quinta-feira, 17 de setembro de 2015

COMO ACONTECEM AS COISAS AQUI NO VALE DO CAPÃO

Estava em casa, mais ou menos 7:30h da noite, imprimindo uns cartazes da Caminhada da Saúde, uma atividade da Unidade de Saúde da Família aqui de Caeté-Açu, quando ouvi uma voz infantil me chamar.
Quando abri a porta deparei com Kairã, neto de Dinha, que estava com um anzol firmemente preso no dedo médio da mão direita. O pai pensava que ele estava na casa da avó, a qual imaginava que estava na casa do pai, mas estava na beira do rio tentando pescar umas traíras, no escuro da noite. Mexi no anzol, ele deu um grito. Telefonei ao pai que em segundos estava em minha casa e no meu carro fomos, o menino chorando e o pai aborrecido com a maçada, para o posto.

Não foi fácil, pois mesmo após anestesiar o dedo, Kairã não parecia estar muito disposto a permitir que eu manipulasse o anzol. Seus gritos me lembravam os Nazgul d’O Senhor dos Anéis. O mais interessante é que entre um guincho e outro, escutava um som belíssimo de vozes que vinha da sala de palestras do posto. Era o Coral do Vale ensaiando para a apresentação no Festival de Jazz. Lembrei-me dos elfos de Rivendel (Valfenda) d’O Senhor dos Anéis.

Como vi que não seria possível sozinho resolver o caso, fui no ensaio e pedi a alguém que viesse me dar uma força. Logo Puza se apresentou. Pedi a ela que, ignorando os gritos, puxasse o anzol em determinada direção enquanto com um bisturi bem fininho eu movia as carnes na direção oposta permitindo a saída do anzol e a estratégia funcionou.
A partir daí apenas os elfos cantaram... peguei as luvas usadas na extração e as enchi como se fossem balões de festa. Kairã abriu um largo sorriso e ficou mais feliz ainda ao ganhar as luvas e a seringa (sem a agulha obviamente) para brincar com seus companheiros de malinagens (expressão daqui, o mesmo que traquinagem).

Muitas pessoas têm dito que o Vale do Capão está diferente, gente demais, civilizado demais etc. Sim, o Vale não é mais o mesmo – e não me parece que isso seja ruim, pois o que não muda, esclerosa – porém há aqui essa magia simples observável no jeito como as coisas acontecem.
Não sei apontar exatamente aonde é que está esta coisa encantadora que me faz sentir-me tocado a todo momento no exercício do meu dia, talvez esteja no fato de que uma criança de 11 anos, ao sofrer um acidente ir direto em minha casa, sabendo onde (e que) seria cuidado, pode ser que seja na disponibilidade verdadeiramente gentil de Puza, ou no som belíssimo do coral por trás de um acontecimento triste, talvez no olhar delicado das senhoras atentas ao que se passava no posto, pois quando ali chego fora de horário é porque alguém sofre... O fato é que há um dom por aqui, que talvez olhos atentos e suficientemente suaves consigam detectar, para além das mazelas que são o presente onde quer que estejamos, um dom, dizia, que faz fazer fácil da vida, poesia.

Andando pela rua, dizendo alô para alguém, atendendo em meio à azáfama do posto, ou do mercado, sorrisos e olhares, condutas quase imperceptíveis, uma mão afagando uma criança, música leve, sempre alguém seja nativa ou imigrante, criando alguma coisa de um nada corriqueiro... pode ser que seja apenas esse jeito peculiar de como as coisas acontecem aqui no Vale do Capão, distrito de Caeté-Açu, Palmeiras-Ba, Brasil...


Recebam um abraço grato de Aureo Augusto

sábado, 12 de setembro de 2015

TESMOFÓRIAS – a Resistência das Mulheres

Temos numerosas dívidas culturais com os gregos antigos e sempre devemos agradecer-lhes pela sua engenhosidade na inauguração de vários instrumentos sociais essenciais para nós. Uma das mais belas criações gregas é a democracia. Vivemos em um mundo onde a vida e a opinião de um ser humano individual é valiosa, tanto quanto a vida e a opinião dos demais, independente de suas posses ou poder político. Foram os gregos quem primeiro admitiram isso e experimentaram um sistema político onde o povão pôde ter sua voz escutada na decisão dos rumos da sociedade. Rendamos preito aos gregos, ou helenos, como eles preferiam ser chamados.

Mas, como era de se esperar, já que se tratava de uma primeira experiência, a democracia grega tinha vários pontos que merecem reparo, embora estes pontos negativos não desmereçam seus esforços.
Um destes pontos é que a mulher não participava do governo, situação compreensível se pensamos que até hoje a mulher não tem os mesmos direitos e só no século passado começaram a ter direito a voto. Na sociedade grega a mulher era bastante segregada. Vivia interdita. Pertencia ao pai e depois ao marido que a guardava ciosamente em uma parte da casa chamada gineceu. No entanto, apesar de toda a opressão elas conseguiam preservar alguns costumes que lembravam a posição que ocupavam na sociedade pré-helênica. As Tesmofórias são um belo exemplo disso.

Tesmofórias eram festas das quais participavam apenas as mulheres. Nenhum homem podia presencia-las em nenhuma hipótese e elas tomaram o cuidado de nunca registrar o que faziam ali para que os homens não metessem o bico. Por isso hoje em dia os estudiosos sabem apenas que elas aconteciam, também que ali ocorriam rituais específicos para as deusas Core, Demeter, mas fora isso são um mistério tão real como é a alma das mulheres. Aliás esta é uma prova de que as mulheres são capazes de segredo, ao contrário do que se costuma divulgar por aí.

O dramaturgo Aristófanes criou uma peça onde um parente de Eurípedes (outro dramaturgo) se disfarça de mulher para participar da celebração feminina e é descoberto. Ele seria morto pelo tribunal de mulheres e só não o foi, porque o próprio Eurípedes foi negociar com as mulheres. A peça mostra que os homens gregos, apesar de todo o seu machismo, reconheciam às mulheres aquele seu direito a encontrar-se e celebrar-se sem a intervenção masculina.

E o tempo passou e à mulher nada mais restou que continuar resistindo, tantas vezes lançando mão de subterfúgios elaborados inconscientemente, outras tantas conscientemente laborando para manter-se em sua integridade e força, outras tantas instrumentalizando-se como veículo do próprio mal que a oprimiu... Hoje, vejo um mundo novo reacendendo o horizonte de uma época, espelho de um remoto passado (que Riane Eisler no excelente “O Cálice e a Espada” chama de gilânico – onde os gêneros se respeitavam como iguais), porém postado com vistas ao futuro.

Vejo esse futuro nas minhas amigas que sabem o que querem e dizem o que manda o coração, e, que conseguem escapar da fácil reação opositora, onde a afirmação de si é mantida pelo ato de denegrir o outro.
Este feminino acolhedor e forte me traz o esperançar de que nos fala Freire, o educador.


Recebam um abraço feminino de Aureo Augusto.