sexta-feira, 22 de maio de 2015

O ÁPICE E A PARTE

Acredito que por imperativo biológico, nós os seres humanos somos uma gente dada a querer intervir no ambiente, modifica-lo, faze-lo algo nosso. Como se não fossemos seres biológicos. Da mesma forma, os pássaros fazem ninhos e neles se acomodam, os castores criam barragens inundando áreas mais ou menos extensas, as formigas criam estruturas subterrâneas às vezes de grande tamanho e complexidade, enquanto as térmites constroem suas casas impressionantes, onde arranjam de tal forma o ordenamento dos corredores de uso e de ventilação que a temperatura e a umidade dentro do ninho é, para elas, agradável, a despeito das condições climáticas adjacentes. Os seres vivos procuram condições mais satisfatórias e, inclusive, atuam de modo a tornar o mundo mais adaptado a si, da mesma forma como, as espécies se adaptam às condições do mundo. Ou seja, além de se adaptar às condições ambientais, os seres vivos, e dentre eles os humanos, mudam o mundo para que este atenda aos próprios interesses orgânicos.

Bato novamente na mesma tecla: Como seres biológicos os humanos compartem esta característica – mudar o mundo. Vai daí que (ocorre-me) que toda a ação humana é biológica, ou, dito de outra maneira, natural. Naturalmente construímos as cidades, os automóveis, os livros, e tantas outras coisas que fazem parte de nossas vidas, quase que como extensões de nossos sentidos e competências.

Às vezes vou mais além e me ocorre que tudo isso que fazemos faz parte de um imperativo biológico, natural. Somos, provavelmente, os únicos seres naturais dotados de autoconsciência. Ou seja, além de estarmos cientes de que estamos vivendo aqui no mundo, de que participamos de relações com o entorno, somos capacitados a perceber-nos em nossas relações conosco mesmo. Possivelmente, mas não certamente, outros seres que partilham conosco a vida nesta Terra, não são capazes disso, ou, pelo menos, não são tão capazes disso. Mas se temos esta capacidade, foi o processo evolutivo do planeta que levou a isso.

Ocorre-me que a manifestação da individualidade, apanágio da espécie humana, é uma necessidade da biologia do nosso planeta. Mas, para que? Não tenho a mais mínima ideia.

Seja como for, nos sentimos bem superiores aos demais seres por conta dessa nossa competência, quando frequentemente esta consciência da individualidade facilmente degenera em um individualismo que pode revelar-se perigoso para a espécie e para o planeta. Esta crença em uma superioridade é frágil se consideramos que a posição que ocupamos entre as demais espécies foi o resultado natural do processo evolutivo, não apenas da humanidade, mas, da humanidade enquanto parte de um contexto planetário. Podemos imaginar que se a humanidade falhar na manifestação de uma individualidade que acabe por adicionar qualidade à evolução do planeta, naturalmente, cedo ou tarde, encontrará seu fim, podendo, em tempo hábil, acontecer o desenvolvimento de outra espécie para ser veículo dessa (suponho) necessidade evolutiva do planeta.

É interessante constatar (ou apenas elucubrar) que ao mesmo tempo em que somos algo assim como um ápice em relação às demais espécies, somos nada mais que o fruto natural da evolução com o fim de manifestar algo da evolução, da mesma forma como as bactérias manifestam a competência de ser a base de todas as demais vidas, ou as jaguatiricas têm lá suas competências e as manifestam competentemente. Uma a mais!

Uma vez pensado isso, vou lá fora dar uma olhada nas serras que estão embebidas de nuvens.


Recebam um abraço consciente de Aureo Augusto.

terça-feira, 5 de maio de 2015

SEMANA SANTA NO VALE DO CAPÃO

A semana santa é um momento bem especial para mim aqui no Vale do Capão, pois minha primeira visita ocorreu neste período, e naqueles dias esse lugar manifestou-se em toda a sua glória, com tempestades elétricas, cachoeiras pra todo lado, e, quaresmeiras, às centenas, floridas, como se o mundo fosse uma mágica (e é!).
É a época mais bela por aqui!

No grupo das pessoas idosas que ocorre todas as quartas na nossa USF de Caeté-Açú, perguntei como era a semana santa no passado aqui nesse Vale abençoado. Vão aqui algumas das informações que coligi:
Em realidade o processo começava na quarta-feira de cinzas. Ali começavam as 4 semanas da quaresma, cada uma com seu nome:
Semana 1. Das trevas.
Semana 2. Das lágrimas.
Semana 3. Das dores.
Semana 4. Semana Santa.

Durante estas semanas não era permitido o consumo de carnes (exceto peixe) nas quartas e nas sextas. Até hoje não se come carnes (menos peixe) na quarta, quinta e sexta-feira da Semana Santa. Dentro destes preceitos, quem se chamava Maria não podia pentear o cabelo, comer goiaba, nem cana-de-açúcar – que, segundo as lendas locais, havia sido usada para golpear Jesus e por isso era amarga e ficou doce. As Marias também usavam a mesma roupa na quinta e na sexta-feira.

Nos dias dedicados à Paixão de Cristo, os jovens acordavam 4 a 5 horas e procuravam pedir a benção a seus padrinhos, com eles tomar o café da manhã, e (na sexta) almoçar. No café da manhã tinha que ter cuscuz que era feito a partir do próprio milho, que era pisado, retirado o olho, soprado para separar o farelo e posto de molho em água morna durante a noite. Depois era novamente pilado e cessado e só então se fazia o cuscuz em cuscuzeiro de barro enrolado no pano. Esse mesmo milho era usado também para fazer angu servido no almoço da sexta na casa dos padrinhos, o qual era servido com peixe. Essa tradição é mantida pela maior parte dos antigos. Depois do almoço tinha como sobremesa melancia, que era trazida de Palmeiras em boa quantidade, assim como as abóboras para a comilança. Uma vez consumida a sobremesa todos faziam uma contrita oração de agradecimento a Deus.

Na igreja local o Senhor Morto era posto sobre uma mesa para ser visitado por todos, que lhe beijavam e depositavam uma moeda em um cofrinho. A essa altura todos os santos estavam cobertos, como é frequente no mundo católico, sendo que aqui o pano não era roxo, como em outros lugares (não tinha cor específica).

No Sábado, a finada Neném abria a igreja às 10h, batia o sino e comandava a reza do ofício. Meio-dia as famílias colocavam uma bacia de esmalte branca com água e cantavam certas músicas e a gente ao redor fitava a água para “ver a aleluia na água” – olhavam a água, seus reflexos e em dado momento achavam que era aleluia (não consegui uma explicação clara quanto ao fenômeno, mas lembro que quando eu era bem criança tinha algo assim em Salvador); nesse momento os santos eram descobertos. Então era permitido o consumo de carne e os pais podiam voltar a bater nos filhos, que no dia anterior estavam isentos de castigos. Registre-se que durante a sexta-feira os pais recolhiam as becas (badogue, estilingue) da criançada, pois era proibido matar qualquer coisa neste dia; com a liberação no sábado, era uma matança generalizada de passarinhos ou o que quer que aparecesse, e, o produto era usado para comer. Lembro que a pobreza aqui era grande, as dificuldades inúmeras e nem sempre havia disponibilidade de proteínas.
Uma coisa interessante é que durante a sexta-feira era proibido andar a cavalo, e mesmo os raros carros paravam, tampouco era permitido qualquer tipo de relação comercial e nada que envolvesse dinheiro. Nesse dia havia visita ao cemitério (onde se acendiam velas) que estava limpinho, pois no dia anterior os homens se haviam incumbido de cuidar do local.

Todas as noites da Semana Santa a matraca cantava pelo povoado convidando a todos para a reza da meia-noite pelas almas dos mortos, quando as mulheres enrolavam-se com lençóis brancos, inclusive a cabeça. Depois da reza alguns aproveitavam a escuridão e o descuido dos responsáveis para ver, ou um pouco mais, suas paqueras em segredo.

Para fechar quero descrever a fórmula das bênçãos que os jovens pediam aos pais, aos padrinhos e às demais pessoas pelas quais nutriam maior consideração e respeito:
Aquele a ser abençoado se ajoelhava e dizia: – Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
A resposta vinha pronta: – Para sempre seja louvado, nossa Mãe Maria Santíssima. Deus lhe dê boa sorte, saúde, paz...

A Semana Santa era um momento de grande contrição para toda a comunidade. Reafirmava-se o sentido de pertencimento a um grupo e uma tradição. Todos se uniam para fortalecer os laços que contribuíam para a coesão do grupo. Hoje o tecido social vem se esgarçando e não é só aqui. Os desafios daquele tempo em alguma medida obrigavam às pessoas a reduzir-se ao grupo enquanto hoje o individualismo vem tendendo a prevalecer. Bom? Mau? Bem? Mal? O futuro dirá. Porém creio que muito do passado não era tão bom como gostariam os saudosistas, assim como demais do presente não se vê benéfico. Enquanto penetramos nos novos tempos, quiçá deva ser razoável olhar para o passado em busca de referências que nos ajudem nos dilemas que o tempo nos propõe.


Recebam um abraço com flores de quaresmeira.