na porta, estava “incomodada” havia várias horas, mas não despachava. A coisa não ia adiante, estava devagar.

Adentrei a casa, daquelas de antigamente, sem janela, e caixas de papelão fingindo-se de gavetas, mais pra escura que iluminada; a mulher, uma moça na verdade, branquela e com cara de que não entendia o que se passava. Naquela época não tínhamos posto da Estratégia de Saúde da Família por aqui e muito menos agentes comunitárias de saúde, e nem todas as mulheres compareciam à consulta em Lothlorien, a instituição onde eu atendia gratuitamente a gente daqui. Assim nem sempre tinha pré-natal apesar da minha insistência. Aquela moça não havia frequentado e acredito que era isso que lhe dava aquele jeito de que vivia um segredo revelado sem mais nem que. Antes mesmo de me acostumar ao escuro e de ver o rosto leitoso no meio das sombras, uma coisa me causou surpresa: O forte cheiro de tempero caseiro, dos bons – tinha coentro, pimenta, tinha alho – dava pra abrir a fome... Quase brinco com a coisa dizendo que ia almoçar por ali mesmo, embora não fosse coisa de almoço já que os lampiões estavam acesos.

Deitei-a com cuidado, conversei um pouco, fiz perguntas e brinquei até que relaxasse. Então apalpei o barrigão. Quando pus o estetoscópio de Pinar e escutei o coração a 140 bpm (batimentos por minuto) em QIE (quadrante inferior esquerdo), já bem baixo, o cheiro de comida ficou bem forte. Então fui fazer o exame de toque, pra observar dilatação e altura do cabrito (ou cabrita) que estava por vir. Aí se revelou o segredo do apetitoso cheiro. Ela estava com “as partes” (termo comum para se referir à genitália) temperadas. A parteira, preocupada com a demora tinha enchido a vagina dela de especiarias. Nunca tinha visto aquilo e achei bem estranho. Mas a criança já estava quase nascendo e apenas me preocupei em limpar a comida, com medo de o cominho irritar os olhos do rebento.

Depois do parto, quando as comadres cuidavam da mulher, lembrei que a excitação da parede posterior da vagina estimula a contração uterina. Por isso o tempero. Não há dúvida de que a parteira conseguiu aumentar a contratilidade do útero, mas conversando com a parturiente ela comentou que ardeu muito. O método foi, portanto, bastante drástico.

O Vale me reservou muitos momentos de deliciosas aprendizagens em todos estes anos nos quais participei das vidas de tantas famílias e os partos foram momentos inesquecíveis e ricos como fonte de alegrias e lições.

recebam um abraço temperado de Aureo Augusto


quarta-feira, 26 de março de 2014

AS COMADRES

Uma coisa muito legal dos partos aqui no Vale do Capão é a comadreada que aparece.  Hoje em dia o povo está mais “civilizado” e a coisa já não é como antes, embora este costume ainda exista.

Era assim: O marido, um filho mais velho, irmão, tio ou a vizinha vinha em minha casa me tirar da cama, do almoço, da pintura de um quadro ou do descanso para me avisar que a mulher estava “incomodada”. Era esta a palavra para trabalho de parto. Às vezes era diferente. Um dia Ditinha me pegou na estrada, escuro, chegando de uma cansativa viagem, porque Reizinha, sua filha, estava com um parto complicado (coisa boba, colo anterior, bastou reduzir e o cabrito pulou fora – e não parou mais de pular, pois esse sempre foi danado). Noutra oportunidade arrumava a mala para ir a Salvador atender e me chamaram. Lembro que me preocupei com a viagem do dia seguinte. Naquele momento meus olhos divisaram minha bolsa de runas. Então resolvi tirar uma runa pelo parto, saiu Wunjo, a runa da alegria, invertida. Pensei: invertida ou não é a runa da alegria. E saí.

O parto demorou bastante e a mulher ficou muito agoniada me perguntando a cada momento se a criança estava viva. Preocupava-se demais e tive que fazer algumas manobras para que as coisas acontecessem a contento. Mas no final tudo deu certo (e já fiz o parto do filho deste menino que naquela noite nasceu). Voltei pra casa apenas para pegar a mochila e viajar. Só então me lembrei da runa. Então abri o manual das runas escrito por Ralph Blum onde encontrei a frase inicial do texto sobre wunjo invertida: “As coisas levam muito tempo para frutificar. O processo de nascimento é longo e árduo e aparecem medos pela segurança da criança que está dentro”. Sorri e dormi no banco desconfortável enquanto o ônibus vencia a distância.

Mas escrevia da presença das comadres nos partos. Quando chegava já lá estavam várias senhoras; todas prontas para ajudar e me olhavam interrogativas quanto ao que deveriam fazer, éramos uma equipe. Atentavam a cada atitude minha, riso, fala, jeito – depois descobri que deduziam a qualidade do acontecimento conforme meu jeito – e recitavam suas ladainhas em silêncio. Então, durante a espera era muito legal o converseiro. A mulher era o centro ao redor do qual todo o mundo girava naqueles instantes. Mas às vezes ela ficava com a cabeça encostada no regaço de alguma comadre e ali ficava por algum tempo descansando. Nestes momentos sempre tinha alguém que se lembrava de algum caso, alguma história e contava a boca pequena. Às vezes a própria parturiente contava algo e ria. Tinha uma coisa de poesia naquelas longas noites em que as sombras eram o pano de fundo do ato de dar a luz.
Depois que o parto acontecia, céleres, arrumavam tudo. Eu ficava sentado na sala vendo o sol me dizer que o dia cantava filho da noite. Então tudo limpo e arrumado me chamavam para dar os conselhos finais (ou iniciais de uma nova vida). Então recebia o abraço tão grato e doce de cada uma daquelas senhoras, beijava a testa da parturiente e do bebê e saía pro mundo das coisas comuns.


Recebam um abraço comadresco de Aureo Augusto

sexta-feira, 21 de março de 2014

RADICALISMO E INTOLERÂNCIA

Sou uma pessoa tremendamente curiosa e com uma sede de aprender que beira o vício, devo reconhecer. Por isso quando Mariane Riani colocou no face book sua inspirada frase: “Radicalismo me cheira intolerância e julgamentos”, quis aprender mais, e procurei-a para conversar.

Per si a frase é suficiente, embora não custa nada fuçar mais um pouco. Neste momento estou lendo um livro maravilhoso e a autora me apresenta alguns postulados que remetem à educação das crianças. Tenho pena de não haver lido o texto há muito tempo, quando meus filhos eram bem pequenos. No entanto incomoda-me aquela coisa radical, uma postura tal que só aquilo é vero, só o que funciona – todo o mais é erro. E esta sensação fica mesmo naqueles momentos do texto em que a autora se lembra que pode haver verdade (quem sabe?) em outra postura. Por isso quis ver com Mariane algo mais e, nossa conversa trouxe algo mais ou menos assim – lembrando que as conversas são sempre maiores que as escritas.

Ela nota que o radicalismo pode ser muito útil pelo fato de que a ênfase que põe no próprio ponto de vista faz com que ele se destaque, apareça, atraia a atenção, torna-o mais socializável, insere-o na pauta de pensamentos das pessoas, dissemina-se em jornais e revistas, acaba sendo um fenômeno midiático. Desta forma aparecem grupos a favor e contra, ocorre o debate, surgem aqueles que concordam, mas que não acham que seja tão radical como querem os radicais e por fim a sociedade pode se transformar. Um exemplo disso é o movimento feminista, cujo radicalismo (alguém se lembra das mulheres jogando fora os sutiãs?) atraiu a atenção, foi e ainda é amplamente debatido e neste rastro grandes foram as conquistas das mulheres em nossa sociedade sabidamente machista.

No entanto, alerta Mariane, o radicalismo tem “embutido a intolerância” (entre aspas porque a frase é dela). E a História aí está para corroborar sua fala. Um exemplo foi nazismo foi um fenômeno onde o radicalismo era a norma e claramente intolerante. Também os fundamentalistas religiosos não apenas seguem as normas das suas religiões como querem eliminar todos aqueles que não partilhem suas crenças; não toleram opiniões diversas. E esta é uma das mais terríveis formas de tentativa de dominação. Hanna Arendt nos conta que o pior totalitarismo é o da verdade. Quando cremos que o nosso radical modo de ser é a verdade absoluta, tudo o mais é mentira e há que ser eliminado. Esse é o caminho lógico segundo o qual aparecem anomalias como Torquemada, Pol Pot, Hitler, Stálin, Pinochet, Charles Manson, entre outros. Estes homens eram ‘donos da verdade’ e seu radicalismo continha em si e como corolário natural a intolerância. E em quanta medida esta certeza tão absoluta a ponto de matar e morrer pela tal verdade absoluta não apenas esconde as próprias incertezas, incompetências? Quanto não é uma tentativa de esconder os próprios defeitos, pondo-os nos demais?

Sendo até necessário, o radicalismo é uma ‘faca de dois legumes’ como diz a gente do campo. Um lado passível de doçura e melhorias outro amargo como afiada lâmina sobre a carne, cabendo a nós o cuidado do bom senso, pois que os produtores de novas ideias já estão atarefados demais parindo-as para nós.

Recebam um abraço radical de Aureo Augusto (rsrsrs).



Post Scriptum: Registre-se que o termo radical refere-se a raiz, cerne. Mas a palavra radicalismo acabou por ser vista como algo negativo, quando na verdade deveria referir-se apenas a quem segue cuidadosamente uma ideia, sistema ou teoria.

quarta-feira, 19 de março de 2014

UMA MOSTRA DE SAÚDE!

Cheguei em casa! É uma delícia chegar em casa. As montanhas, brilhando sob a luz morna da tarde, a lama na estrada e a cor verde profundo das folhas me disseram que houve chuva e chuva é sempre uma alegria (sei que não é assim em todos os lugares, mas o Vale do Capão – onde chove bastante – tem bom escoamento).

Estava na IV Mostra de Atenção Básica, em Brasília. Pense um evento maravilhoso!

As milhares de pessoas ali presentes (tinha mais gente do que todo o município de Palmeiras, onde está o Vale do Capão) estavam quase todas muito a fim de partilhar estratégias, conhecimentos, atividades, experiências, vivências com o intuito de fortalecer o SUS, e fazer com que ele fique mais legal. Foi inspirador encontrar tantas pessoas superando dificuldades tremendas para contribuir com a saúde dos demais. Emocionante. Aprendi a rodo, tomei apontamentos e mais apontamentos, descobri tanta coisa boa que, embora já esteja de férias não resisto e vou à reunião de equipe na sexta-feira para apresentar aos demais que sei ficarão felizes. O nosso posto apresentou 7 trabalhos os quais foram aprovados para mostrar, mas infelizmente, por diversas razões nem todos puderam ir, o que foi uma grande pena. Cumpre então que os que foram digam o que viram. Sei que no serviço público tem um bando de gente que só está ali para esperar a aposentadoria. Pessoas que cumprem horário a contragosto e no final de semana se esbaldam. Trata-se de um erro terrível, pois é ali, no trabalho que passamos a maior parte do nosso tempo e é ali aonde temos inúmeras oportunidades de realização e de alegria – com o produto do suor, relacionamento com os colegas etc. Seja como for, muitos perdem, literalmente, seu tempo vendo o tempo passar na espera de um dia dali sair, como moradores de penitenciárias sem grades.

Mas além destes funcionários penitenciários temos milhares e milhares de pessoas dedicadas, com os olhos brilhando, superando dificuldades e gozando alegremente dos frutos de suas atividades, mesmo quando estes são parcos. A humanidade é uma coisa linda! Estas pessoas tornam-nos lindos.


Recebam um abração maravilhado de Aureo Augusto

segunda-feira, 10 de março de 2014

ASSOMBRO-ME

Assombro-me com o mundo!
Sim, suas preciosidades miúdas e grandes, seus desatinos de beleza e dores. Assombra-me o mundo.
As formigas construindo seus edifícios invertidos e os cupins desenhando a madeira, colibris disputando a beleza com as flores, o sabor do manjericão e da manga. Ah! O sabor dos lábios de certas mulheres; o pipilar tímido dos pássaros iluminando a manhã prévia ao sol; o sabor elegante de seios palpitantes; a magia incauta de fenômenos como o rádio ou o computador; a beleza pulcra de um céu de inverno derramando-se sensual sobre o vale esmeralda no côncavo das serras; o macio da cama e o calor que nela se introduz à minha chegada; a luz que a lua imagina antes de nascer, desenhando borlas no mundo, fazendo bordados de folhas; o grito lancinante de uma mulher parindo e o silêncio casto de uma mulher parindo; a cor absurdamente perfeita do capim gordura nas margens do caminho; o perfil de um vaso de barro ao sol na feira de domingo; os campos acima de todas as casas, lá no alto, espalhando-se em ondas verdes obedientes aos recursos do vento; o traço feroz de um edifício contra a pureza do céu íntegro e vazio ou o mar deslizando-se por sobre si mesmo, aferrando-se às pedras para não mergulhar em si, voltar; lembro a vagina de uma mulher que amei como uma criança ama o seio de sua mãe, uma flor, uma orquídea de beleza ímpar e odor a açucena; o desenho impossível das serras; o jogo das cores nas asas da borboleta, estrelas no céu coalescendo e marcando o irrepreensível azul negro com sua luz tranquila...

O mundo desfia-se, o mundo desdobra-se em maravilhas, o mundo canta-me canções que fazem de mim um alguém em permanente assombro.

Assombro-me às vezes da minha insensibilidade quando descansa em meu peito a tristeza e meus olhos anuviam-se da vida, perdem-se do dom amado que é o ato apenas de existir; espanta-me quando descubro que não estou sendo amante desta quantidade avassaladora de surpresas que me chegam a cada ver, ouvir, tocar, cheirar, degustar...

Toca-me a casca das cigarras recém-transformadas em rudes pássaros, a cor inigualável do peito da ariramba com seu bico construído de impecabilidade, o sabor único da comida de Vanda (que faz minha comida todos os dias e sorri discreta quando ao final do almoço digo para mim mesmo: “Nossa, passei bem!”).

Agrada-me sobremaneira ver o Morro Branco acender vermelho no entardecer, a marca dos pneus nas estradas, a dança da água exalando do asfalto à passagem dos caminhões; o  som da flauta ou do violão, um piano na noite, tambores fazendo das ancas o que as almas pedem; porque tanta beleza distribuída tão ubiquamente? E mesmo quando o sabor é acre e vermelho duro, ou quando os olhares são desconsiderados, ou quando cruza o céu a luz da morte, surpreende-me o existir.
Não há lugar em que o mundo não se revele uma maravilha, não há caminho sem que caiamos nas armadilhas das surpresas e a maior delas é quando (e tantas vezes) esquecemos-nos de deleitar-nos pelo que se nos oferece, ou, no mínimo, abrirmos os olhos de espanto com o que testemunhamos.

Recebam um abraço atônito de Aureo Augusto

sexta-feira, 7 de março de 2014

O ETERNO NOVO

Fiz este texto inspirado em uma frase de uma amiga, em 17/2/14, mas esqueci de posta-lo, aí vai:
À ESPERA DO ETERNO NOVO
"É necessário compreender o eterno
para descobrir o novo."
Mariane Riani
Olho-me no espelho da minha idade: não sou mais o mesmo; nunca fui... Os acontecimentos construíram ao redor de mim e em mim um mundo de mudanças que fizeram de mim uma coisa bem diferente do que era ou sonhei. Foram muitas as vezes em que defini o como deveria ser e tratei de subordinar o futuro ao que eu acreditava de como deveriam ser as coisas. O tempo capoeirista deu um sem número de rasteiras nas verdades estabelecidas por mim.

Olho o espelho do mundo e dou-me conta de que o novo, ou aquilo que nunca aconteceu, está em alguma dobra do tempo me esperando. As surpresas são a rotina e apenas não percebemos com frequência pelo simples motivo que nos recusamos a ver. Os padrões são algo tão fácil e tão comum que não notamos (ou não queremos notar) que as repetições esperadas são sustentadas pelo inesperado e que o conhecido é feito do Grande Mistério.
O que há de novo sobre a Terra? Nada que não seja eterno.

Talvez essa introdução possa parecer um platonismo, mas não é isso. Não me parece que necessariamente tenha que existir um mundo das ideias perfeito sendo este aqui, onde nós seres viventes experimentamos a existência, sua representação no plano das imperfeições. Não entro nesta discussão que Popper aceitou quando elaborou seu conceito de mundo três, com uma semi-independência (é um mundo das ideias semelhante ao platônico, mas que não é prévio como aquele e sim pós-criado pelo ser humano). É uma discussão para sábios, mas ocorre-me que há algo de inominado por trás de todos os nomes. Existem coisas que transcendem o tempo. Estão para além da finitude das coisas às quais estamos acostumados. Há uma humanidade que transcende o tempo da vida de cada um dos seres humanos. Há uma geologia além do tempo das montanhas que cercam o vale em que vivo.
Repito, não entendo tanto assim de existências das ideias ideais, porém o mundo nos informa uma infinidade de coisas objetivas ou não que nos desafia exatamente pelo de novo que nos trazem, mas este novo, só será acessado em sua plenitude quando temos de base a consciência daquilo imutável. Talvez um exemplo simples seja o fato de que em nosso tempo tecnológico os dilemas éticos continuam sendo os mesmos. Existem coisas que não mudam e é estas a raiz do novo. No fluxo dos acontecimentos a cada dia encontramos coisas novas, mas o fluxo aí está desde o início.

Há uma lenda zen que conta de dois jovens monges que viviam em mosteiros vizinhos e um deles encontrava o outro quando ia para o mercado. Vai daí que o monge Tai (inventei o nome) que varria o passeio perguntou a Chen (idem): Aonde vai? Ao que ele respondeu que ia aonde seus pés o levavam. Tai tomou aquilo como um desafio, ou seja, enganchou com a resposta. Então perguntou a seu preceptor o que faria para não ficar num beco sem saída. O mestre dele disse que na próxima oportunidade perguntasse: E se não tivesse pés?
No dia seguinte Tai perguntou a Chen para onde ia. Chen levemente respondeu, assinalando a brisa: Aonde o vento me levar. Esta resposta não permitia que ele perguntasse pelos pés... Aí seu mestre sugeriu que perguntasse: E se o vento parasse?
Tai aguardou ansioso o dia seguinte e quando Chen passou perguntou-lhe aonde ia. Chen com a mesma tranquilidade de sempre respondeu que ia ao mercado, deixando Tai sem ação.
Não mude com a mudança é a mensagem. E, no entanto, o mundo muda constantemente. A questão é que não temos que provar nada ao mundo e só percebemos isso quando percebemos o eterno por trás do novo. Já que muda tanto o mundo, aí está sempre a mudança. Estando eu no fluxo, reconhecendo-o posso ver o que é realmente novo emergindo.

Preparo-me para dormir e sei que amanhã serei outro, embora meus amigos e colegas me tratem como se eu fosse o mesmo. Vou sonhar à noite, perguntando-me se sou o sonho que me sonha ou se sou o sujeito do sonho. O amanhecer me encontrará mudado, mas serei o mesmo de sempre, apesar de mais alguns cabelos brancos.


Recebam um abraço novo de Aureo Augusto.

terça-feira, 4 de março de 2014

SUS

Tenho um jovem e grande amigo chamado Kian, que com seus familiares passou o carnaval aqui em minha casa. O rapaz se interessa pelo mundo com aquele olhar aprendiz que caracterizava os filósofos gregos dos séculos VI e V a.C. Aquela coisa de querer saber para além da mera formalidade das autoridades. Gosto disso. Quando nos despedimos ele me pediu que escrevesse algo sobre o SUS, pois me ouviu defende-lo. Por isso, estas linhas:
Há mais de 20 anos atrás uma senhora aqui no Vale do Capão, onde resido, apresentou-se à consulta. Logo que a examinei suspeitei de mola que é uma degeneração da placenta. Fiquei bastante preocupado, pois sabia a conduta médica, mas não sabia como conseguir realiza-la, pois a senhora não dispunha de recursos para exames e procedimentos necessários. Vai daí que telefonei para meus pais e pedi-lhes que a recebessem como hóspede em sua casa, o que acederam de imediato. Então contatei o Dr. Sérgio Uderman, que foi meu colega na escola, que topou fazer a ultrassonografia sem ônus. Viajei para Salvador com ela, levei-a a fazer o exame que confirmou minha suspeita. Depois procurei médicos amigos meus que tiveram a bondade de interna-la no Hospital Roberto Santos e os procedimentos foram realizados com êxito. A senhora ficou convalescendo em casa de meus pais, voltei ao Vale para minhas atividades e retornei para busca-la. Até hoje goza de boa saúde.

Mas esta boa saúde dependeu de várias boas vontades. Nem sempre é fácil (e nem sempre por má vontade) conseguir exames, cirurgia ou o que mais, quando se tem necessidade premente. Porém, hoje, graças ao SUS, se tenho suspeita de mola, basta preencher uma solicitação de exame e a pessoa se dirige à secretaria de saúde onde será marcada a data, e de posse do resultado faço nova solicitação para a cirurgia. A mulher será levada de ambulância e será devolvida a sua residência do mesmo jeito.
Pode parecer pieguice, mas quando estou atendendo a uma gestante no posto de saúde onde trabalho com uma equipe maravilhosa de pessoas que gostam e querem trabalhar, sempre fico tocado quando solicito uma bateria de exames no princípio da gestação e depois no 3º trimestre. Aquela mulher grávida terá garantia de que seus exames se realizarão. Isso é maravilhoso!

Outra mulher procurou o posto porque foi internada devido a problemas cardíacos e depois recebeu uma correspondência do SUS perguntando como foi o atendimento. Quando lhe expliquei do que se tratava ela ficou visivelmente feliz e me pediu que a ajudasse a responder. Ela foi internada por um problema que em outros tempos não seria sequer diagnosticado, pois jamais teria recursos para pagar. Morreria não fosse o SUS.

Por isso me aborreço quando vejo críticas destrutivas ao Sistema Único de Saúde. Suspeito que há um interesse em acabar com o sistema. Talvez eu esteja equivocado, por isso vou fingir que as críticas são sempre de pessoas bem intencionadas. Estas cometem um erro comum. Querem que as coisas aconteçam do dia para a noite. O SUS ainda está em processo. Acontecem problemas e mais problemas, os recursos a ele destinados são poucos, investe-se excessivamente em ambulatórios e pouco em modificação de hábitos nocivos. Há uma leniência para com os fatores que geram ou agravam doenças, como aqueles decorrentes do consumo de alimentos excessivamente salgados, carregados de substâncias prejudiciais destinadas a edulcorar, conservar, embelezar... Mas está sendo oferecida uma saída para aqueles que não podem pagar médicos caros ou planos de saúde, digamos, maquiavélicos.

Acompanho o dia a dia de meus vizinhos e vejo a satisfação deles com o fato de que hoje dispõem de certos confortos associados à saúde tais como o direito a atendimento digno. Sei que em muitos lugares as filas são enormes, o acesso aos exames é demorado, o atendimento nem sempre é respeitoso... Mas o SUS não é apenas uma lei, mas uma ação. Todos nós que trabalhamos na saúde somos o SUS. Quando tratamos mal a uma pessoa que nos procura, esta poderá acusar o SUS, mas somos nós os responsáveis. Se o salário não é suficiente, ou se falta material, a culpa não é da pessoa que nos busca solicitando orientação. Ele pode até ser papel quando votou em pessoas não confiáveis, mas este papel é mais remoto do que o de algum burocrata inoperante, negligente ou desonesto, que impede que as coisas aconteçam como recomenda a lei. Ou quando o enfermeiro, médico, auxiliar, motorista enfim, o funcionário, descumpre o seu dever de servidor público e de ser humano. A pessoa doente não deve ser penalizada por nossas insatisfações, incompreensões, incompetências ou desonestidade. Cabe a nós enquanto funcionários e enquanto cidadãos vigilar, comentar, protestar, propor e mudar.
O SUS não é para ser desativado e sim para ser completado, para o bem de todos.

Recebam um susabraço de Aureo Augusto.