domingo, 29 de agosto de 2010

DESABAFO IRREFLEXIVO

Ocorre que me falta suficiente competência reflexiva para alcançar o dom de ser materialista (pois é preciso competência até para reduzir organizadamente o impossível). Bem que tento. Leio, estudo, tomo apontamentos em meu caderno de lugares comuns; encontro-me ao relento lendo relendo Russel, o sábio, Pinker, o garoto que se crê gente grande, caio no abismo das letras, saio de novo à aventura do sol nascente, pungente, o céu em todas as suas cores. Descanso sobre o fato inalienável, a inadiável constatação que não passo de um místico incurável. Não tem jeito, porque não há jeito, não quero o jeito que não seja uma coisa que encontre o todo e sem jeito também é o fato de que ao ser humano resta apenas como saída a própria integridade.
Aureo Augusto.

domingo, 22 de agosto de 2010

LUGARES NOS OLHOS DESVAIRADOS

O que me impressiona nela são os olhos de louca. Talvez seja melhor dizer: Olhos alucinados. Hummm... Ainda não é o ideal...
Quando era menino passava um seriado na televisão – Os Intocáveis – e o artista principal tinha este olhar. É uma coisa entre viva, interessada, curiosa, mas não dá para ficar por aí porque é preciso acrescentar um tanto de desvairio. Esta mulher à qual me refiro é assim. Não é possível, parece-me, confiar nela. Não quanto a sua bondade, e sim quanto ao que irá fazer no momento seguinte. Talvez se vá ou abandone aquele compromisso que fechou como imprescindível e inadiável.
Morou aqui no Vale do Capão por um bom tempo, com os filhos e o ex-marido e também com o pai do novo filho que aqui concebeu, o qual, ao seu tempo, ou melhor, antes mesmo do tempo, foi excluído, porque não era uma pessoa “para se ficar com ela”. Perguntei-me àquela ocasião: Mas se não era para ficar com ela, por que um filho com ela? Bom, não fiz a pergunta, de que adiantaria? Afinal ali já estava (está) o filho. Pariu e depois seguiu seu não destino. Foi para a sua terra de origem.
Hoje retornou com a bela criança nos braços, veio de visita, mas o neném está com um pequeno problema de saúde e por isso trouxe-a para uma consulta. Conversamos um pouco, como sempre faço com todos, exceto naqueles dias em que as urgências, as costuras, os cortes, febres ou dores atrozes que surgem como que do nada, intrometendo-se no ritmo comum do ambulatório, me impedem de continuar o atendimento do jeito que me apraz e ao qual me acostumei.
Ela me disse que estava morando na mesma aldeia em que nascera. Seus filhos iam à escola e estava comendo muito bem porque seus pais, por serem hortelãos, lhe garantiam frutas e verduras de qualidade à mesa. Considerei que devia estar feliz porque tinha a oportunidade de viver em um lugar sereno e com alimentação saudável. Ela retrucou que sim, era muito bom, porém estava impressionada com o fato de que lá na Europa os camponeses estarem rapidamente se afastando dos costumes tradicionais e ficando ofuscados pela tecnologia. Todos têm computadores e automóveis e não sabem como usa-los. Até aí achei bem parecido com o Capão. Não, aqui nem todos têm computadores, e os que não têm e se interessam (sempre jovens) sabem usa-los muito bem. Mas a febre de motocicletas e carros é grande. A profusão e barbeiros é impressionante. Houve um dia em que fui chamado a atender uma pessoa que passava mal na rua. Era um modorrento domingo e havia acabado de almoçar. Mandaram me buscar. O motorista é um sujeito nervoso nos modos, que fala muito rápido de modo que tenho dificuldade de entende-lo. Sempre fico sorrindo com cara de palerma, quando ele conversa comigo, fingindo que estou entendendo e prestando muita atenção a suas expressões. Na conversa, se fica sério faço o mesmo; quando ri, rio também. Quando peço para repetir alguma coisa, e isso ocorre quando me vem alguma dúvida quanto a se devo rir, pôr-me sério ou chorar, ele repete com prazer, mas do mesmo modo, ou talvez um pouco mais rápido; mas aí já consigo discernir qual a resposta e adapto o rosto ao momento dialogal. É um jogo muito interessante! Pois bem, foi ele que veio buscar-me. Não sei onde aprendeu a dirigir, mas falava e manejava o carro com uma velocidade apavorante. Ao chegar na casa da enferma, depois de atende-la pedi para ir ao banheiro, onde vomitei tudo o que tinha comido como seqüela dos sustos pelos quais havia passado na estrada.
A mulher de olhos alucinados não notou que o Capão tem este quê de Europa. Sorrio de mim para comigo mesmo quando penso isso! Mas ela comentava também que lá, em sua terra, falta esta efervescência que caracteriza o Vale do Capão. Aqui, dizia, se queremos estar tranqüilos é muito fácil, basta não sair de casa, ou caminhar para os muitos lugares ermos, solitários, distantes do ruído embora perto, ‘logo ali’ como se diz por aqui. Porém se dá vontade de encontrar pessoas e conversar sobre assuntos que extrapolam, ou mesmo, estranham, as faldas da serra, não é difícil. Tem o circo, teatro, dança do ventre, cinema, tem muitas coisas para se ver ou fazer. Lá, em sua terra, nada mais que silêncio. Um silêncio povoado de olhares dizendo qual o comportamento adequado. Olhares os há lá e cá, indubitavelmente, disse, porém talvez porque ali onde nasceu, ninguém dos moradores de outras terras aparecem e estão demasiado dentro dos próprios costumes, de tal maneira que qualquer outra coisa que não o dia a dia parece muito mais estranho do que é em realidade. Mesmo com a televisão! Isso sem contar o fato de que aqui, no Brasil, na Bahia, e no Vale do Capão, as pessoas são muito mais abertas e receptivas. Foi o que disse, embora não com estas palavras idênticas.

Lembro que quando aqui cheguei causou-me viva impressão a receptividade das pessoas. Sei que o povo do campo tende a ser hospitaleiro, porém reservado. Aqui o olhar inquiria não tanto o que criticar e sim, muito, o que aprender. Penso que aquela mulher não é muito certa da cabeça, mas reconheço que em muitas coisas sua fala testemunhava fatos que acompanhei e sei.

Em 22 de agosto de 2010, recebam um abração, Aureo Augusto.

domingo, 8 de agosto de 2010

OCASO

O ocaso do sol, quando o mundo fica silencioso e tranqüilo, tem às vezes um quê de melancolia. Os poetas, muitos deles, deixaram-se seduzir por isso, por essa saudade sem nome, sem motivo ou destino. Um sofrimento relativamente doce, sem a força da paixão ensandecida. Não gosto de ficar assim. Fico às vezes. Em alguns dias as insatisfações me vêm fazer visita. É quando o mundo perde o gosto, o rosto do sol não queima minha cara com o mesmo prazer. A lua chora logo que vislumbra as casas no seio do vale. Nestes momentos temos a sensação de que o mundo é triste, mas que não nos enganemos, pois nada disso se passa com o mundo. Sei que o mundo não chora, cora apenas à ida do sol, brilha ao seu retorno. As árvores permanecem mudas enquanto o vento não lhes traz o som às folhas. O horizonte será sempre frio ou quente, conforme meu coração o aqueça ou amealhe orvalhos de lágrimas.
Às vezes quando vejo o mundo à frente fico confuso. É que não há saída para a vida. Às vezes não vejo saída e o ocaso toca minha fronte. É uma morte aos poucos. Um envenenamento suave. Mas sei que não gosto de dor, coisa que conheço e bem. O mundo não é triste, faço-o. A alegria é arrancada de um vazio pelo meu sorriso. Nasce. Às vezes sou visitado por todas as insatisfações que aos poucos foram sendo deixadas na beira do caminho. Elas merecem minha atenção, mas jamais minha vida. Às vezes deixo de ver qual a saída para um beco sem saída em que posso estar metido. Mas no mais das vezes vejo que a vida não tem saída porque não faz falta saída, e o beco não é sem saída, porque simplesmente não há beco. Às vezes, quando estou dentro de um abrigo antiaéreo, como nos filmes de antigamente, descubro que não há guerra.
Amo minha vida, amo o estar aqui, neste lugar, convivendo com uma certa mulher que é um conjunto de bênçãos, encontrando amigos e gente que sofre, ajudando e sendo ajudado.
Hoje as visitas foram nostálgicas, não por elas, sim porque me fiz de pouso para aquilo que deveria ser visto, avaliado e esquecido... Se assim não fiz, isso não significa muito, embora um amante dos dramas que em mim há, queira. O mundo segue, a noite vai caminhando, agora posso me levantar para dar um bom passeio sentindo a brisa fresca do vale.
Aureo Augusto.

domingo, 1 de agosto de 2010

UMA HISTÓRIA COM MORTE NO FINAL

Este post vai para Maria Júlia, que gosta de histórias de terror.
Vou contar uma lenda retirada do “livro da caveirinha” como o chamava Sunna, minha filha, quando pequena (Cuentos y Leyendas de la Bretaña, histórias populares recopiladas por Ros Garcia-Lluis). Lê Coat, morador de Quimper a contou em 1891 e nos fala de uma experiência interessante vivida pelo Sr. Laou ar Braz, importante dono de terras em Pleyber-Christ.
Antes de começar devo dizer que os bretões são povos celtas que emigraram das ilhas britânicas lá pelos séculos V e VI a.D. por ocasião das invasões ango-saxônicas e se instalaram no noroeste da França, região anteriormente conhecida como Armórica (também terra celta) e que desde aí passou a denominar-se Pequena Bretanha ou simplesmente Bretanha. Uma vez que se cristianizaram adaptaram alguns de seus velhos costumes e conceitos à natureza da nova religião. Entre os celtas antigos, a morte era uma passagem tão natural de um mundo para outro que uma pessoa poderia pedir dinheiro emprestado a outra contratando de pagar na outra vida. É claro que isso só dava certo porque todos viviam esta concepção como verdade – alguém que ler estas linhas poderia pensar que um sabidório se daria bem entre eles quando o fato é que o sabido também participaria desta concepção e para ele, com certeza, no outro mundo seria cobrado. A morte era algo tranqüilo e, em certa medida, conhecido. Porém com a introdução do cristianismo aconteceu uma certa revisão e paradoxalmente a morte passou a ser algo não tão agradável e aceitável. Nos ensina Garcia-Lluis que eles conhecer a morte pelo termo L’Ankou (que, observe-se, é um personagem masculino e não feminino como entre nós, brasileiros) e as almas dos mortos como L’Anaon. O Ankou (o morte) é representado como um esqueleto cuja cabeça gira para todas as direções buscando novos defuntos e percorre os caminhos com sua foice sobre uma carroça com dois cavalos: Anken (dor) e Ankoun (esquecimento). O interessante é que quem representa o papel de Ankou em um ano é o último morto do ano anterior naquela região. Daí não interessa a ninguém ser o último a morrer no ano. Dito isso, e já um pouco enfronhados do jeito de pensar daquela gente, vamos à lenda:
Dizia eu que o Sr Laou ar Braz era um rico fazendeiro. Um dia de domingo ele estava feliz da vida e, após o pregoeiro do lugar haver anunciado as decisões do prefeito (à saída da igreja, após a missa, ao lado do cemitério) ele pediu a palavra e convidou toda a população para comer em sua casa na terça-feira porque havia matado um porco muito grande que tinha. Queria partilhar a comilança com seus vizinhos. Êta que foi uma festa quando fez o anúncio. Todos se dispuseram a ir e começaram ali mesmo a beber e a dançar já antecipando o prazer. Quando ia se afastando uma voz fraca perguntou:
- Eu também poderei ir?
- Claro – respondeu o Sr ar Braz – convidei a todos e não quero que ninguém fique de fora.
E na terça-feira uma multidão foi para a casa do fazendeiro, e ninguém ficou sem um prato derramando comida. Ninguém, nem mesmo o mais glutão dos moradores de Pleyber-Christ, deixou de se sentir satisfeito com a quantidade e a qualidade da comida. Atrasado chegou um maltrapilho bastante fedorento, mas que, em conformidade com a hospitalidade daquela gente, encontrou um assento para sentar, um prato para comer e uma caneca de vinho para tomar. Porém não era muito guloso, lambiscava o prato, bebericava o vinho. Alguns tentaram puxar conversa, mas, com a cabeça dentro do capuz do gibão, mantinha-se silencioso. Foi esquecido, que em lugar de festa, tristeza não toma assunto.
Quando todos se foram Laou ar Braz viu que o desconhecido ainda estava sentado em frente ao prato. Jovialmente aproximou-se e disse que estivesse à vontade; era natural que chegando por último, derradeiro saísse, e que comesse tranqüilo. Mas ao aproximar-se Laou pôde divisar o rosto encaveirado do personagem. Este já não mais fez por esconder-se, deixando ver suas carnes apodrecidas despegando-se dos ossos amarelados. O odor que exalava era nauseante e Laou então deu-se conta de que se tratava do Ankou. Este dirigiu-lhe a palavra:
- Laou, no domingo, em frente ao cemitério, quando lhe perguntei se eu também poderia vir, você me convidou igual aos outros. Sou o Ankou, e já é tarde para anunciar isso, porém como você foi muito amável comigo, quero lhe dar uma prova de minha amizade. Previno-te que em oito dias você morrerá. Voltarei aqui com a minha carroça para busca-lo. Dessa maneira você terá a chance de arrumar sua vida e preparar-se para sua partida. A comida que lhe darei não será tão boa quanto a sua, porém a companhia será bem mais numerosa.
E se foi.
Então, grato pela oportunidade que estava tendo, pois aos bretões lhes agrada (ou agradava) saber o dia da morte, cuidou de se preparar, foi à missa no domingo, na segunda-feira fez a comunhão e na terça-feira à noite morreu. Graças à sua generosidade teve uma boa morte.

Que você também, caro leitor, tenha uma boa morte! Mas daqui a muito tempo.
Aureo Augusto