Este post vai para Maria Júlia, que gosta de histórias de terror.
Vou contar uma lenda retirada do “livro da caveirinha” como o chamava Sunna, minha filha, quando pequena (Cuentos y Leyendas de la Bretaña, histórias populares recopiladas por Ros Garcia-Lluis). Lê Coat, morador de Quimper a contou em 1891 e nos fala de uma experiência interessante vivida pelo Sr. Laou ar Braz, importante dono de terras em Pleyber-Christ.
Antes de começar devo dizer que os bretões são povos celtas que emigraram das ilhas britânicas lá pelos séculos V e VI a.D. por ocasião das invasões ango-saxônicas e se instalaram no noroeste da França, região anteriormente conhecida como Armórica (também terra celta) e que desde aí passou a denominar-se Pequena Bretanha ou simplesmente Bretanha. Uma vez que se cristianizaram adaptaram alguns de seus velhos costumes e conceitos à natureza da nova religião. Entre os celtas antigos, a morte era uma passagem tão natural de um mundo para outro que uma pessoa poderia pedir dinheiro emprestado a outra contratando de pagar na outra vida. É claro que isso só dava certo porque todos viviam esta concepção como verdade – alguém que ler estas linhas poderia pensar que um sabidório se daria bem entre eles quando o fato é que o sabido também participaria desta concepção e para ele, com certeza, no outro mundo seria cobrado. A morte era algo tranqüilo e, em certa medida, conhecido. Porém com a introdução do cristianismo aconteceu uma certa revisão e paradoxalmente a morte passou a ser algo não tão agradável e aceitável. Nos ensina Garcia-Lluis que eles conhecer a morte pelo termo L’Ankou (que, observe-se, é um personagem masculino e não feminino como entre nós, brasileiros) e as almas dos mortos como L’Anaon. O Ankou (o morte) é representado como um esqueleto cuja cabeça gira para todas as direções buscando novos defuntos e percorre os caminhos com sua foice sobre uma carroça com dois cavalos: Anken (dor) e Ankoun (esquecimento). O interessante é que quem representa o papel de Ankou em um ano é o último morto do ano anterior naquela região. Daí não interessa a ninguém ser o último a morrer no ano. Dito isso, e já um pouco enfronhados do jeito de pensar daquela gente, vamos à lenda:
Dizia eu que o Sr Laou ar Braz era um rico fazendeiro. Um dia de domingo ele estava feliz da vida e, após o pregoeiro do lugar haver anunciado as decisões do prefeito (à saída da igreja, após a missa, ao lado do cemitério) ele pediu a palavra e convidou toda a população para comer em sua casa na terça-feira porque havia matado um porco muito grande que tinha. Queria partilhar a comilança com seus vizinhos. Êta que foi uma festa quando fez o anúncio. Todos se dispuseram a ir e começaram ali mesmo a beber e a dançar já antecipando o prazer. Quando ia se afastando uma voz fraca perguntou:
- Eu também poderei ir?
- Claro – respondeu o Sr ar Braz – convidei a todos e não quero que ninguém fique de fora.
E na terça-feira uma multidão foi para a casa do fazendeiro, e ninguém ficou sem um prato derramando comida. Ninguém, nem mesmo o mais glutão dos moradores de Pleyber-Christ, deixou de se sentir satisfeito com a quantidade e a qualidade da comida. Atrasado chegou um maltrapilho bastante fedorento, mas que, em conformidade com a hospitalidade daquela gente, encontrou um assento para sentar, um prato para comer e uma caneca de vinho para tomar. Porém não era muito guloso, lambiscava o prato, bebericava o vinho. Alguns tentaram puxar conversa, mas, com a cabeça dentro do capuz do gibão, mantinha-se silencioso. Foi esquecido, que em lugar de festa, tristeza não toma assunto.
Quando todos se foram Laou ar Braz viu que o desconhecido ainda estava sentado em frente ao prato. Jovialmente aproximou-se e disse que estivesse à vontade; era natural que chegando por último, derradeiro saísse, e que comesse tranqüilo. Mas ao aproximar-se Laou pôde divisar o rosto encaveirado do personagem. Este já não mais fez por esconder-se, deixando ver suas carnes apodrecidas despegando-se dos ossos amarelados. O odor que exalava era nauseante e Laou então deu-se conta de que se tratava do Ankou. Este dirigiu-lhe a palavra:
- Laou, no domingo, em frente ao cemitério, quando lhe perguntei se eu também poderia vir, você me convidou igual aos outros. Sou o Ankou, e já é tarde para anunciar isso, porém como você foi muito amável comigo, quero lhe dar uma prova de minha amizade. Previno-te que em oito dias você morrerá. Voltarei aqui com a minha carroça para busca-lo. Dessa maneira você terá a chance de arrumar sua vida e preparar-se para sua partida. A comida que lhe darei não será tão boa quanto a sua, porém a companhia será bem mais numerosa.
E se foi.
Então, grato pela oportunidade que estava tendo, pois aos bretões lhes agrada (ou agradava) saber o dia da morte, cuidou de se preparar, foi à missa no domingo, na segunda-feira fez a comunhão e na terça-feira à noite morreu. Graças à sua generosidade teve uma boa morte.
Que você também, caro leitor, tenha uma boa morte! Mas daqui a muito tempo.
Aureo Augusto
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