segunda-feira, 27 de outubro de 2014

MEMÓRIAS NASCENDO DE NOVO

Que onda, velho!
Foram cinco partos que aconteceram no maior pique. A turma de novatos no planeta veio com pressa e, como de resto todas as crianças da atualidade, nasceram a fim de saber aonde chegaram. Sai a cabeça, e antes dos ombros se descolarem de dentro da mulher, os pequenos já abrem os olhos e ficam assuntando o que tem ao redor.

O último foi particularmente mobilizador de minhas memórias. Bárbara chamou a equipe do PARIR – Parto Domiciliar Planejado, e lá fomos nós de mala e cuia, ou melhor, de panelas, instrumental e piscina. Não deu pra encher de novo a piscina, pois a cabrita pulou fora e Mariane mal teve tempo de calçar as luvas pra receber a coisinha fofa.

Os partos têm a peculiaridade de nunca um ser igual a outro. Sempre é surpresa, sempre há um mistério que nos deleita quando nos harmonizamos alegremente com o que vai acontecer (em parte este caráter misterioso do parto e da mulher faz com que nossa ciência, tão irracionalmente afim da segurança, busque o controle total do mesmo através o máximo de mecanização, hospitalização e procedimentalização cirúrgica que embora muitas vezes salvem vidas, nem sempre são necessários e não deveriam ser necessariamente desumanizados, deveriam sim incluir-se no sentido de mistério que nos traz o partejar). Um parto nunca é igual a outro, inda que seja a mesma mulher.

Mas, além deste mistério dos partos, o que me mobilizou foi o fato de que o pai da criança, que ali estava cuidando e cuidador, protetor mesmo, presente junto a sua esposa e filha, Adelson, foi ao nascer o primeiro parto que acompanhei aqui no Vale do Capão, há praticamente 30 anos atrás.
Fui chamado por Dinha e Almir, seus pais e lembro muito bem que enquanto esperava vi pai e irmãos preparando caldo de cana (que saboreei) na maquineta manual, feita com toros de madeira. À época pensei no esforço que faziam para sacar o suco da cana com aquela máquina; ocorreu-me perguntar a mim mesmo se a energia gasta era realmente compensada pelo esforço e ri comigo em silêncio, quando fui chamado para receber e dar as boas-vindas para mais uma alma encarnada.
Agora, depois de tanto tempo, ali estava eu, vendo a cabecinha de Valentina ser recebida por Mariane enquanto Lívia (a doula), Robélia (avó) e Adelson olhavam por Bárbara em seu trânsito para um novo momento.

Enquanto isso, alheia a tudo, Samanta, a irmã mais velha, 4 anos, dormia profundamente. Depois da saída da placenta, Robélia foi acordar Samanta para que conhecesse sua irmãzinha, e ela respondeu: “Agora não, estou descansando, depois eu vejo” e continuou ronronando como uma gatinha em um mundo onde Valentina e Samanta podem se encontrar livres das limitações que a matéria nos presenteia.


Recebam abração parturiente de Aureo Augusto.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

TURISTAS SEM NOÇÃO

O Vale do Capão tem atraído cada vez mais turistas, o que muito me agrada já que isso não apenas dinamiza a economia local como contribui para que os moradores ampliem o seu já alto carinho pelas belezas naturais daqui. Eu gosto de conversar com o pessoal que chega pra visitar este lugar e estas pessoas tão hospitaleiras, no entanto tem alguns turistas que são excessivamente folgados.
Ontem cheguei a casa à tarde e havia um carro que entrou no lugar onde eu moro e parou junto a minha casa, bloqueando o acesso a minha garagem. Era um carro com placa de São Paulo. De início pensei que fosse algum amigo meu que chegou sem avisar (coisa rara, pois meus amigos têm a decência de avisar quando vêm) e saiu pra dar uma volta enquanto me esperava. Esperei um pouco e fui pintar. Pena que me concentrei demais no trabalho e não vi quando saíram, pois desejava comentar com eles o quanto foram invasivos e desconsiderados.

Com certeza eles desejam ser bem recebidos pelos moradores daqui, querem sorrisos e hospitalidade como todos os turistas, mas esquecem de que “relacionamentos” são vias de mão dupla onde todos devem dar a sua contribuição.

E vocês pensam que esta é a primeira vez que acontece isso? Não. E não é só comigo. Vários moradores se queixam disso. Dinha, vizinha que mora depois da ponte comentou que as pessoas deixam os carros tão colados na porta dela que dá até dificuldade de sair. Queria que vocês vissem a casa de Dinha e o espaço que tem enorme de modo que não há sentido em fazerem isso. Que pessoalzinho!

Ainda bem que a maioria tem polidez (urbanidade)! Acho estas palavras bonitas. Comte-Sponville em seu belíssimo Pequeno Tratado das Grandes Virtudes – um livro que deveria ser lido por todos – comenta que a polidez não é uma virtude, mas nos prepara para desenvolvê-las. Isso me agrada. Aliás, é interessante pensar que a palavra urbanidade vem de urbano. É que aqueles que vivem em cidades são levados a desenvolver maior senso de que a nossa liberdade termina quando começa a do outro, senão não ia dar para as pessoas viverem juntas. Para viver juntas em harmonia há que seguir certas regras. Quem mora no campo, onde as distâncias são maiores isso não é tão incisivo. Vai daí que o nome urbanidade veio a ser criado, dando batismo ao ato de estarmos atento a que o nosso comportamento não venha a agredir ou prejudicar aos demais. Seria bom que os donos dos carros que bloqueiam as pessoas tivessem um pouco mais de urbanidade.

Espero também que aqueles desprovidos de polidez prefiram passar longe do Vale do Capão, deixando-o para que aqueles que querem realmente estar em harmonia com o local e seus moradores.


Abraços turísticos de Aureo Augusto.

sábado, 11 de outubro de 2014

UM POUCO DE SOCIAL NO AÇÚCAR E NO SAL

João Carlos Gomes é um empreendedor da cidade de Seabra, que tem marcante preocupação com o social e o ecológico (se é que podemos separar estes aspectos da vida). Gosto de conversar com ele quando vou àquela cidade e deleito-me em seu entusiasmo que o leva a estar sempre na frente no quesito inovação.

A última vez que fui a Seabra encontrei-o e conversa vai, conversa vem, ele manifestou sua preocupação com os descaminhos da alimentação em nossa sociedade. O papo chegou neste ponto porque ele me descrevia o trabalho que estava fazendo junto ao sindicato rural focado na valorização do trabalho agropecuário. Ele quer ver um maior reconhecimento do valor do camponês. Ou seja, na contramão da história, uma vez que desde há milhares de anos os camponeses são explorados pelos poderes constituídos, em geral pelas armas ou pela força de leis ou regras consuetudinárias que mascarada ou explicitamente impõem uma vida subserviente ao trabalhador rural.

Desde que, há cerca de seis mil anos, instalou-se o patriarcado na sociedade humana e o poder da destruição representado pela espada, pela lança e pelo punhal tornou-se mais importante do que as estratégias criativas de produção de saber, conforto e bem estar, enfim, desde que nós a maior parte dos seres humanos aceitamos a dominação de inescrupulosos guerreiros e reis em detrimento daqueles (ou devo dizer melhor: daquelas?) que produziam bem estar, que quem produz o alimento tornou-se menos valioso para os jogos sociais do que quem explora e domina pela força. Mesmo hoje, nestes albores do vigésimo primeiro século, ainda viceja esta ideologia tão destrutiva. Mas existem pessoas como João que querem labutar para que os produtores rurais possam produzir alimentos e reconhecer nestes alimentos algo precioso, sagrados mesmo!

E ele manifestou que em parte esta labuta tem a ver com o fato de que para ele hoje em dia as pessoas só degustam dois sabores: o açúcar e o sal. Segundo ele, e reconheço que está certo em grande medida, a mor parte das pessoas está completamente dominada pela ampla presença de quantidades absurdas de açúcar e de sal nos alimentos e desta maneira perdem o sentido de saborear as sutilezas dos alimentos. Deu o exemplo dos salgadinhos e refrigerantes que são uma verdadeira praga. Instou-me a que ficasse observando os carrinhos nos supermercados (coisa que já fiz) para ver a quantidade destes produtos que são consumidos pelas pessoas. Padronizadamente a comida será gostosa na medida em que contenham grande quantidade de sal ou de açúcar, ou dos dois. E isso é passaporte para a doença. Ele deu o exemplo da depressão. Para ele a epidemia de depressão que existe no mundo tem a ver com a alimentação, no que concordo em muito.

Leiam Helion Póvoa, O Cérebro Desconhecido, e verão que certas bactérias que amam o excesso de açúcar que ingerimos contribuem para a redução da serotonina – mediador químico neurológico relacionado à alegria. Também somos levados a entender que há uma possibilidade de que uma boa parte dos casos de depressão tenha a ver com uma forma de autoagressão aos neurônios (semelhante aos reumatismos) derivada de alterações intestinais que por sua vez influenciam o cérebro.
Ainda não sabemos aonde vai parar esta experiência alucinada que fazemos com a industrialização galopante que impomos à alimentação, mas tenho certeza de que o futuro não será dos melhores para a população, conquanto a indústria vá se fartar.

Por conta disso admiro as pessoas como o meu amigo João que em uma cidade na região central da Bahia, luta, contra todas as possibilidades de êxito, pelo bem comum, tentando habilitar as pessoas à velha palatabilidade de antigos costumes, acenando-lhes a modernidade de uma nova relação de valor do camponês frente à sociedade.


Recebam um abraço esperançoso de Aureo Augusto.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A FAMÍLIA "PAM" a DEMÊNCIA e a VIDA NO CAMPO

O British Medical Journal comenta que as pessoas de mais idade que usam os Benzodiazepínicos (Diazepam, Clonazepam e outros “pam”) acima de 3 meses têm 51% mais chance de desenvolver demência do que aquelas que não usam. Isso me deixou bem preocupado.

Ocorre que estas substâncias estão se tornando parte normal da vida das pessoas. Mesmo na zona rural. Antigamente o interior (como nos referimos ao campo) estava associado a uma vida simples e tranquila de um lugar em que as pessoas viviam uma vida mais harmônica e dormiam bem. Hoje a realidade é bem diferente.

Há alguns anos estudos vêm mostrando que o consumo de medicações para dormir e para tranquilizar vem aumentando nas áreas distantes dos grandes centros. Constato isso na minha vida aqui no Vale do Capão, aonde atendo aos vizinhos há 31 anos. Com alguma frequência recebo pedidos para renovar receitas de Clonazepam, pois as pessoas facilmente se viciam nesta medicação e não conseguem mais se livrar. Tento demovê-las do uso sem sucesso. Até o presente só consegui com aqueles que começaram a usar há pouco tempo.

O ritmo de vida que caracterizava as metrópoles em grande medida vem sendo imitado no mundo camponês. As pessoas hoje têm maior quantidade e variedade de compromissos. A comunicação via televisão ou internet estão aproximando as pessoas de forma acentuada de modo que a sistemática de vida das daqueles que vivem em diferentes ambientes acabam se confundindo em um modelo se não único, pelo menos semelhante. O ritmo circadiano que marcava o dia-a-dia camponês está sendo agredido cada vez mais uma vez que subordinamos nossas vidas à batuta dos horários televisivos e das atividades do mundo virtual. Não importando onde, ontem deixou de ser um lugar a ser repetido já que hoje indica um amanhã afastado da biologia que será incorporada sabe-se lá como à virtualidade tecnológica.

Então se intranquilizam as almas e insoniam-se as pálpebras. À mente negamos o repouso enquanto corpos tensos movem-se nos leitos tão desordenados quanto as emoções, sensações, desejos, pensamentos e sentimentos tantas vezes açoitados pelas tempestuosas vidas.
Clonazepam e primos são muletas para estas paralisantes mobilidades. Longe de mim demonizar as medicações. Reconheço situações onde têm elas o condão de ajudar, porém noto que na intranquilizante vida a que nos submetemos os próprios profissionais de saúde desordenam-se nos atendimentos tornados rápidos por obrigatórias correrias implicadas em um sistema que obriga à pressa para consecução das metas bancárias ou estatísticas. Então a queixa de insônia deixa de ser uma questão na vida de um ser e dentro de um contexto. A pressa impõe uma solução sem profundidade e uma medicação rápida e eficaz, ainda que a efetividade no tempo seja questionável. A solução se mede em milímetros da corrida dos números no écran do relógio digital e não na medida da vida vivida vividamente.

Superficializamos a vida por pura pressa e descolamos do profundo em nós. Vai daí que a família PAM torna-se uma essencialidade, assim como suas corolárias sequelas.


Recebam um beijo sonolento de Aureo Augusto.