domingo, 6 de dezembro de 2015

O DONO DO CORPO

Foi Gilsinho quem me contou na feira, hoje mesmo, aqui do Vale do Capão, entre as conversas de preocupação com os incêndios (que pra Deli, só vão parar mesmo na hora em que a chuva pare de só beijar de passagem os campos e fique um pouco mais acariciando as serras), vendendo um cafezinho para um, para outro, e bolos e pão de queijo que Dalva faz feliz.

Gilsinho é dessa gente cuja conversa nunca é de se jogar fora, mas muito de verdade que fala o faz disfarçado em riso e piada. Por isso diz o que crê e pensa, o que quer e pode, sem ofender. É homem de não ferir ninguém, evita, não por medo, mas por natureza própria. Disse para mim que quem falou para ele foi o pai, que por usa vez aprendera de um velho bem velho amigo.

Primeiro me perguntou (e aos demais ao redor) quem é o dono do corpo e eu (e ninguém) soube responder. Então explicou que cada órgão um dia contava para todos saberem suas funções e qualidades. A boca falou do comer e do falar, o nariz do respirar e saborear o cheiro das coisas, os ouvidos dos sons e do alerta que podem trazer, a cabeça do elaborar os pensamentos que no corpo crescem e por aí vai... apenas o 150 calou, mas agiu e se fechou.

E o corpo ficou um tempo sem descomer. Adoeceu, inchou, sofreu, e foi piorando e piorando. Enquanto se “distinhorava” o médico foi chamado e percebeu o mal.
Com muito cuidado abriu o ânus e este permitiu o esvaziamento do corpo. Foi assim que todos os órgãos tiveram que render homenagem ao dono do corpo, o cu.

Recebam um abraço em gargalhada de Aureo Augusto.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

PREVENÇÃO DOS INCÊNDIOS - A VOZ DAS MULHERES DAQUI

Os incêndios ainda castigavam a Chapada e ao redor do Morro Branco, a imponente pedra vertical que tenho bem defronte de minha casa, quando comecei este texto. A turma que labutava na intenção de apagar as chamas se exauria sem sucesso definitivo. Em um momento parecia que passou, mas no fundo das profundas fendas que caracterizam a região dormitava o fogo. O dia e o sol tomavam o céu e as chamas respondiam, lançando-se ao alto e queimando o que restava do mato ressequido.

Por isso, voltei a tratar do assunto com as mulheres idosas que participam da ginástica na quarta-feira, no posto de saúde aqui do Vale do Capão. Mais uma vez elas me alertaram que antigamente não se preocupavam muito com isso. Pois que o fogo parava na mata. Todos os anos se incendiava os altos ermos. Os vaqueiros se encarregavam de queimar os Gerais no estio, para que, logo após a chuva, pudessem trazer o gado para comer o broto novo. O fogo consumia a vegetação baixa, gramíneas em geral, cujas raízes conservavam a vida apesar do calor. Mas o incêndio não atingia os locais de mata, pois ali a humidade garantia a vegetação. Dalva alertou que naquela época chovia mais e a mata era mais úmida que hoje. O que dava mais segurança.
Porém as outras comentaram que estas queimadas impediam um excesso de baceiro. Assim chamam o mato morto, folhas secas, que se acumula no solo. É esse baceiro úmido que segura a onda do fogo na mata, mas na serra, quanto mais baceiro, mais poderoso é o incêndio e tão forte que pode alcançar as ramas das árvores, queima-las, às vezes, irremediavelmente. Nestes casos a recuperação é demorada e difícil.

Um amigo, Emanoel Requião, me contou que uma floresta nos Estados Unidos que era sumamente preservada, quando pegou fogo acabou. Então perceberam por lá que pequenos incêndios são bem-vindos! Ele usou uma frase tocante: “A Chapada é amiga do fogo”. Comentou que certas sementes carecem do carinho quente para no devido tempo brotar. E isso coincide com o testemunho das nativas que me disseram que depois do fogo, logo com as primeiras chuvas, a macela brota lindamente e a produção é maravilhosa. Segundo elas o candombá (ver post anterior) também brota e flore que é uma beleza. Acrescentam que certas plantas comestíveis só aparecem nos campos depois que há queima, tais como a Maria Gondó e o Cariru de Veado.
No trabalho com as idosas ocorreu-nos que a prevenção possível para estes grandes incêndios é garantir pequenas queimadas com a supervisão e vigilância dos brigadistas, para eliminar o excesso de baceiro. Assim não teremos grandes devastações periódicas.

Penso que em se aceitando esta proposta, haverá que fazer um plantio de espécies nativas ao redor das nascentes com o fito de engrossar a mata ciliar lá em cima, nos Gerais, para que os córregos e rios estejam mais protegidos. Desde que por lá ando tenho o sentimento e, mesmo, a sensação, de que o povo planta que vive bordeando as águas correntes mantêm uma relação tensa com o radiante elemento fogo, coisa que não devemos esquecer.

Ademais, no criar soluções devemos despir-nos de conceitos estanques e definitivos (como: o vaqueiro é o vilão porque põe fogo), sem, contudo, abrir mão da vigilância (como: controlemos e estudemos o real impacto do fogo do vaqueiro, ou, do fogo no roçado). Podemos avaliar que o fogo do vaqueiro ou do roçado a longo prazo vai reduzindo a área de mata ciliar, daí replanta-la.
Já no interior do Vale do Capão há muito baceiro na mata; será que seria bom reduzi-lo? E esta samambaia de canicho, venenosa, que está afogando as árvores? Ela não era tão frequente antes, está aumentando e pega fogo fácil. Será que não é bom reduzir sua presença? Bom, temos muito a pensar e discutir nesta questão da prevenção de incêndios; gostaria apenas que os antigos moradores pudessem também dizer o que pensam.

As mulheres me pediram para fechar esta arenga avisando a todo mundo que o Vale do Capão em si não queimou. Foi doloroso para todos nós ver as serras em chamas e a fumaça poluindo o vale, mas felizmente nenhuma casa foi atingida, e o vale em si, segue verde.

Abraço idoso para todos de Aureo Augusto. 

sábado, 14 de novembro de 2015

INCÊNDIOS

O Vale com sua forma uterina sempre me dá (e não apenas a mim) a sensação de que o mundo lá fora está efetivamente lá fora. Guerras, crises econômicas, atentados terroristas... O mundo parece uma coisa distante, conquanto na realidade experimentemos, eu e os demais moradores, o de bom e o de problemático que estes nossos tempos nos entrega.

Agora olho pela minha janela e vejo o fogo descer entre o Morro Branco e a Serra da Larguinha, coisa que nunca havia visto antes. Força a passagem, insinua-se, insere-se entre as brechas que a montanha criou, agiganta-se por sobre o mundo e vence o denodo dos brigadistas do ICM-Bio, os voluntários, enfim, todos aqueles que ousam afronta-lo.

O incêndio alastra-se e de uma forma estranha e, mesmo, mágica, gera em mim uma sensação de proximidade com tantas mazelas que incineram o bom senso neste mundo, como a tragédia em Paris nesses últimos dias, ou o desastre em Minhas Gerais. Um incêndio na porta da minha casa me mostra que o mundo está na porta da minha casa!

Grato pelas tantas pessoas que me têm enviado mensagens, e solidarizo-me com tantas outras que agora estão à deriva no Mar Mediterrâneo, choram seus mortos em uma Cidade Luz, sofrem as mazelas de um derrame de dejetos de mineração, ou são sacrificados à mão inumana do fanatismo. Tão pequena a minha mazela ou dor, se não fosse de alguma maneira a continuação aqui de algo maior e estranho que vem de muito longe. O fogo no Morro Branco veio por detrás, de muito longe, me disseram, sei disso... inda assim grato pela solidariedade, não só aqui como alhures. Essa é uma resposta, e das melhores!


Aureo Augusto

domingo, 25 de outubro de 2015

UMA PLANTA INCRÍVEL: CANDOMBÁ

As rodas de conversa após a ginástica das idosas, nas quartas, antes de começar o ambulatório do posto, são uma fonte inesgotável de conhecimentos instigantes para mim. Quero partilhar com vocês algumas das últimas coisas que aprendi.

Aqui na serra tem uma planta, chamada candombá. Tem um caule rude, grosso e curto, mal chega a meio metro e suas folhas são ásperas, ocupando o cimo do pequeno tronco. Suas flores são enormes, violetas com pistilos amarelos, e por sua forma lembram o hibisco, por aqui conhecido como graxa. Quando o mundo pega fogo lá nos gerais (os planaltos em cima das serras que circundam o Vale do Capão) o candombá fica preservado. As folhas sofrem com o fogo, mas seu caule fica apenas chamuscado. No entanto, se você pega o caule e bate com um pau, para ficar um pouco esfarinhado, pega fogo com a maior facilidade e não apaga mesmo sob chuva grossa. As mulheres comentaram que antigamente o candombá era a lanterna do povo daqui. O povo se arrumava para ir à feira em Palmeiras (sede do município) e saía com o candombá, cuja fumaça negra acabava por pintar o rosto das pessoas e por isso “agente chegava com a cara preta”.

A planta tem uma resina que muito afeita ao fogo e é maravilhosa para acender fogueiras ou o fogão a lenha, ainda comum por essas bandas.
Essa resina inflamável era extraída da planta da seguinte forma: batia no caule com uma pedra até retirar um pó, o qual era posto em uma lata e levado ao fogo, onde ficava “visguento”; este visgo era usado para tapar buracos em latas ou bacias e para lubrificar as correias de couro das rodas d’água usadas para o trato do café nos idos de antigamente.
Alguém já me disse que a resina também tinha uso medicinal, mas as senhoras do grupo não souberam me dizer se sim ou se não dessa coisa.

Logo pode acontecer de os jovens esquecerem dessa planta. Talvez admirem suas flores quando caminharem nos gerais, mas sinto que esse conhecimento pode se perder. Essa resina de uma planta tão especial, que um dia teve papel importante na vida e na economia local pode ser olvidada. Quero registrar para que saibam e não esqueçam e quem sabe, quando recebam títulos universitários pensem em estuda-la e descobrir novos usos para as coisas antigas.


Recebam um abraço antiquado de Aureo Augusto.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

COMO ACONTECEM AS COISAS AQUI NO VALE DO CAPÃO

Estava em casa, mais ou menos 7:30h da noite, imprimindo uns cartazes da Caminhada da Saúde, uma atividade da Unidade de Saúde da Família aqui de Caeté-Açu, quando ouvi uma voz infantil me chamar.
Quando abri a porta deparei com Kairã, neto de Dinha, que estava com um anzol firmemente preso no dedo médio da mão direita. O pai pensava que ele estava na casa da avó, a qual imaginava que estava na casa do pai, mas estava na beira do rio tentando pescar umas traíras, no escuro da noite. Mexi no anzol, ele deu um grito. Telefonei ao pai que em segundos estava em minha casa e no meu carro fomos, o menino chorando e o pai aborrecido com a maçada, para o posto.

Não foi fácil, pois mesmo após anestesiar o dedo, Kairã não parecia estar muito disposto a permitir que eu manipulasse o anzol. Seus gritos me lembravam os Nazgul d’O Senhor dos Anéis. O mais interessante é que entre um guincho e outro, escutava um som belíssimo de vozes que vinha da sala de palestras do posto. Era o Coral do Vale ensaiando para a apresentação no Festival de Jazz. Lembrei-me dos elfos de Rivendel (Valfenda) d’O Senhor dos Anéis.

Como vi que não seria possível sozinho resolver o caso, fui no ensaio e pedi a alguém que viesse me dar uma força. Logo Puza se apresentou. Pedi a ela que, ignorando os gritos, puxasse o anzol em determinada direção enquanto com um bisturi bem fininho eu movia as carnes na direção oposta permitindo a saída do anzol e a estratégia funcionou.
A partir daí apenas os elfos cantaram... peguei as luvas usadas na extração e as enchi como se fossem balões de festa. Kairã abriu um largo sorriso e ficou mais feliz ainda ao ganhar as luvas e a seringa (sem a agulha obviamente) para brincar com seus companheiros de malinagens (expressão daqui, o mesmo que traquinagem).

Muitas pessoas têm dito que o Vale do Capão está diferente, gente demais, civilizado demais etc. Sim, o Vale não é mais o mesmo – e não me parece que isso seja ruim, pois o que não muda, esclerosa – porém há aqui essa magia simples observável no jeito como as coisas acontecem.
Não sei apontar exatamente aonde é que está esta coisa encantadora que me faz sentir-me tocado a todo momento no exercício do meu dia, talvez esteja no fato de que uma criança de 11 anos, ao sofrer um acidente ir direto em minha casa, sabendo onde (e que) seria cuidado, pode ser que seja na disponibilidade verdadeiramente gentil de Puza, ou no som belíssimo do coral por trás de um acontecimento triste, talvez no olhar delicado das senhoras atentas ao que se passava no posto, pois quando ali chego fora de horário é porque alguém sofre... O fato é que há um dom por aqui, que talvez olhos atentos e suficientemente suaves consigam detectar, para além das mazelas que são o presente onde quer que estejamos, um dom, dizia, que faz fazer fácil da vida, poesia.

Andando pela rua, dizendo alô para alguém, atendendo em meio à azáfama do posto, ou do mercado, sorrisos e olhares, condutas quase imperceptíveis, uma mão afagando uma criança, música leve, sempre alguém seja nativa ou imigrante, criando alguma coisa de um nada corriqueiro... pode ser que seja apenas esse jeito peculiar de como as coisas acontecem aqui no Vale do Capão, distrito de Caeté-Açu, Palmeiras-Ba, Brasil...


Recebam um abraço grato de Aureo Augusto

sábado, 12 de setembro de 2015

TESMOFÓRIAS – a Resistência das Mulheres

Temos numerosas dívidas culturais com os gregos antigos e sempre devemos agradecer-lhes pela sua engenhosidade na inauguração de vários instrumentos sociais essenciais para nós. Uma das mais belas criações gregas é a democracia. Vivemos em um mundo onde a vida e a opinião de um ser humano individual é valiosa, tanto quanto a vida e a opinião dos demais, independente de suas posses ou poder político. Foram os gregos quem primeiro admitiram isso e experimentaram um sistema político onde o povão pôde ter sua voz escutada na decisão dos rumos da sociedade. Rendamos preito aos gregos, ou helenos, como eles preferiam ser chamados.

Mas, como era de se esperar, já que se tratava de uma primeira experiência, a democracia grega tinha vários pontos que merecem reparo, embora estes pontos negativos não desmereçam seus esforços.
Um destes pontos é que a mulher não participava do governo, situação compreensível se pensamos que até hoje a mulher não tem os mesmos direitos e só no século passado começaram a ter direito a voto. Na sociedade grega a mulher era bastante segregada. Vivia interdita. Pertencia ao pai e depois ao marido que a guardava ciosamente em uma parte da casa chamada gineceu. No entanto, apesar de toda a opressão elas conseguiam preservar alguns costumes que lembravam a posição que ocupavam na sociedade pré-helênica. As Tesmofórias são um belo exemplo disso.

Tesmofórias eram festas das quais participavam apenas as mulheres. Nenhum homem podia presencia-las em nenhuma hipótese e elas tomaram o cuidado de nunca registrar o que faziam ali para que os homens não metessem o bico. Por isso hoje em dia os estudiosos sabem apenas que elas aconteciam, também que ali ocorriam rituais específicos para as deusas Core, Demeter, mas fora isso são um mistério tão real como é a alma das mulheres. Aliás esta é uma prova de que as mulheres são capazes de segredo, ao contrário do que se costuma divulgar por aí.

O dramaturgo Aristófanes criou uma peça onde um parente de Eurípedes (outro dramaturgo) se disfarça de mulher para participar da celebração feminina e é descoberto. Ele seria morto pelo tribunal de mulheres e só não o foi, porque o próprio Eurípedes foi negociar com as mulheres. A peça mostra que os homens gregos, apesar de todo o seu machismo, reconheciam às mulheres aquele seu direito a encontrar-se e celebrar-se sem a intervenção masculina.

E o tempo passou e à mulher nada mais restou que continuar resistindo, tantas vezes lançando mão de subterfúgios elaborados inconscientemente, outras tantas conscientemente laborando para manter-se em sua integridade e força, outras tantas instrumentalizando-se como veículo do próprio mal que a oprimiu... Hoje, vejo um mundo novo reacendendo o horizonte de uma época, espelho de um remoto passado (que Riane Eisler no excelente “O Cálice e a Espada” chama de gilânico – onde os gêneros se respeitavam como iguais), porém postado com vistas ao futuro.

Vejo esse futuro nas minhas amigas que sabem o que querem e dizem o que manda o coração, e, que conseguem escapar da fácil reação opositora, onde a afirmação de si é mantida pelo ato de denegrir o outro.
Este feminino acolhedor e forte me traz o esperançar de que nos fala Freire, o educador.


Recebam um abraço feminino de Aureo Augusto.

sábado, 29 de agosto de 2015

DOS MAL-ENTENDIDOS, COMPLICAÇÕES E DAS BELEZAS MIÚDAS

Muito me impressiona é o quanto conseguimos na criação de mal-entendidos e complicações e o como nos esforçamos para mantê-los. Sempre escuto pessoas dizendo que tudo seria melhor se fôssemos mais simples. Dizem o quanto complicamos tudo, apenas porque não amamos o suficiente e cobramos, queremos, mandamos, controlamos, dominamos.

Aí, às vezes me dá uma sensação de cansaço quando penso o quanto eu mesmo me complico embora realmente e em sã consciência tento olhar o mundo com o olhar simples e amoroso, sabendo que (isso me ensinou meu filho) a complexidade absurda do Universo é o mais simples possível para que fosse possível o existir.

Inventamos regras e essas nos ajudam na convivência, mas existem regras embutidas nas relações, implícitas, terríveis em sua ascendência sobre as demais instâncias do ser. Ser então torna-se um exercício de desviar-se de si. Sendo assim deixamos de lado o nosso Ser... Pois é. Sei, mas não escapo.

Existem tantas pessoas construídas de beleza (quase todas na realidade), organizadas como angelicais iniciativas de deuses gozosos, mas caem nas malhas desta estranha mediocridade que nos faz guardar distância da alegria, obedecendo a cegueira das leis trançadas de tal forma que parecem esclarecimentos divinos, justas e corretas, quando não passam de instrumentos de dominação, controle, medo e dor. O pior é que descobrimos isso, desvendamos esse abismo, revelamos a conspiração impositiva destas regras, então criamos novas regras em oposição àquelas e as usamos como justas e corretas quando não passam de instrumentos de dominação, controle, medo e dor. E, olhando para estas pessoas e me identificando com elas sinto uma espécie de tristeza que por sorte passa logo...

Passa logo porque em que pese minhas interpretações equivocadas do que podem os outros estar sentindo ou pensando, ou minhas deduções apressadas do que é a vida e do significado das coisas, aprendi a surpreender-me com a beleza das pequenas coisas e o sabor a novidade que pode me trazer o dia-a-dia. Sim, em que pese o fato de eu ser bem bocó, e, apesar dessa minha paradoxal competência para a dor, acabo por cair nas armadilhas que me estende o tempo e a vida, armadilhas de alegria reveladas pela reverberação da brisa nas folhas ou o resvalar da luz sobre as superfícies úmidas, corpos desenhados de lua, campos gerais sob as estrelas, caminhos como galhos retorcidos de árvores nas serras, olhares bondosos, sorrisos e gargalhadas saídas quase que do nada, os desenhos detalhados das folhas do filodendro ou o jogo das nuvens entre as serras e os raios do sol matinal...


Recebam um abraço entre o bem e o mal (risos) de Aureo Augusto.

domingo, 16 de agosto de 2015

COOPERANDO PARA O PARTO SAUDÁVEL

Nas décadas 50 e 60 do século passado alcançamos um alto grau de dicotomia bem/mal nas relações políticas no mundo. A experiência da segunda guerra mundial, onde as democracias (associadas em uma estranha combinação à URSS) venceram as potências do eixo defensoras do fascismo em diversas versões, onde havia claramente aqueles que de ambos os lados se julgavam certos contra os outros, os errados, contaminou a política e a sociedade. Daí os comunistas odiavam os capitalistas que por sua vez demonizavam os comunistas. Esquerda e Direita não podiam se ver...

O tempo e o século passaram e a humanidade se deu conta de que aqueles à direita tinham defeitos e qualidades, e quem estava à esquerda passava pela mesma situação. Hoje os heróis já não são tão heroicos aos olhos do tempo e seus exemplos perderam parte do brilho ideológico. Hoje podemos ser menos maniqueístas.

Infelizmente o velho hábito rapidamente recrudesce quando bulimos em alguns temas polêmicos como é o caso do parto domiciliar, do parto humanizado e do parto hospitalar. Desgraçadamente com demasiada frequência não defendemos um ponto de vista apenas por ele ser algo positivo. Costumamos contaminar nossa argumentação com nossas dores, traumas, usamo-lo como material identitário de modo que se está errado nós mesmos que o defendemos passamos a ser moralmente inadequados ou perdemos valor...

Mas todos nós queremos o bem para a mulher e para a criança. Queremos a alegria do pai e dos demais parentes e vizinhos, pois o nascimento de um bebê é um momento precioso para todos. Por isso convém passarmos a entender que não há (e não deveria haver) conflito entre parto domiciliar e parto hospitalar. Ambos são seguros desde que sejam observadas determinadas condições. Outrossim faço o registro que parto humanizado é uma característica aplicável tanto para o parto domiciliar quanto para o parto hospitalar.

As maternidades públicas (e mesmo uma boa parte das particulares) não estão dando conta da demanda. O noticiário nos informa isso com frequência. Em grande medida isso ocorre porque mulheres que poderiam ter seus filhos em suas residências ou em casas de parto acabam por ocupar um espaço muito necessário às mulheres que apresentam situações de risco.

Uma condição primordial para que o parto possa ser realizado em domicílio é que não haja risco. Se a mulher tem hipertensão, se a criança apresenta certas alterações em seus batimentos cardíacos ou se é prematura, entre outras condições, não há porque parir em casa, devendo procurar um hospital.
Se a mulher estiver parindo em casa e ocorrer, por exemplo, aceleração ou redução acentuada e demorada da frequência dos batimentos cardíacos da criança, nesse caso deve-se manda-la ao hospital mesmo que o parto venha a ser normal. Aqui, a finalidade é aumentar o cuidado. Sendo assim, não devemos ver o parto hospitalar após tentativa de parto em casa como um fracasso, e sim, como a colaboração da tecnologia com o direito ao desejo de ser protagonista de seu próprio processo. Algo, enfim, maravilhoso.

A Holanda é o país da Europa com maior quantidade de parto domiciliar, qualquer pessoa pode comprar o material necessário em uma farmácia, e é o que tem menos infecção puerperal. Os hospitais e os médicos não estão sobrecarregados com uma infinidade de partos normais, guardando seus conhecimentos da patologia para quando as coisas se complicam.


Usando os termos da guerra fria, aqui não se trata de uma luta entre os “porcos capitalistas” contra os “comunistas ateus comedores de criancinhas” e sim de duas possibilidades complementares dialogando pela saúde da criança, da mãe e pela alegria das famílias envolvidas.

recebam um abraço nascituro de Aureo Augusto

terça-feira, 28 de julho de 2015

FECHAR O CAPÃO?

Há mais ou menos 15 anos uma parcela daquelas pessoas que vieram morar aqui no Vale do Capão, tocados pela sua beleza, pela hospitalidade da população e pela possibilidade de uma vida melhor, comentava da necessidade de dar um jeito de parar de vir gente pra cá. Dizia este grupo que logo perderíamos toda a paz, toda a tranquilidade, toda a segurança em pouco tempo.
O tempo não corroborou o medo delas, conquanto os problemas decorrentes da vinda de grande quantidade de turistas se avolumam. Assim como os benefícios.

Não sou tão besta assim que não note que existem sinais de perda de qualidade. A exemplo disso, na semana passada um grupo de vizinhos aqui da área onde moro reuniu-se para ir a um terreno onde foram construídas umas casas bem pequenas e alugadas para pessoas que não demonstram ter grande consideração pelos que moram ao redor, fazendo barulho por literalmente toda a noite. Ocorre que os moradores daqui costumam trabalhar e, assim, têm que dormir à noite para trabalhar no dia seguinte. Um dos vizinhos foi destratado quando se queixou. Então reuniram-se para dar mais peso à reivindicação. Naquele período estava eu viajando (em férias) e não tive o desprazer de testemunhar o despropósito de pessoas que vêm para cá para curtir a natureza, o silêncio, a paz e (seguramente porque o silêncio pode ser muito incômodo) fazem barulho, festa toda a noite e não convivem com a natureza. Esse tipo de coisa tem se repetido... e outras também desagradáveis.

Por outro lado, temos aqui entre os imigrantes e visitantes músicos primorosos, engenheiros, palhaços engraçados, advogados, artistas de várias vertentes, médicos, arquitetos, professores, artesãos, muitos deles contribuindo com os moradores em diversas áreas da vida. A maior parte dos visitantes mostra (cada um a sua maneira e conforme a própria sensibilidade e conhecimento) profundo respeito pelos hábitos locais, pela natureza e contribuem economicamente, filosoficamente, ecologicamente etc. para a vida daqueles que têm a glória anímica de viver no Vale do Capão.

A ideia de criar dificuldades à visitação é tentadora, porque pode ser necessária. Mas uma boa ideia como essa pode ser apenas falta de criatividade, egoísmo, preguiça... Algo assim como a conduta de certos maridos que aprisionam suas esposas com medo de que elas, em contato com outras pessoas, possam deixar de ser sua “reserva de mercado” ou, seu objeto particular de uso. Ora, um casamento é uma construção permanente, onde não cabe aquela coisa definitiva: já casei, ela (ele) é minha (meu) e já está tudo definido. Não, não está definido, faz-se necessário que ele se ocupe com ela, se apoie nela, agrade-a, e que ela se ocupe dele, se apoie nele, agrade-o... Ele não é posse dela e vice-versa. Ambos são livres, mas ao mesmo tempo um é para o outro o maior e o melhor, pelo menos enquanto dure o infinito fugaz (lembrando Vinícius de Morais).

Recentemente vi jovens fazendo monitoramento dos visitantes e gostei disso. Saber a dimensão do suposto ou real problema é um passo importante. Temos várias associações onde estes dados podem e devem ser discutidos, para que possamos elaborar planos de ação que possam ampliar nosso cuidado com esse lugar. Sem deixar de considerar que somos parte do meio ambiente, sem deixar de relacionar-se com nossas humanas necessidades de viver, crescer, sonhar e realizar.

O Vale do Capão é um meu casamento e devo estar atento para cuidar, assim como sou cuidado. Esse é o primeiro passo. Lembro que ele não me pertence, porque quando eu morrer ele não vai desaparecer. Tudo seguirá à minha ausência. Busco cuidar agora, para que depois de mim o que aqui venha encontre melhor o mundo que é esse lugar. Não sou a pessoa mais indicada para dizer o como das ações. Mas sei que devemos conversar sobre isso, sem perder de vista que o bem, a beleza, a paz é anseio e prazer para todos como o é esse Vale abençoado.

Recebam um abraço abençoado de Aureo Augusto.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

SÃO JOÃO 2015 terceira parte

Como vimos nas duas últimas mensagens, o São João aqui no Vale do Capão segue delicioso, mas aconteceu algo bem estranho, quando um rapaz tomou atitudes bem bizarras e a polícia deixou-o ir-se. O dono da pousada estava presente e queria registrar com os policiais o que aconteceu em seu lugar de trabalho, afinal teve prejuízo material. Um dos policiais havia comentado que não sabia onde o poria uma vez chegando a Palmeiras, sede do município aonde está o Vale do Capão. Mesmo assim havíamos pensado que seria bom procurar o prefeito para pedir ajuda quanto a isso. Mas o fato é que o sujeito se foi.

No dia seguinte várias pessoas me telefonaram porque o mesmo rapaz estava desfilando na rua completamente nu, em atitudes acintosas e teve uma pessoa que disse que havia posto uma flor no ânus. Enfim, uma coisa bem estranha. Já aconteceu de uma pessoa ficar nua em um momento de crise psicótica aqui no Capão, mas era uma mulher que até aquele momento nunca havia tomado nenhuma atitude desabonadora e era bastante querida por todos. O povo protegeu-a, cuidou-a até que se recuperou. O caso aqui era outro, pois todos sabiam do que ocorrera na noite anterior e já havia um clima de revolta e de apreensão quanto às atitudes do rapaz.

Após algum tempo do triste espetáculo, o povo decidiu imobiliza-lo e chamar a polícia (novamente). Não estava lá, mas me informaram que foi uma luta dura e o rapaz deu muitos pontapés na porta da igreja até que o amarraram e cobriram com um pano. Quem assistiu ficou chocado. A luta deve ter sido um momento bastante desagradável para quem dela participou e para quem assistiu. O rapaz depois foi conduzido para o posto, mas aí já estava calmo.

Quando a polícia chegou manifestou a preocupação quanto ao lugar onde ficaria o sujeito. Pelo que entendi, a delegacia de Palmeiras está inativa e também o rapaz não era um caso de polícia e sim de saúde (mental, no caso). Por telefone conversei com a secretária de saúde que também estava preocupada, inda mais que a família que havia dito que viria busca-lo no dia seguinte, havia desistido e iria entrar na justiça, para através do ministério público (?) recambia-lo para sua cidade de origem.
Todos ficaram impressionados com isso, pois os laços familiares aqui são muito fortes. Perguntei-me quantas vezes isso teria acontecido e a que ponto a família já está desesperada, cansada, sofrida...

Uma lição para nós é que precisamos nos preparar para estes casos. A pequena cidade de Palmeiras vem sendo muito visitada, pois é bonita e hospitaleira, tem áreas especialmente belas, como o Morro do Pai Inácio, os Gerais, os povoados de Campos de São João, Conceição dos Gatos, Lavrinha (onde o povoamento começou), sem contar o meu amado Vale do Capão.

Apressadamente podemos acusar a prefeitura de descaso. O descaso não é de hoje em Palmeiras, mas nem sempre pecamos por este motivo. Penso que o principal é a ignorância das novas demandas. Antes era relativamente inócuo certas faltas. Mas com o afluxo de turistas e imigrantes, além da melhoria da economia local, vêm desafios que escancaram a nossa incompetência aos olhos da crítica alheia, bem como da autocrítica.


Recebam um abraço pensante de Aureo Augusto.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

SÃO JOÃO parte 2

Cheguei no posto às 17h. Encontrei um jovem turista (depois descobri que tem 25 anos), com os olhos fechados como se dormisse, mas os pés tremiam. Cida, a técnica de enfermagem, já cuidara de seguir minha orientação por telefone (para adiantar as coisas), pôs soro na veia, verificou os dados vitais e a glicemia. E, para completar, cobriu-o para que não sentisse frio. Enquanto examinava-o e verificar que estava clinicamente bem, o funcionário da pousada aonde estava me descreveu que o jovem ali chegou à noite, e sem mais delongas deitou-se e dormiu, junto a uma parede. O dono da pousada, Lili, também nativo aqui do Vale, teve pena dele e não botou pra fora. Ele então armou uma rede na frente de um quarto, dificultando a passagem de um hóspede regular. Lili, ainda assim foi conversar com ele explicando que não podia fazer aquilo. Ele desarmou a rede, mas ficou sentado no refeitório. Depois, Lili foi atrás de lenha para a fogueira de ramo da noite e descuidou do sujeito que arranjou de usar o chuveiro elétrico e ficou um tempo inusitado ali, aproveitando para lavar a roupa. Depois deve ter sentido fome e arrombou a porta da cozinha e alimentou-se, além de ter desordenado tudo. Por fim, quando o encontraram estava desmaiado e o levaram ao posto.

Depois de algum tempo ele respondeu a minhas perguntas com tranquilidade. Perguntei se havia usado drogas, respondeu: “Depende do que você acha que é droga”, com um acento bastante desagradável. Pelo menos me deu o telefone do irmão com o qual falei e se dispôs a vir para cá desde Aracajú para busca-lo. Chamei a polícia mais ou menos às 17:30h. Paradoxalmente, em uma festa junina não havia policial no povoado. A polícia havia prometido chegar às 22h. Sei que o pessoal fica mais alto mais tarde, mas com o movimento de gente aqui, pensei que era uma temeridade não ter polícia. Pedi a ajuda da secretária de saúde que logo se comunicou com polícia, prefeito etc. E o tempo foi passando... Telefonei várias vezes pro prefeito que me disse que havia se comunicado e que uma viatura já estava vindo. A secretária chegou a ficar agastada com a demora e com o descaso. Mas o tempo foi passando...

Então ele despertou e bateu a porta da sala de curativo com muita força, Cida se assustou, foi lá, e viu que estava em pé, havia retirado o soro e se deslocado a outra sala e fechado a porta com vigor. Então cheguei e abri a porta à força, ele saiu muito agressivo, ameaçando-me e exigindo meus documentos. Depois gritou por socorro. Uma coisa bem estranha. Pedi a Cida que chamasse alguns homens fortes, uma vez que minha pujante musculatura (rs) jamais seria suficiente para controlar o rapaz bem mais alto que eu. Quando ele viu a tropa de amigos do posto, recuou e por sorte um dos que se apresentaram, Tony, o reconheceu, porque no primeiro dia em que chegou conversaram algo. Então com muito tato, Tony acalmou-o, mas ele continuou bem arrogante e irônico. Chamei por telefone o prefeito e a secretária de saúde. Ambos chamaram novamente a polícia que disse que já estava a caminho. E o tempo foi passando...

Consegui conversar com o cara e expliquei que o melhor para ele era ir para a cadeia, para se proteger porque havia feito algumas coisas e podia fazer outras – ele dizia que eu é quem dizia aquilo, duvidando, até que chegou Lili e foi descrevendo tudo e ele se lembrou e pediu desculpas com um ar de que havia cumprido sua obrigação ao fazer isso. Pelo menos aceitou ir para a delegacia quando chegassem os policiais. E o tempo foi passando...
Perto da meia-noite os policiais chegaram. Interrogaram, falaram, foram tratados por ele com algum desdém, se irritaram um pouco, mas não muito. Então o rapaz foi calçar-se para ir. Saiu. A viatura parada na porta do posto... E o tempo foi passando... Falei então: “Olhem ele já está aqui”. Um dos policiais retrucou: “Agora é com a gente”. Calei. E o tempo foi passando...
Entrei por alguns minutos e quando saí descobri que o rapaz calmamente se afastou e foi embora. O CARA FOI EMBORA TRANQUILAMENTE!!!!!!

Pensei que se era para deixa-lo livre, poderia tê-lo feito eu mesmo, sem precisar ficar seis horas e meia ali (pois eu não estava de plantão e sim de sobreaviso), já que não queria deixar Cida só com uma pessoa como ele. Então me perguntei que outra porta iria arrombar, que outras pessoas iria destratar, e se alguém revidasse?
Mas a coisa não acabou aí. Vejam a próxima postagem.


Recebam um abraço estranhado de Aureo Augusto

sábado, 27 de junho de 2015

SÃO JOÃO 2015 PARTE 1

Festa de largo aqui no Vale do Capão é sempre uma delícia para todos os gostos. Aqueles que não comem carne podem se deliciar com uma grande variedade de pratos, inclusive atendendo aos mais radicais, que, como os veganos, se recusam a comer produtos lácteos e mel, e aos que comem carnes, não lhes faltam petiscos. Além disso, e falando especificamente do São João, que é uma festa regada a variegados licores, tem pouca confusão e brigas – não é que não tenha, que fique isso claro, mas menos do que o esperado.

Este São João de 2015 está tão bonito que dá gosto. Pessoas lindas de todas as tribos passeando na praça, rindo e se divertindo em paz, apesar de alguns idiotas bêbados (que sempre há) ou maconheiros fumando no meio das demais pessoas que não têm adicção a este costume.
Como todos sabem, o grande dia é a véspera, quando temos a fogueira, canjica, amendoim cozido e coisas assim. Por isso ontem a praça estava lotada, houve muito forró e comilança. A prefeitura me colocou de sobreaviso para qualquer eventualidade e assim fui chamado ao posto para atender um rapaz que chegou desmaiado. Essa foi uma nota bem desagradável da bela festa. Mas sobre isso escrevo depois...

O grande momento, para mim, é a fogueira de ramo. Este ano foi preparada por Lili e alguns amigos. Pegam uma árvores ou um galho reto e colocam no meio da fogueira enquanto penduram nos galhos diversos presentes – sacos de avoador, dinheiro, laranjas e outras frutas, garrafas de bebidas etc. – e fica uma tropa de gente esperando o ramo cair. Não perco!
Na hora exata é uma confusão danada e não dá pra ficar sendo delicado com o vizinho, pois todos querem pegar alguma coisa. Eu inclusive.

Pouco antes do galho ceder ao fogo e cair, uma menina me pediu pra pegar algo pra ela. Já estava de olho em um saco de avoador, pois Sunna, minha filha ali presente, gosta muito disso. Quando o galho se inclinou, eu já havia me postado bem embaixo do meu alvo, um lugar quase perigoso, pois o tronco poderia bater em minha cabeça. Dei um pulo, o mais alto que pude e agarrei o saco, mas este estava bem amarrado de modo que se rompeu, espalhando os pequenos e frágeis globos pelo chão. Tive que focar outra coisa e vi uma garrafa que me pareceu ser de molho de soja (só no Capão mesmo!), outra pessoa percebeu o mesmo e corremos juntos, nos chocamos no ar e o cara (que não sei quem é) saiu pela tangente, agarrei a garrafa e ao chegar ao chão alguém se chocou comigo (ou eu sozinho me desarrumei o equilíbrio) e também me espatifei, mas não larguei o prêmio. Ri feliz e corri para festejar. Infelizmente a garrafa era de catuaba – uma bebida alcoólica – que logo dei a quem gosta.

Foi aí que a menina me encontrou e pediu seu presente. Expliquei que não tinha conseguido e ela me disse: “Mas Aureo, você é o médico da gente, podia ter ido atrás do que quisesse, que ninguém ia bater em você”. Observe que pare ela eu sou alguém especial que deveria receber consideração especial, mas me trata por “você” e me chama pelo meu nome sem o comum apodo: Doutor. Então lhe contei que tinha sido derrubado e caíra no chão. Ela me olhou com uma cara de incredulidade, como se fosse algo bem impossível. Não pude deixar de rir.
Aí voltei para o posto, aonde Raí (Raimundo Cirilo, dentista do posto) havia ficado no meu lugar para que eu pudesse me divertir naqueles minutos. O que estava acontecendo na unidade de saúde é assunto para o próximo post. Aguardem.


Recebam um abraço junino de Aureo Augusto.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O ÁPICE E A PARTE

Acredito que por imperativo biológico, nós os seres humanos somos uma gente dada a querer intervir no ambiente, modifica-lo, faze-lo algo nosso. Como se não fossemos seres biológicos. Da mesma forma, os pássaros fazem ninhos e neles se acomodam, os castores criam barragens inundando áreas mais ou menos extensas, as formigas criam estruturas subterrâneas às vezes de grande tamanho e complexidade, enquanto as térmites constroem suas casas impressionantes, onde arranjam de tal forma o ordenamento dos corredores de uso e de ventilação que a temperatura e a umidade dentro do ninho é, para elas, agradável, a despeito das condições climáticas adjacentes. Os seres vivos procuram condições mais satisfatórias e, inclusive, atuam de modo a tornar o mundo mais adaptado a si, da mesma forma como, as espécies se adaptam às condições do mundo. Ou seja, além de se adaptar às condições ambientais, os seres vivos, e dentre eles os humanos, mudam o mundo para que este atenda aos próprios interesses orgânicos.

Bato novamente na mesma tecla: Como seres biológicos os humanos compartem esta característica – mudar o mundo. Vai daí que (ocorre-me) que toda a ação humana é biológica, ou, dito de outra maneira, natural. Naturalmente construímos as cidades, os automóveis, os livros, e tantas outras coisas que fazem parte de nossas vidas, quase que como extensões de nossos sentidos e competências.

Às vezes vou mais além e me ocorre que tudo isso que fazemos faz parte de um imperativo biológico, natural. Somos, provavelmente, os únicos seres naturais dotados de autoconsciência. Ou seja, além de estarmos cientes de que estamos vivendo aqui no mundo, de que participamos de relações com o entorno, somos capacitados a perceber-nos em nossas relações conosco mesmo. Possivelmente, mas não certamente, outros seres que partilham conosco a vida nesta Terra, não são capazes disso, ou, pelo menos, não são tão capazes disso. Mas se temos esta capacidade, foi o processo evolutivo do planeta que levou a isso.

Ocorre-me que a manifestação da individualidade, apanágio da espécie humana, é uma necessidade da biologia do nosso planeta. Mas, para que? Não tenho a mais mínima ideia.

Seja como for, nos sentimos bem superiores aos demais seres por conta dessa nossa competência, quando frequentemente esta consciência da individualidade facilmente degenera em um individualismo que pode revelar-se perigoso para a espécie e para o planeta. Esta crença em uma superioridade é frágil se consideramos que a posição que ocupamos entre as demais espécies foi o resultado natural do processo evolutivo, não apenas da humanidade, mas, da humanidade enquanto parte de um contexto planetário. Podemos imaginar que se a humanidade falhar na manifestação de uma individualidade que acabe por adicionar qualidade à evolução do planeta, naturalmente, cedo ou tarde, encontrará seu fim, podendo, em tempo hábil, acontecer o desenvolvimento de outra espécie para ser veículo dessa (suponho) necessidade evolutiva do planeta.

É interessante constatar (ou apenas elucubrar) que ao mesmo tempo em que somos algo assim como um ápice em relação às demais espécies, somos nada mais que o fruto natural da evolução com o fim de manifestar algo da evolução, da mesma forma como as bactérias manifestam a competência de ser a base de todas as demais vidas, ou as jaguatiricas têm lá suas competências e as manifestam competentemente. Uma a mais!

Uma vez pensado isso, vou lá fora dar uma olhada nas serras que estão embebidas de nuvens.


Recebam um abraço consciente de Aureo Augusto.

terça-feira, 5 de maio de 2015

SEMANA SANTA NO VALE DO CAPÃO

A semana santa é um momento bem especial para mim aqui no Vale do Capão, pois minha primeira visita ocorreu neste período, e naqueles dias esse lugar manifestou-se em toda a sua glória, com tempestades elétricas, cachoeiras pra todo lado, e, quaresmeiras, às centenas, floridas, como se o mundo fosse uma mágica (e é!).
É a época mais bela por aqui!

No grupo das pessoas idosas que ocorre todas as quartas na nossa USF de Caeté-Açú, perguntei como era a semana santa no passado aqui nesse Vale abençoado. Vão aqui algumas das informações que coligi:
Em realidade o processo começava na quarta-feira de cinzas. Ali começavam as 4 semanas da quaresma, cada uma com seu nome:
Semana 1. Das trevas.
Semana 2. Das lágrimas.
Semana 3. Das dores.
Semana 4. Semana Santa.

Durante estas semanas não era permitido o consumo de carnes (exceto peixe) nas quartas e nas sextas. Até hoje não se come carnes (menos peixe) na quarta, quinta e sexta-feira da Semana Santa. Dentro destes preceitos, quem se chamava Maria não podia pentear o cabelo, comer goiaba, nem cana-de-açúcar – que, segundo as lendas locais, havia sido usada para golpear Jesus e por isso era amarga e ficou doce. As Marias também usavam a mesma roupa na quinta e na sexta-feira.

Nos dias dedicados à Paixão de Cristo, os jovens acordavam 4 a 5 horas e procuravam pedir a benção a seus padrinhos, com eles tomar o café da manhã, e (na sexta) almoçar. No café da manhã tinha que ter cuscuz que era feito a partir do próprio milho, que era pisado, retirado o olho, soprado para separar o farelo e posto de molho em água morna durante a noite. Depois era novamente pilado e cessado e só então se fazia o cuscuz em cuscuzeiro de barro enrolado no pano. Esse mesmo milho era usado também para fazer angu servido no almoço da sexta na casa dos padrinhos, o qual era servido com peixe. Essa tradição é mantida pela maior parte dos antigos. Depois do almoço tinha como sobremesa melancia, que era trazida de Palmeiras em boa quantidade, assim como as abóboras para a comilança. Uma vez consumida a sobremesa todos faziam uma contrita oração de agradecimento a Deus.

Na igreja local o Senhor Morto era posto sobre uma mesa para ser visitado por todos, que lhe beijavam e depositavam uma moeda em um cofrinho. A essa altura todos os santos estavam cobertos, como é frequente no mundo católico, sendo que aqui o pano não era roxo, como em outros lugares (não tinha cor específica).

No Sábado, a finada Neném abria a igreja às 10h, batia o sino e comandava a reza do ofício. Meio-dia as famílias colocavam uma bacia de esmalte branca com água e cantavam certas músicas e a gente ao redor fitava a água para “ver a aleluia na água” – olhavam a água, seus reflexos e em dado momento achavam que era aleluia (não consegui uma explicação clara quanto ao fenômeno, mas lembro que quando eu era bem criança tinha algo assim em Salvador); nesse momento os santos eram descobertos. Então era permitido o consumo de carne e os pais podiam voltar a bater nos filhos, que no dia anterior estavam isentos de castigos. Registre-se que durante a sexta-feira os pais recolhiam as becas (badogue, estilingue) da criançada, pois era proibido matar qualquer coisa neste dia; com a liberação no sábado, era uma matança generalizada de passarinhos ou o que quer que aparecesse, e, o produto era usado para comer. Lembro que a pobreza aqui era grande, as dificuldades inúmeras e nem sempre havia disponibilidade de proteínas.
Uma coisa interessante é que durante a sexta-feira era proibido andar a cavalo, e mesmo os raros carros paravam, tampouco era permitido qualquer tipo de relação comercial e nada que envolvesse dinheiro. Nesse dia havia visita ao cemitério (onde se acendiam velas) que estava limpinho, pois no dia anterior os homens se haviam incumbido de cuidar do local.

Todas as noites da Semana Santa a matraca cantava pelo povoado convidando a todos para a reza da meia-noite pelas almas dos mortos, quando as mulheres enrolavam-se com lençóis brancos, inclusive a cabeça. Depois da reza alguns aproveitavam a escuridão e o descuido dos responsáveis para ver, ou um pouco mais, suas paqueras em segredo.

Para fechar quero descrever a fórmula das bênçãos que os jovens pediam aos pais, aos padrinhos e às demais pessoas pelas quais nutriam maior consideração e respeito:
Aquele a ser abençoado se ajoelhava e dizia: – Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
A resposta vinha pronta: – Para sempre seja louvado, nossa Mãe Maria Santíssima. Deus lhe dê boa sorte, saúde, paz...

A Semana Santa era um momento de grande contrição para toda a comunidade. Reafirmava-se o sentido de pertencimento a um grupo e uma tradição. Todos se uniam para fortalecer os laços que contribuíam para a coesão do grupo. Hoje o tecido social vem se esgarçando e não é só aqui. Os desafios daquele tempo em alguma medida obrigavam às pessoas a reduzir-se ao grupo enquanto hoje o individualismo vem tendendo a prevalecer. Bom? Mau? Bem? Mal? O futuro dirá. Porém creio que muito do passado não era tão bom como gostariam os saudosistas, assim como demais do presente não se vê benéfico. Enquanto penetramos nos novos tempos, quiçá deva ser razoável olhar para o passado em busca de referências que nos ajudem nos dilemas que o tempo nos propõe.


Recebam um abraço com flores de quaresmeira.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

TANGENDO A DOR

Seu Edilsinho é uma pessoa bem interessante. Muitas vezes me surpreendo com a forma com a qual encara, explica e se relaciona com o mundo. É como se fosse feito de uma matéria bem antiga, e sua pele idosa, marcada pelo tempo, a casca de uma árvore já sofrida pela ação das intempéries. Uma árvore ali, no meio dos caminhos que o povo estabeleceu secularmente para a facilidade dos transportes.

Foi assim que na última consulta ele me explicou algo a respeito de certa medicação anti-inflamatória que ele se automedicou, referindo-se à Nimesulida.
“O remédio né pa sará não, é pra tanger. A dor do espinhaço foi pras perna. Ela não sarou foi tangida pras perna”.

Para ele a dor ou a doença, ele se diagnosticou com reumatismo, é como gado, tem uma percepção destes fenômenos como sendo eles elementos vivos, materiais... Ele comenta coisas a respeito do seu suposto ou real reumatismo como se estivesse dizendo de uma pessoa com suas características de personalidade peculiares.

Indago e indago, pergunto várias vezes a ver se penetro o sentido desta alma, feita de pedra e lodo, organizada de um modo ancestral laborado em um tempo onde a chuva era mais frequente e as mães viam sua prole desaparecer na névoa de um tempo muito duro, onde os mitos que organizavam a existência, assim me parece, escapavam o comum dos demais lugares, tal o isolamento em que nasceram.


Recebam um abraço mítico de Aureo Augusto.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O MIJO DO CACHORRO

Nestes últimos tempos tenho tido momentos onde recebo presentes sob a forma de reconhecimento do meu trabalho, visitas de pessoas de significativo valor social, político e administrativo, afagos dos filhos, manifestações de consideração dos vizinhos, e, até, participar de um documento do Globo Repórter.

Tenho plena consciência de que tais momentos são excelentes para nos fortalecer e para nos incentivar a seguir adiante em nossas tarefas, no entanto, sei que também podem nos induzir a sentir uma vaidade desmedida. Neste agora e como sempre luz e sombra dançam a vida para torna-la mais divertida.

Por sorte, em muita medida aprendi a dialogar com a minha vaidade, e quero que saibam todos que quem mais me ensinou a não me deixar levar (demais) pela vaidade foram as mulheres que passaram (e passam) pela minha vida, com seus “sim”, com seus “não” e “talvez”, suas percepções, suas palavras de elogio, entusiasmo, críticas e negações. Sou grato a elas, porque sem sua percepção acurada eu teria afundado em várias fantasias, perdido o norte mais ainda do que o habitual de me perder. Naturalmente alguns homens também entraram em minha vida e me agraciaram com sua ajuda, mas foram elas as grandes professoras que me ensinaram a nunca esquecer de que sou um entre outros, e, como todos os demais, uma mistura de maravilhas com nulidades.

No penúltimo domingo, na feira, após um encontro com pessoas que muito me agradaram e depois de o povo do Capão me elogiar e tripudiar de mim com brincadeiras variadas e piadas sobre a minha aparição na televisão, parei na barraca de Japão, que comentou da beleza do Globo Repórter e de minha participação. Nesse momento um cachorro se aproximou e... Mijou na minha perna.
Japão e os demais deram pra rir, e eu também. Aquilo, por paradoxal que pareça, não me irritou. Para mim foi algo me colocando em meu devido lugar. Que ninguém pense que desejo aniquilar o ego. Longe disso, quero-o forte, porém em sua função. Assim o elogio de meus amigos a par do mijo do cachorro me puseram no meu lugar entre a maravilha e a nulidade.


Recebam um abraço de Aureo Augusto, uma pessoa como você e os demais.

terça-feira, 31 de março de 2015

GERAÇÃO AGRIMONY

O rapaz, um turista, chegou ao posto de saúde onde trabalho em estado deplorável. Hálito pestilento, diarreia intensa, prostração, sinais de desidratação. Num primeiro momento pensei em encaminha-lo a um hospital, porém quando pensei na dificuldade para conseguir transporte, já que este lugar onde moro e trabalho, conquanto paradisíaco, situa-se em uma área um tanto remota, decidi tentar ajuda-lo. A equipe de saúde do posto se desdobrou para cuida-lo e ia vê-lo a cada momento entre uma consulta e outra. Quando me via, ele perguntava se ia morrer. Estava deveras preocupado. Mas logo vi que se recuperaria. E recuperou-se.

No final da manhã expliquei-lhe que estava recuperado do quadro agudo, porém ainda depauperado, e suscitava cuidados. Disse-lhe que fosse à pousada para descansar e prescrevi a alimentação e os procedimentos para recompor-se. Outrossim, comentei que o fato de que havia passado por três raves no decorrer de 3 semanas contribuiu para o seu estado de saúde frágil. Ele se retirou e à saída disse para um amigo: “Estou zerado”, que em sua gíria queria dizer, algo assim como “estou ótimo”.
Fui almoçar e ao retornar dei de cara com o mesmo rapaz em um bar, sorridente, tomando cerveja. Preparei-me para recebê-lo novamente. Aliás, naquele período de janeiro/15 não foi o único que tive que atender em condições semelhantes e com igual irresponsabilidade.

Clemente Sánchez e Ricardo Orozco (in Flores de Bach, Diagnóstico Diferencial entre Essências, Índigo, Barcelona-Esp, 1999) comentam que a frase “Don’t worry, be happy” (não se preocupe, seja feliz) pode caracterizar o tipo psíquico que corresponde, no sistema de Edward Bach, à flor Agrimony. Este tipo de personalidade tende a ocultar os conflitos, a insatisfação e a ansiedade através uma vida agitada, participando de festivais, festas, podendo aderir às drogas em uma infrutuosa fuga de si mesmo. No entanto quando são confrontadas com situações derivadas de suas fugas e são obrigadas a encarar sofrem mais que os demais.

Registro que evitar preocupações é uma atitude recomendável, não preocupar-se é bom, já que o ideal é ocupar-se dos problemas e não ficar com eles dando voltas na cabeça. Existem pessoas admiradas e admiráveis que mantêm um sorriso na face e se divertem com a vida, apesar da consciência clara de todas as dificuldades, tristezas, momentos duros, desamor, abandono que ela nos proporciona. Mas, tenho notado em um sem número de pessoas (a maioria jovens) que aqui aportam que tomam uma atitude forçada de negação das dificuldades inerentes a nós, seres humanos que participamos de uma sociedade indiscutivelmente difícil no que respeita a relações. Creem que a repetição (mental ou gestual) do “não preocupar-se” resolverá algo do tudo que em realidade negam. Inclusive acreditam-se vetores de uma mudança na consciência da comunidade humana, por um milagre do centésimo macaco.

O mais triste é que de tanto teatralizar a felicidade, passam a subviver ela e nela perdendo a noção da fragilidade da vida, dos nossos sonhos, da consciência que temos de nós mesmos.
Com frequência escuto o discurso de que eles não participam do “Sistema”. Não querem pagar impostos nem prestar contas à “sociedade podre e falsa”, mas acorrem pressurosos ao posto de saúde quando enfermam. Usufruem do bem público, sem contudo contribuírem com os demais, em uma atitude narcísica que corresponde à definição grega (antiga) da palavra idiota, ou seja, aquele que não se interessa pelos assuntos públicos – incluindo a política.

Nós, seres humanos, somos obrigados a estabelecer estratégias de sobrevivência na selva social e a conduta “agrimony” é uma entre tantas. Toca-nos, enquanto trabalhadores da saúde em um posto de um lugar remoto, com uma população nativa a ser assistida e um expressivo grupo de visitantes dos mais variados matizes ideológicos, culturais, psicológicos, raciais, de nacionalidades distintas e línguas estranhas, atentar para o número grande demais para ser ignorado daqueles que manifestam esse tipo de comportamento. Muitos deles agregam a esta conduta uma postura arrogante derivada em parte (e em alguns) do fato de que são europeus e mantêm a mente colonialista, enquanto outros têm a crença de que são uma espécie de elite que está fora dos requisitos e das limitações das demais pessoas.

Inda temos que lidar com o fato real de que somos nós também preconceituosos contra aqueles que vivem o “don’t worry” seja real ou fantasiosamente. E este tem sido tema frequente em nossas reuniões de equipe. Somos agentes de saúde e consequentemente estamos orientados a ajudar a quem necessita e para tanto somos convidados a trabalharmos em nós a nossa capacidade de amar. Quem cuida, para que cuide adequadamente, ama, amará. Mas ser instrumento do amor, dito melhor, ser cada vez mais instrumento do Amor, implica o desafio de não querer fazer do outro ou com o outro aquilo que acreditamos seja o caminho eleito para a saúde e a felicidade.

Por isso penso que somos nós da Unidade de Saúde da Família de Caeté-Açú, no povoado do Vale do Capão, em Palmeiras-Ba, Brasil, um grupo de pessoas abençoado com a oportunidade de questionar-se graças ao desafio de encontrar tantas pessoas “agrimony” entre outras. Quantos mais têm a oportunidade de gestionar pela experiência do dia-a-dia o ato que é aprender a amar e aceitar a diferença, tentando reconhecer nela aquilo que corresponde ao ato positivo de ser ou ao ato negativo de desconhecer-se o ser que se é. Enfim, um caminho pessoal para a felicidade.


Recebam um abraço amoroso (dentro de minhas limitações) de Aureo Augusto.

quinta-feira, 19 de março de 2015

OS CARAMELOS DE STÁLIN

O pai de Magdalena Szaszkiewicz lhe contava que quando ele era pequeno, logo após a Segunda Guerra Mundial, quando da “liberação” da Polônia pela Rússia, na escola as crianças eram reunidas no pátio e um professor lhes dizia que pedissem a Deus que lhes desse caramelos. Então os alunos se punham a orar piedosamente, mas nada acontecia. Aí lhes recomendavam que pedissem ao “papai Stálin”, o que faziam, e os caramelos apareciam como num passe de mágica.

Magdalena cresceu naquela Polônia, construída com os caramelos de Stálin, onde as pessoas estavam obrigadas a usar de toda a sua criatividade para burlar a lei com a finalidade de conseguir o mínimo para sustentar suas famílias, já que o conforto dos autoproclamados comunistas pautado nas tarjetas de racionamento era nada mais que falácia ideológica e pratos insuficientes. Um mundo onde não se poderia confiar nos vizinhos, já que qualquer deles, incluindo o mais íntimo, poderia ser um vigia do governo. Um lugar onde não se podia falar alto nem pensar diverso, e seus olhos umedeciam com as lembranças.

Estávamos Irma, Belém, Magdalena e eu na hospitaleira cozinha de Jorge e Pati, em Pirque, junto à Cordilheira dos Andes, nas proximidades de Santiago de Chile. O acolhedor fogo e cheiro de pão tostado davam às lembranças da polonesa um sabor onírico, ao tempo em que nos trazia a uma realidade não muito distante no tempo. Irma não nos deixou esquecer dos tempos de racionamento na atroz revolução de direita acontecida nesse belo país e, conquanto o sofrimento brasileiro não tenha levado ao ponto da fome, o medo foi o mote que garantiu o poder àqueles que, com diferentes matizes ideológicos, trataram de impor a verdade que Deus, ou o Capital (o mercado), ou o Partido, davam por assentado como única.

Logo da “liberação” da Polônia com a queda da Cortina de Ferro (será que os jovens sabem o que é isso e o que significou?), Magdalena foi à Noruega e ali havia algo que a deixou estranhada. Não identificou de imediato esta sensação, mas depois percebeu que as jovens como ela vestiam roupas coloridas o que não era acostumado a seus olhos, pois só conhecia branco, negro ou azul marinho nas roupas. E, enquanto me contava de sua experiência de vida não pude deixar de pensar – e o expressei – quanto de medo havia naquele regime que para “salvar” as pessoas tirava delas a humanidade (autonomia, liberdade, criatividade, prazer de viver...), no que ela concordou.

E no decorrer da fascinante conversação, fomos destrinchando acontecimentos atuais e nisso incluindo o fato de que não estamos livres da dominação, até por conta das manipulações midiáticas que podem nos levar a comer o que não é bom para nossa saúde, inscrever-nos em grupos terroristas fundamentalistas religiosos e por aí vai. Mas qual a solução?

Vigilância. Mas não aquela expectativa armada a que estamos acostumados, pois isso não deixa de ser repetição do que está aí, mais do que sempre tivemos. Magdalena nos diz com os olhos úmidos de amor que carecemos nós, antes mesmo de divulgar mensagens de libertação e denúncia, carecemos, dizia, viver o amor, vivenciar o amor em si, por si e na vida e, então irradiá-lo, e seus olhos umedeciam com a mensagem, e, pena que nesse texto não possa mostrar a beleza luminosa que dela irradiava enquanto nos brindava com essas palavras.

Recebam um abraço carinhoso de Aureo Augusto.


domingo, 8 de março de 2015

CURSO DE PRÁTICAS NATURAIS EM SAÚDE

NATUREZA DA SAÚDE
Quer saber como fazer para gozar de SAÚDE por mais tempo, com um mínimo de despesa?
Neste trabalho você entrará em contato com o Neohipocratismo (Naturopatia, Naturologia) que trabalha com os elementos da NATUREZA (água, ar, terra...) com o intuito de recuperar e manter a SAÚDE.
Venha participar do curso, caminhadas, vivências experimentando saborear o Vale do Capão, um dos belos recantos desse nosso tão maravilhoso mundo.

Curso destinado a pessoas que querem ser mais saudaveis, profissionais da área de saúde e interessados em naturopatia

Curso teórico-pratico com certificado e distribuição do livro “ Manual de procedimentos naturistas” de Dr. Aureo Augusto
Carga horaria: 36 hrs
Inclui: curso; hospedagem; alimentação; vivencias e passeios

informações:
Aureo Prieto de Azevedo- aureoprieto@gmail.com
Lothlorien Vale Do Capão- centro@lothlorien.org.br
telefones: (75) 3344-1122/1129

NATUREZA DA SAÚDE
Quer saber como fazer para gozar de SAÚDE por mais tempo, com um mínimo de despesa?
Neste trabalho você entrará em contato com o Neohipocratismo (Naturopatia, Naturologia) que trabalha com os elementos da NATUREZA (água, ar, terra...) com o intuito de recuperar e manter a SAÚDE.
Venha participar do curso, caminhadas, vivências experimentando saborear o Vale do Capão, um dos belos recantos desse nosso tão maravilhoso mundo.

Curso destinado a pessoas que querem ser mais saudaveis, profissionais da área de saúde e interessados em naturopatia

Curso teórico-pratico com certificado e distribuição do livro “ Manual de procedimentos naturistas” de Dr. Aureo Augusto
Carga horaria: 36 hrs
Inclui: curso; hospedagem; alimentação; vivencias e passeios


domingo, 1 de março de 2015

SEU JOÃOZINHO E A INTEGRIDADE

Já comentei que gosto de, nas sextas, fazer as visitas domiciliares que a estratégia de saúde da família (da qual participa o posto onde trabalho aqui no Vale do Capão) exige. Esse é o momento das pessoas acamadas, idosas e outras com dificuldade de locomoção ser atendidas. Recentemente tive a oportunidade de encontrar em uma dessas visitas a uma pessoa pela qual tenho grande apreço, Seu Joãozinho que hoje conta 95 anos de vida. Ele mora na rua do Lajedo. Mas hoje todos mencionam o lugar assim: “Vou lá em Seu Joãozinho”, ou, “Eu moro em Seu Joãozinho”, isso mostrando a referência que se tornou. Velho garimpeiro, uma pessoa bem especial. Nessa visita deu-me de regalo uma pérola quando disse:
            “Nunca deitei carga em animá qui’eu não tivesse condição de levantá”.

A frase dá-nos ideia de seu senso de justiça; de sua integridade, se tomamos esta palavra como a competência em manifestar-se ao mundo com inteireza daquilo que crê, sente e faz. Uma vez que as sociedades humanas têm sido fundamentadas em premissas muitas delas falsas, e sendo o ser humano em muito fruto dessa sociedade não podemos esperar dele a perfeição. No entanto é gratificante e renovador ver pessoas que têm um senso de justiça e mesmo de solidariedade como o que estas palavras nos trazem.

Ensina-nos Comte-Sponville que solidariedade é a virtude que nos faz contribuir com os demais a partir de um ponto de vista de que o fazemos porque somos iguais aos demais. Ele compara isso com a bondade, que é a virtude de quem tem mais e comparte, ou seja, onde não há a sensação de que há igualdade. Quando o velho não sobrecarregava de peso o seu jumento, e, nessa ação, usava-se a si como medida, ele entendia o valor intrínseco da vida e dos seres vivos. O seu animal não era apenas um objeto destituído de significado pessoal.

Erich Fromm, no seu belo livro A Arte de Amar, comenta que “assim como a moderna produção em massa exige a padronização dos artigos, também o processo social requer a padronização do homem e tal padronização é chamada “igualdade”. O que eu temo é que estamos vivendo um mundo onde a padronização nos poupe de encontrar pessoas como Seu Joãozinho, que seguramente durante sua longa vida encontrou quem quisesse troçar de sua conduta solidária para com um animal, e, de resto para com seus vizinhos, quem quisesse ridicularizar sua honestidade e respeito, vendo nisso perda de oportunidades de amealhar um pouco mais de recursos em um mundo e em um tempo duros que lhe tocou viver.

Mas o fato de não se deixar levar por padrões sociais restritivos (em termos de conduta solidária e honesta) de um tempo onde prevalecia a lei do mais forte (foi época dos coronéis e da jagunçada aqui na Chapada) que fez dele uma referência e um homem respeitado por aqueles que em suas próprias vidas não seguiam os altos padrões morais que ele praticava.

Interessante o fato de que com frequência os embusteiros costumam admirar, inda que não sigam, e mesmo respeitar, embora não cumpram, àqueles que primam pela integridade.


Em 1/3/15 recebam um abraço joãozinhesco de Aureo Augusto.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

PARTO CESÁREA - PROBLEMAS

O Dr Augusto Sampaio é pediatra baiano de renome. Escreveu um artigo no conceituado jornal A Tarde nos alertando quanto aos riscos das cesáreas. Informa que a revista pediatrics, entre outras, publica trabalhos que por seus resultados consideram o parto normal (vaginal) é, ou deveria ser, a opção melhor, para a criança. Conta que uma pesquisa realizada em dois milhões de nascimentos entre 1973 e 2012.

Destes partos 14% foram cesáreas e nesse grupo, repito: das crianças que não nasceram de parto normal, aumentou significativamente os casos de asma, artrite juvenil, problemas do tecido conjuntivo, problemas intestinais, deficiências imunológicas e leucemia (popularmente conhecido como câncer no sangue). Explica que o parto cesariano faz com que a criança não tenha contato com a flora vaginal (as bactérias que moram na vagina da mãe) e esse contato é um preventivo contra alergias e infecções.

Tenho visto muita gente falando de que o parto cesárea é mais seguro. Muitos estudos mostram que não é, mas tem-se desconsiderado o prejuízo a longo prazo que a cesárea provoca, como vemos neste estudo dinamarquês.


Recebam um abraço natural de Aureo Augusto

domingo, 1 de fevereiro de 2015

METER-SE NA VIDA DOS OUTROS

Recentemente uma jovem vizinha queixou-se comigo de que as pessoas aqui se metem muito na vida das demais. Estava aborrecida porque se sentia vigiada. Maldizia morar em um lugar pequeno.

Aí ontem aconteceu uma batida de um carro com uma moto. O motoqueiro, ao contrário da maioria dos alucinados de motos daqui, é um rapaz bem cuidadoso no manejo da máquina. Não era de correr. Porém na festa do padroeiro acabou tomando umas e perdeu o sentido de velocidade e equilíbrio. Em uma curva perto do circo descontrolou-se e bateu feio no carro de Eraldo (que, por sinal, e com o testemunho do próprio motoqueiro) vinha devagar. Eraldo tentou escapar jogando o carro no mato à direita, sem sucesso. A batida foi tão forte que entortou a frente da moto, quebrou a cruzeta do carro, jogou a roda para trás etc.

Naturalmente me chamaram e corri ao posto, era bem cedo da manhã, mas a notícia correu como fogo nos Gerais. Ao passar pelo local já tinha um bando de gente apreciando, comentando, explicando, deduzindo e todas estas coisas filosóficas que os acidentes inspiram.

Vendo o estrago do carro e da moto, imaginei encontrar uma bagaceira. Mas para minha surpresa havia escoriações leves em coxa à direita e um profundo corte sobre a rótula à esquerda, que deu para costurar tranquilamente. Mas o rapaz estava inconsolável. Chorava a mais não poder, não pela dor, não pela laceração no joelho, sim, por estar preocupado uma vez que nunca havia dado preocupação aos pais. Dizia-me que havia bebido, contra seu próprio hábito, e acontecera aquilo, perguntava-se como dera tanta bobeira e por aí vai. Tentamos, eu e Marilza (que chegou antes de mim e preparou tudo), consola-lo sem grande sucesso. O pai chegou, e conhecendo-o, mostrou-se compreensivo.

Depois do atendimento, e vendo que não havia carro para leva-lo a sua casa, ofereci-me para dar carona já que vive cerca de minha casa. No caminho as pessoas perguntavam como estava, instava-o a ter força e pediam melhoras. Para daqui, para dali, em dado momento um amigo lhe perguntou se já tinha alguém para pegar a moto, ele disse que depois ia ver; o amigo ofereceu-se querendo saber onde deixar o veículo e se queria que contatasse quem consertasse e por aí vai. Outro acompanhou o meu carro para ajuda-lo quando chegou em casa. Enfim, muita gente pronta para ajudar.
Então comentamos como o povo aqui tem essa coisa de se meter na vida dos outros, e que isso é muito bom, pois assim todos se ajudam. O que é ruim pra uns é bom pra outros!


Recebam um abraço enxerido de Aureo Augusto

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

DIFICULDADES COM AS DIFERENÇAS

No post anterior comentei das diferenças presentes aqui no Vale do Capão, neste período da festa de São Sebastião. Hoje quero comentar um aspecto que me causa alguma estranheza:
Recentemente tivemos um evento em uma cidade próxima, Lençóis, uma espécie de festa, creio eu, chamada Ressonar. Muitas das pessoas que ali estavam vieram para o Capão depois que acabaram as apresentações. E aí foi um fuzuê. A turma queria continuar na brincadeira de invés de dormir, sapatear. E pra eles pouco importa que o povo daqui tenha que dormir pra no dia seguinte trabalhar. Não se interessam em conhecer os costumes do lugar para não agredir. Vai daí que os moradores, tanto nativos quanto aqueles que adotaram esta paisagem como casa, tiveram que passar pelo dissabor de explicar para numerosos deles que aqui não é de conveniência fumar maconha na praça cheia de crianças, nos bares ou na porta da igreja e do posto de saúde; explicar que o coreto não é pousada; que cagar e mijar é assunto a ser tratado no banheiro e não nas ruas e trilhas (teve um que defecou no topo de uma belíssima cachoeira, coisa que nos causou a todos uma admiração muito grande, uma vez que parece tão obvio para nós que ali não é lugar para isso); que em lugar cheio de crianças não convém deixar garrafas espalhadas pelo chão; que quando se come num restaurante o hábito universal é pagar; que relações sexuais são tema para lugares mais íntimos do que a beirada das trilhas bem frequentadas por turistas; que ao procurar ajuda no posto de saúde não convém ir nu, usando como vestimenta uma camisa amarrada sobre os quadris para fingir que esconde o pênis; e por aí vai...

Um fato complicou tudo: Em cerca de uma semana atendi 75 casos de gastroenterite, com fortes diarreias, dores abdominais e frequentes vômitos, todos de pessoas provenientes do Ressonar. E cada um dos que foram atendidos referiram amigos com o mesmo quadro. Foi uma trabalheira para a turma do posto, principalmente por um fenômeno bem peculiar:
Uma quantidade razoável dos enfermos aparentemente perdeu o sentido de autopreservação, e esta perda veio associada a uma total incapacidade de suportar o menor sofrimento. Desesperados querem solução rápida para os achaques e logo que os sintomas passam, mergulham em uma obrigação (como se fosse um trabalho árduo) de embebedar-se, drogar-se, festejar, fazer som, gritar e badernar. Alguns voltam depois desesperados e querem atendimento imediato (porque o quadro voltou, mas como? Perguntam) em busca de alívio. Não adiantou eu falar para tantos da necessidade de parar para descansar, comer algo, permitir que o corpo se recuperasse. Assim como alguns trabalham como loucos para ter carro, apartamento, seguro de vida... Estes estão açodados por uma ordenança que os obriga a uma labuta de prazeres, a uma guerra cruel de gozar sem trégua, sem repouso.

Um deles entrou na consulta e quando perguntei o problema respondeu desagradável: “Estou sofrendo a consequência da má qualidade do saneamento de seu lugar”. Comentei, entre outras coisas, que eu mesmo havia pedido encarecidamente às inúmeras pessoas que havia atendido com diarreia que não defecassem nas trilhas, beiras de rios etc. Mas que estas mesmas pessoas, que como ele, vinham de fora e que exigem saneamento adequado haviam se servido de todos esses lugares das formas mais inadequadas e que isso não estava em nossas condições controlar.

Um lugar como Palmeiras, que tem poucos recursos se viu coagido a atender uma quantidade inusitada de pessoas provenientes de outro lugar (aonde adoeceram), gastando recursos médicos que são caros e que tem dificuldade em obter (e nem sempre dispõe do necessário para a população local).

E, por incrível que pareça, em que pesem estas agressões, o povo daqui, ainda consegue ficar feliz com a chegada de “pessoas de fora” e tentam entender o que se passa com os micróbios (como se referem em relação aos mais displicentes com a higiene pessoal) e aprender daqueles que trazem novidades positivas. Mas nem sempre é fácil a convivência com as diferenças.


Recebam um abraço, digamos, preocupado de Aureo Augusto.

sábado, 24 de janeiro de 2015

FESTA DO PADROEIRO E DIFERENÇAS

É um momento bem especial para o povo do Vale do Capão esse de janeiro, pois é a festa do padroeiro, quando tradicionalmente aqueles que emigraram voltam para rever seus parentes, reencontrar os amigos, reviver vidas deixadas para trás em um tempo onde havia luta demais, trabalho demais, chuva demais, fartura de dificuldades e pouquíssimas oportunidades.

Assim é que posso me sentar depois do trabalho para ver as pessoas na praça. Os emigrados que chegam com sorrisos e apertos de mão, admirados das mudanças daqui e do cosmopolitismo que alcançou esta terra, antes tão isolada. Em realidade o Vale do Capão segue sendo insulado entre os mares que são os gerais lá em cima, nas serras, onde o mundo é imensidão, em muito oposta ao uterino aconchego da vizinhança. Mas não mais tão distante como no passado das coisas do mundo lá fora.

Assim, quando sento a ver o entardecer nos paralelepípedos da vila, acompanho também os mais variados tipos que chegam dos mais vários lugares deste planeta. Alguns tipos bem estranhos, devo confessar. E têm nos dado trabalho e preocupação. Na próxima postagem detalharei isso.
Estranheza esta que não impede ver um velho garimpeiro com sua roupa surrada, rindo da conversa com um estrangeiro branco como o leite, com cabelo rasta, ostentando numerosos piercings em tantos lugares que me faz pensar em almofadas de alfinetes. Ou uma senhora com a vassoura na mão, interrompendo seu limpar a calçada para conversar com uma jovem adepta do hinduísmo, trocando ideias sobre culinária vegetariana. Coisas de pouco ver!

Hoje e amanhã terei ampla oportunidade de me abastecer de visões variadas que irão enriquecer minha memória de mundo. Dedicados religiosos em procissão ladeados por gentes que não se interessam muito por religião ou professam fés muito diferentes do catolicismo ou evangelismo habitual; paletós convivendo com tangas, saias masculinas, batas, e outras roupas indecifráveis; cabelos cuidadosamente cortados para a festa ao lado de dredes (não sei como se escreve) de variadas grossuras, limpeza e odor. Muita variedade. Enorme fartura de diferença!


Recebam um abraço diferente de Aureo Augusto.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

GEOGRAFIAS

A passagem de ano de 2014 para 2015 aqui no Vale do Capão teve muito mais turista do que jamais vi nesse lugar. Foi impressionante o afluxo de gente de outras cidades, outros estados e outros países. Uma verdadeira multidão. E, destes, uma significativa quantidade precisou de atendimento de urgência no posto onde trabalho. De diarreias a suturas, de unhas arrancadas a dores de garganta, de crises hipocondríacas a riscos reais de vida, enfim, tivemos bastante trabalho. Perdi várias noites e nos dias normais de atendimento, além do comum com a gente daqui, o posto se viu invadido por rostos desconhecidos, alguns bem angustiados, falas alienígenas nem sempre inteligíveis – orgulhei-me quando um turista elogiou meu inglês capenga. Mas se por um lado o trabalho aumentou exponencialmente, fiz contato com pessoas adoráveis, embora nem todas.



Foi assim que na primeira chance que tive saí a passear por este vale magnífico, experimentando o maravilhamento que atraiu aquela multidão para aqui na passagem do ano.

O Vale do Capão guarda tesouros secretos invisíveis ao desatento. Saí dos caminhos usuais, sem, contudo, me afastar dos lugares aonde o povo vive seu dia-a-dia. Estava um pouco melancólico, pois o cansaço tem esse efeito sobre mim (às vezes me dá raiva, outras uma sensação de plenitude e por aí vai), por isso procurei os caminhos menos usados. Apenas me afastei das ruas movimentadas, encontrei um lugar delicioso, com recônditos cantos que me surpreenderam pela deslumbrante e delicada beleza. Um desses lugares tinha uma pedra em balanço assustador, e de sua precária base surgia uma nascente gelada. Mais adiante encontrei uma gruta com cerca de 3 metros de fundo e da altura de um homem alto. Em seu teto uma claraboia iluminava uma delicada cascata que forrava todo o fundo da lapa. A delicadeza do lugar só era perturbada pela enorme quantidade de murinhanhas (nome que os antigos aqui davam às muriçocas). Mas tomei-as como parte do processo e elas depois se acostumaram comigo deixando-me em relativa paz para desfrutar da beleza do lugar.
Tentarei por fotos aqui pra que possam compartir comigo o belo lugar, espero conseguir.


Recebam um abraço embevecido de Aureo Augusto.