quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

DIFICULDADES COM AS DIFERENÇAS

No post anterior comentei das diferenças presentes aqui no Vale do Capão, neste período da festa de São Sebastião. Hoje quero comentar um aspecto que me causa alguma estranheza:
Recentemente tivemos um evento em uma cidade próxima, Lençóis, uma espécie de festa, creio eu, chamada Ressonar. Muitas das pessoas que ali estavam vieram para o Capão depois que acabaram as apresentações. E aí foi um fuzuê. A turma queria continuar na brincadeira de invés de dormir, sapatear. E pra eles pouco importa que o povo daqui tenha que dormir pra no dia seguinte trabalhar. Não se interessam em conhecer os costumes do lugar para não agredir. Vai daí que os moradores, tanto nativos quanto aqueles que adotaram esta paisagem como casa, tiveram que passar pelo dissabor de explicar para numerosos deles que aqui não é de conveniência fumar maconha na praça cheia de crianças, nos bares ou na porta da igreja e do posto de saúde; explicar que o coreto não é pousada; que cagar e mijar é assunto a ser tratado no banheiro e não nas ruas e trilhas (teve um que defecou no topo de uma belíssima cachoeira, coisa que nos causou a todos uma admiração muito grande, uma vez que parece tão obvio para nós que ali não é lugar para isso); que em lugar cheio de crianças não convém deixar garrafas espalhadas pelo chão; que quando se come num restaurante o hábito universal é pagar; que relações sexuais são tema para lugares mais íntimos do que a beirada das trilhas bem frequentadas por turistas; que ao procurar ajuda no posto de saúde não convém ir nu, usando como vestimenta uma camisa amarrada sobre os quadris para fingir que esconde o pênis; e por aí vai...

Um fato complicou tudo: Em cerca de uma semana atendi 75 casos de gastroenterite, com fortes diarreias, dores abdominais e frequentes vômitos, todos de pessoas provenientes do Ressonar. E cada um dos que foram atendidos referiram amigos com o mesmo quadro. Foi uma trabalheira para a turma do posto, principalmente por um fenômeno bem peculiar:
Uma quantidade razoável dos enfermos aparentemente perdeu o sentido de autopreservação, e esta perda veio associada a uma total incapacidade de suportar o menor sofrimento. Desesperados querem solução rápida para os achaques e logo que os sintomas passam, mergulham em uma obrigação (como se fosse um trabalho árduo) de embebedar-se, drogar-se, festejar, fazer som, gritar e badernar. Alguns voltam depois desesperados e querem atendimento imediato (porque o quadro voltou, mas como? Perguntam) em busca de alívio. Não adiantou eu falar para tantos da necessidade de parar para descansar, comer algo, permitir que o corpo se recuperasse. Assim como alguns trabalham como loucos para ter carro, apartamento, seguro de vida... Estes estão açodados por uma ordenança que os obriga a uma labuta de prazeres, a uma guerra cruel de gozar sem trégua, sem repouso.

Um deles entrou na consulta e quando perguntei o problema respondeu desagradável: “Estou sofrendo a consequência da má qualidade do saneamento de seu lugar”. Comentei, entre outras coisas, que eu mesmo havia pedido encarecidamente às inúmeras pessoas que havia atendido com diarreia que não defecassem nas trilhas, beiras de rios etc. Mas que estas mesmas pessoas, que como ele, vinham de fora e que exigem saneamento adequado haviam se servido de todos esses lugares das formas mais inadequadas e que isso não estava em nossas condições controlar.

Um lugar como Palmeiras, que tem poucos recursos se viu coagido a atender uma quantidade inusitada de pessoas provenientes de outro lugar (aonde adoeceram), gastando recursos médicos que são caros e que tem dificuldade em obter (e nem sempre dispõe do necessário para a população local).

E, por incrível que pareça, em que pesem estas agressões, o povo daqui, ainda consegue ficar feliz com a chegada de “pessoas de fora” e tentam entender o que se passa com os micróbios (como se referem em relação aos mais displicentes com a higiene pessoal) e aprender daqueles que trazem novidades positivas. Mas nem sempre é fácil a convivência com as diferenças.


Recebam um abraço, digamos, preocupado de Aureo Augusto.

sábado, 24 de janeiro de 2015

FESTA DO PADROEIRO E DIFERENÇAS

É um momento bem especial para o povo do Vale do Capão esse de janeiro, pois é a festa do padroeiro, quando tradicionalmente aqueles que emigraram voltam para rever seus parentes, reencontrar os amigos, reviver vidas deixadas para trás em um tempo onde havia luta demais, trabalho demais, chuva demais, fartura de dificuldades e pouquíssimas oportunidades.

Assim é que posso me sentar depois do trabalho para ver as pessoas na praça. Os emigrados que chegam com sorrisos e apertos de mão, admirados das mudanças daqui e do cosmopolitismo que alcançou esta terra, antes tão isolada. Em realidade o Vale do Capão segue sendo insulado entre os mares que são os gerais lá em cima, nas serras, onde o mundo é imensidão, em muito oposta ao uterino aconchego da vizinhança. Mas não mais tão distante como no passado das coisas do mundo lá fora.

Assim, quando sento a ver o entardecer nos paralelepípedos da vila, acompanho também os mais variados tipos que chegam dos mais vários lugares deste planeta. Alguns tipos bem estranhos, devo confessar. E têm nos dado trabalho e preocupação. Na próxima postagem detalharei isso.
Estranheza esta que não impede ver um velho garimpeiro com sua roupa surrada, rindo da conversa com um estrangeiro branco como o leite, com cabelo rasta, ostentando numerosos piercings em tantos lugares que me faz pensar em almofadas de alfinetes. Ou uma senhora com a vassoura na mão, interrompendo seu limpar a calçada para conversar com uma jovem adepta do hinduísmo, trocando ideias sobre culinária vegetariana. Coisas de pouco ver!

Hoje e amanhã terei ampla oportunidade de me abastecer de visões variadas que irão enriquecer minha memória de mundo. Dedicados religiosos em procissão ladeados por gentes que não se interessam muito por religião ou professam fés muito diferentes do catolicismo ou evangelismo habitual; paletós convivendo com tangas, saias masculinas, batas, e outras roupas indecifráveis; cabelos cuidadosamente cortados para a festa ao lado de dredes (não sei como se escreve) de variadas grossuras, limpeza e odor. Muita variedade. Enorme fartura de diferença!


Recebam um abraço diferente de Aureo Augusto.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

GEOGRAFIAS

A passagem de ano de 2014 para 2015 aqui no Vale do Capão teve muito mais turista do que jamais vi nesse lugar. Foi impressionante o afluxo de gente de outras cidades, outros estados e outros países. Uma verdadeira multidão. E, destes, uma significativa quantidade precisou de atendimento de urgência no posto onde trabalho. De diarreias a suturas, de unhas arrancadas a dores de garganta, de crises hipocondríacas a riscos reais de vida, enfim, tivemos bastante trabalho. Perdi várias noites e nos dias normais de atendimento, além do comum com a gente daqui, o posto se viu invadido por rostos desconhecidos, alguns bem angustiados, falas alienígenas nem sempre inteligíveis – orgulhei-me quando um turista elogiou meu inglês capenga. Mas se por um lado o trabalho aumentou exponencialmente, fiz contato com pessoas adoráveis, embora nem todas.



Foi assim que na primeira chance que tive saí a passear por este vale magnífico, experimentando o maravilhamento que atraiu aquela multidão para aqui na passagem do ano.

O Vale do Capão guarda tesouros secretos invisíveis ao desatento. Saí dos caminhos usuais, sem, contudo, me afastar dos lugares aonde o povo vive seu dia-a-dia. Estava um pouco melancólico, pois o cansaço tem esse efeito sobre mim (às vezes me dá raiva, outras uma sensação de plenitude e por aí vai), por isso procurei os caminhos menos usados. Apenas me afastei das ruas movimentadas, encontrei um lugar delicioso, com recônditos cantos que me surpreenderam pela deslumbrante e delicada beleza. Um desses lugares tinha uma pedra em balanço assustador, e de sua precária base surgia uma nascente gelada. Mais adiante encontrei uma gruta com cerca de 3 metros de fundo e da altura de um homem alto. Em seu teto uma claraboia iluminava uma delicada cascata que forrava todo o fundo da lapa. A delicadeza do lugar só era perturbada pela enorme quantidade de murinhanhas (nome que os antigos aqui davam às muriçocas). Mas tomei-as como parte do processo e elas depois se acostumaram comigo deixando-me em relativa paz para desfrutar da beleza do lugar.
Tentarei por fotos aqui pra que possam compartir comigo o belo lugar, espero conseguir.


Recebam um abraço embevecido de Aureo Augusto.