domingo, 1 de agosto de 2010

UMA HISTÓRIA COM MORTE NO FINAL

Este post vai para Maria Júlia, que gosta de histórias de terror.
Vou contar uma lenda retirada do “livro da caveirinha” como o chamava Sunna, minha filha, quando pequena (Cuentos y Leyendas de la Bretaña, histórias populares recopiladas por Ros Garcia-Lluis). Lê Coat, morador de Quimper a contou em 1891 e nos fala de uma experiência interessante vivida pelo Sr. Laou ar Braz, importante dono de terras em Pleyber-Christ.
Antes de começar devo dizer que os bretões são povos celtas que emigraram das ilhas britânicas lá pelos séculos V e VI a.D. por ocasião das invasões ango-saxônicas e se instalaram no noroeste da França, região anteriormente conhecida como Armórica (também terra celta) e que desde aí passou a denominar-se Pequena Bretanha ou simplesmente Bretanha. Uma vez que se cristianizaram adaptaram alguns de seus velhos costumes e conceitos à natureza da nova religião. Entre os celtas antigos, a morte era uma passagem tão natural de um mundo para outro que uma pessoa poderia pedir dinheiro emprestado a outra contratando de pagar na outra vida. É claro que isso só dava certo porque todos viviam esta concepção como verdade – alguém que ler estas linhas poderia pensar que um sabidório se daria bem entre eles quando o fato é que o sabido também participaria desta concepção e para ele, com certeza, no outro mundo seria cobrado. A morte era algo tranqüilo e, em certa medida, conhecido. Porém com a introdução do cristianismo aconteceu uma certa revisão e paradoxalmente a morte passou a ser algo não tão agradável e aceitável. Nos ensina Garcia-Lluis que eles conhecer a morte pelo termo L’Ankou (que, observe-se, é um personagem masculino e não feminino como entre nós, brasileiros) e as almas dos mortos como L’Anaon. O Ankou (o morte) é representado como um esqueleto cuja cabeça gira para todas as direções buscando novos defuntos e percorre os caminhos com sua foice sobre uma carroça com dois cavalos: Anken (dor) e Ankoun (esquecimento). O interessante é que quem representa o papel de Ankou em um ano é o último morto do ano anterior naquela região. Daí não interessa a ninguém ser o último a morrer no ano. Dito isso, e já um pouco enfronhados do jeito de pensar daquela gente, vamos à lenda:
Dizia eu que o Sr Laou ar Braz era um rico fazendeiro. Um dia de domingo ele estava feliz da vida e, após o pregoeiro do lugar haver anunciado as decisões do prefeito (à saída da igreja, após a missa, ao lado do cemitério) ele pediu a palavra e convidou toda a população para comer em sua casa na terça-feira porque havia matado um porco muito grande que tinha. Queria partilhar a comilança com seus vizinhos. Êta que foi uma festa quando fez o anúncio. Todos se dispuseram a ir e começaram ali mesmo a beber e a dançar já antecipando o prazer. Quando ia se afastando uma voz fraca perguntou:
- Eu também poderei ir?
- Claro – respondeu o Sr ar Braz – convidei a todos e não quero que ninguém fique de fora.
E na terça-feira uma multidão foi para a casa do fazendeiro, e ninguém ficou sem um prato derramando comida. Ninguém, nem mesmo o mais glutão dos moradores de Pleyber-Christ, deixou de se sentir satisfeito com a quantidade e a qualidade da comida. Atrasado chegou um maltrapilho bastante fedorento, mas que, em conformidade com a hospitalidade daquela gente, encontrou um assento para sentar, um prato para comer e uma caneca de vinho para tomar. Porém não era muito guloso, lambiscava o prato, bebericava o vinho. Alguns tentaram puxar conversa, mas, com a cabeça dentro do capuz do gibão, mantinha-se silencioso. Foi esquecido, que em lugar de festa, tristeza não toma assunto.
Quando todos se foram Laou ar Braz viu que o desconhecido ainda estava sentado em frente ao prato. Jovialmente aproximou-se e disse que estivesse à vontade; era natural que chegando por último, derradeiro saísse, e que comesse tranqüilo. Mas ao aproximar-se Laou pôde divisar o rosto encaveirado do personagem. Este já não mais fez por esconder-se, deixando ver suas carnes apodrecidas despegando-se dos ossos amarelados. O odor que exalava era nauseante e Laou então deu-se conta de que se tratava do Ankou. Este dirigiu-lhe a palavra:
- Laou, no domingo, em frente ao cemitério, quando lhe perguntei se eu também poderia vir, você me convidou igual aos outros. Sou o Ankou, e já é tarde para anunciar isso, porém como você foi muito amável comigo, quero lhe dar uma prova de minha amizade. Previno-te que em oito dias você morrerá. Voltarei aqui com a minha carroça para busca-lo. Dessa maneira você terá a chance de arrumar sua vida e preparar-se para sua partida. A comida que lhe darei não será tão boa quanto a sua, porém a companhia será bem mais numerosa.
E se foi.
Então, grato pela oportunidade que estava tendo, pois aos bretões lhes agrada (ou agradava) saber o dia da morte, cuidou de se preparar, foi à missa no domingo, na segunda-feira fez a comunhão e na terça-feira à noite morreu. Graças à sua generosidade teve uma boa morte.

Que você também, caro leitor, tenha uma boa morte! Mas daqui a muito tempo.
Aureo Augusto

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