domingo, 21 de março de 2010

HOJE

Hoje, quando saí para caminhar, como quase todos os dias, havia o dominical silêncio sem sinos do Vale do Capão. Os pássaros nem cantavam, titilavam aqui e acolá pequenas notas tímidas como se não quisessem abalar o absoluto. As árvores estavam suspensas no vazio de sons, imóveis. Caminhei na palpável calma furando o sossego da manhã absurdamente iluminada pela névoa. As montanhas careciam do despertar do sol que já lhes roçava as costas, mas tão suavemente quanto o orvalho que acariciava meus pés. Foi assim!
Depois, mais adiante no tempo, escutei o cantarolar feliz do rio e perturbei a imaculadamente tranqüila superfície do poço da cruzinha; fechei os olhos para sentir bem profundo em toda a pele o frio calor da água. Nadei sentindo minha alma boiando.
Quando retornava o sol já despertara a serra, mas uma nuvem que cobria como uma peruca alva o Morro Branco insistia em manter na sombra a mata. E foi aí que pressenti que ia acontecer algo. Porque, olhando a mata parei e esperei... um raio de sol furou o bloqueio da névoa e de repente suavemente feérica um bloco de árvores iluminou-se. Foi uma coisa de meio minuto e me deslumbrou.
Quando voltei ao mundo o domingo já havia chamado as crianças para os brinquedos sem escola e os adultos já postavam os seus rádios para captar a música da rádio do vale que finalmente foi legalizada e voltou a funcionar. Grato mundo!
Em 21/3/10, recebam um pouco deste silêncio.

segunda-feira, 8 de março de 2010

EU VI A NEBULOSA DE ÓRION!

No fim de semana de 5,6 e 7 de março tivemos aqui no Vale a Primeira Jornada de Astronomia do Vale do Capão. Foi organizado pelo ICEP – Instituto Chapada de Educação e Pesquisa, que contatou o Observatório Antares e o CAFS, um grupo de astrônomos amadores de Feira de Santana, que tem ligação com a UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana). Vieram um professor da universidade, vários físicos e astrônomos amadores, que nos brindaram com palestras, planetário inflável e observação com telescópios. A parte dos telescópios foi prejudicada por causa das chuvas, mesmo assim, tive a oportunidade (juntamente com outras pessoas) de ver a nebulosa que está na constelação de Órion. Apenas uma mancha no céu, é verdade, mas que emoção! Vivemos em um mundo aonde o conhecimento chega a nós com muita facilidade, mas é sempre renovada a felicidade de encontra-lo. Acredito que a alegria que tive, a curiosidade e a sede de saber, semelhavam àquelas que moveram Galileu e outros pesquisadores no passado.
Inda mais, quando sabemos hoje que somos feitos do pó das estrelas.
As estrelas, isso nos ensinou o professor Zé Carlos, quando maduras e faltando-lhes combustível explodem, espalhando moléculas por toda parte. Quando jovens são constituídas principalmente de Hidrogênio. Quando, na enorme gravidade presente no interior das estrelas, os núcleos deste gás se unem entre si, formam Hélio e como subprodutos desta fusão nuclear é a luz e o calor, que, vindos do sol, tanto nutrem o nosso planeta. Com a passagem de milhões de anos, o Hidrogênio começa a faltar e as estrelas fundem núcleos de Hélio com hidrogênio ou Hélio com Hélio formando novas substâncias, como o tão necessário Carbono. Na explosão da senilidade estelar os elementos se espalham pelo universo e em algum momento fecundam outras estrelas e planetas. Por isso afirmei que somos feitos do pó das estrelas.
Imagine que a matéria de que você, leitor, está feito, foi fraguada nas forjas estelares há milhões de anos. Como teria sido o percurso deles, antes que se reunissem em seu corpo? E qual será o seu destino no perpassar dos milênios vindouros?
Pode parecer demais, mas me dá uma sensação de grandeza humilde quando penso nisso.
Somos um muito bem especial e grande nessa coisa tão pequena diante da grandeza de tudo. Como, aliás, tudo o demais.
Recebam um abração estelar,
Aureo Augusto

sábado, 6 de março de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO

DE ONTEM E DE HOJE
O finado Cavalcante, homem dotado de variegado conhecimento, me disse que antigamente uma viagem de Salvador a Palmeiras (no centro exato da Bahia) demorava dias e dias. Havia que pegar um vapor até Cachoeira, nas margens do Paraguaçu e daí sair a cavalo no rumo de Itaberaba antes de imbicar para o destino final.
Como seria aquele tempo? Pergunto-me. Tudo era tão demorado, difícil até. Inda mais quando comparo com a mesma viagem nos tempos de hoje, que demora entre 5 a 7 horas de automóvel, apesar do estado da estrada. Os idosos aqui do Capão, apesar das preocupações que sentem com certas “modernidades”, acham o mundo de hoje bem melhor. Pelo menos é o que transparecem quando gabam a aposentadoria, outrora inexistente, o preço das roupas na feira, a eletricidade em casa, a televisão, a facilidade de transporte que torna menos distante o hospital, o banco, a repartição pública.
Quando vou fazer um parto, sempre fico conversando com as “comadres” e escuto histórias do passado, algumas escabrosas. Conversando, uma delas futuca a outra e diz:
- Lembra do parto de Maria de Zezinho, filha de Iaiá?
E começam a contar intrincados detalhes de um parto pavoroso no qual a mulher teve que ser pendurada por cordas ao telhado, e a criança nasceu tão mal que foi preciso muito tempo de bater panela no ouvido para que finalmente desse o ar da vida. Sei que as histórias costumam crescer com o tempo, são como crianças que se esticam com o passar dos anos e de repente nos surpreendem, adolescentes, maiores do que nós, que as criamos. Também uma peculiaridade das histórias, peculiaridade essa que não é freqüente nas crianças, é que com o tempo tornam-se mais terríveis. Mas mesmo com esse crescer em tamanho e intensidade, dá pra perceber que a coisa antigamente muitas vezes ia por caminhos de muita dor e desespero, quando não se sabia o que fazer sem dispor de meios de, por exemplo, deslocar-se com alguma facilidade para outro lugar com mais condições.
Escutando notícias de alguns dos partos complicados de antigamente (e é claro que sei que a infinita maioria dos partos era ótima, pois desde a faculdade que sei que o parto acontece, no dizer gozador dos estudantes, com, sem e apesar do médico), lembro-me de Stanislav Grof, que, entre outros, estudou a relação entre a forma como acontece o parto e determinados processos psíquicos. Numerosas condutas neuróticas originam-se, ou melhor, fixam-se naquele momento de um nascimento distócico, ou dito de outro modo, complicado. Escutando a fala das comadres na descrição dos partos complicados, com um ouvido ‘grofiano’ fico imaginando a bagaceira psíquica que ali se instalou. Pode ser que isso explique, pelo menos em parte – já que nada explica tudo por completo – alguns hábitos de certas pessoas por esse mundo que é o Vale do Capão. A par de alguns hábitos sadios como o parto de cócoras, que dispõe a mulher em uma posição mais favorecedora do nascimento da criança, encontramos outras atitudes explicáveis, mas, para dizer o mínimo, desagradáveis, como a mania de algumas parteiras de colocar temperos e até pimenta na xoxota da mulher cujo parto se demorasse. A irritação da parede vaginal estimula a contratilidade uterina, porém existem outras formas mais amenas de fazer isso, como o chá de algodão via oral e em banho de assento, que também é um aprendizado que tive com as pessoas do povo. Por sorte, ou porque o tempo passa e com esse passar coisas novas e boas podem ser apreendidas, hoje já não se fazem mais certas coisas como temperar a parturiente. Também observei que o desconhecimento das fases do parto pode levar a problemas. Por exemplo, não adianta dizer à mulher para botar força se ainda não chegamos ao período expulsivo, nome que se dá à fase do parto quando já ocorreu a dilatação completa, ou seja, quando “as portas” do útero já estão completamente abertas e podem ser franquedas para que ocorra o nascimento. Conhecer o que se faz é muito legal. Muitas parteiras são intuitivas e com essa intuição conseguem muito. No entanto, mais conseguem quando unem a essa intuição o conhecimento. Nós médicos, outrossim, devemos observar os cuidados que essas mulheres dedicam às demais, porque com elas temos muito a aprender (como o chá de folha de algodão para citar apenas um exemplo).
E o fato é que os tempos de hoje são distintos dos de antes e concordo com os idosos quando dizem que, apesar de certas “modernagens” danosas e mesmo perniciosas, vivemos em um mundo melhor hoje do que antigamente. Existiam coisas belas que se perderam, assim como nasceram coisas ruinosas, mas quando nos queixamos da falta de respeito pelo trabalhador, por exemplo, isso mostra que há falta de respeito, mas também que há indignação por isso, quando antes era o padrão aceito. Longe estamos do bem comum, mas mais perto estamos do que em outros momentos da nossa história.
Não vou parar de escutar atentamente as conversas das senhoras idosas que me ajudam com os partos por aqui, tampouco descuidarei da fala dos velhos garimpeiros e agricultores. Cada vez que os ouço tenho a sensação de ler o capítulo de uma enciclopédia, tanto quanto ao que devo fazer quanto ao que não devo imitar. Quanto mais os escuto procuro introduzir em minha vida determinados valores dos quais eles são exemplos (inda) vivos. Aproveito para agradecer à vida por eu estar nesse momento, em um tempo tão interessante, sendo o veículo de suas experiências.
Um abração, Aureo Augusto.