segunda-feira, 24 de novembro de 2014

PÉTALAS

Durmo e acordo sobre uma linha e me perco cada dia. Nem queria tão pouco e, mais ainda não queria viver assim tomado pela paixão de cada coisa, não pelo querer, sim pelo desavisado não usar da vontade, pois as coisas se põem e nem sempre nos pomos para elas com a nossa vontade. A vida resvala tão mais rápida do que quer meu coração e tão sem que eu saiba como, por que e onde...

Durmo e acordo sobre o plano do tempo enquanto doo meu tempo para que o tempo passe, aí as pessoas brincam de meu coração ama-las, mas não as amo todo o tanto nem tanto o quanto há de amor no meu coração, não que falte, mas porque mais do que falta há aquela distância que nem sempre sei traspassar. Às vezes de quando em vez acontece aquela senhora idosa, ou a mocinha perdida, a criança de olhar sapeca, cada olhar de uma dada mulher ou por um tempo beijos e abraços que se converteram em silêncio, o bebê me beijando com seu olhar impossível, o homem bravo escondendo o medo, a árvore anunciando-me o nada, a brisa me dizendo da carícia divina, os pássaros com o cantar de bigorna que me saúda a manhã quando o frio da água do rio cedo faz de pele à pele. Queria eu que esse acontece não desacontecesse na memória falsa das coisas que não significam, mas fingem.

Todos os fins-de-semana noto que o tempo voltou. Aí me encontro novamente sentado em cima da vida dentro da mão que sem existir criou tudo e acaricia a mim com o todo, como ao Todo.
Pode que o sol lamba as faldas da serra assolando-a de calor ou que a chuva brinque de saquear as margens dos rios de sua secura, o riso quem sabe ostente-se em dentes claros à espreita de olhares coniventes ou lágrimas brotem fecundando almas de compaixão. Pode que a vida interrompa-se no arfar da dor ou não, que o arfar seja de um recém-nado que emergiu do canal aveludado de sua mãe e todos sorriem acreditando que o tempo parou em celebração da nascitura vida.

Tantas coisas ao meu redor dispostas apenas para que eu possa ama-las, e, aprendiz, nada mais faço que abrir as pétalas da minha alma em busca de um dia saber.


Recebam um abraço desacontecido de Aureo Augusto.

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

PREGUIÇA AGITADA

É preciso privar-se da agitação desregrada, à qual se entrega a maioria dos homens, que vemos precipitarem-se alternativamente nas casas particulares, nos teatros e nos lugares públicos: sua mania de se intrometer nos negócios dos outros lhes dá uma r de grande atividade. Pergunta a algum deles, quando sai de casa: “Aonde vais? Qual é teu destino?” Ele responderá: “Por Hércules! Não sei nada, mas eu verei gente e encontrarei qualquer coisa para fazer”. Eles vagam assim ao acaso mendigando ocupações ... Quantas pessoas levam uma existência semelhante, que se chamaria muito justamente preguiça agitada.
Este parágrafo foi escrita por Lúcio Aneu Sêneca, filósofo latino, há mais de 1500 anos atrás. Ao lê-la em seu agradável texto intitulado “Da Tranquilidade da Alma”, não pude deixar de associa-la a um número razoável de pessoas que vejo presas ao Facebook. Na época de Sêneca o correspondente às redes sociais e aos e-mails era o sair de casa em visitas e mais visitas, correr atrás de conversas apenas em aparência interessadas e interessantes, falsamente resolutivas e decisivas, nas praças, nas residências particulares, nos banhos públicos.

Hoje testemunho a incomunicação dos meios de comunicação a serviço da superficialidade das relações numa reprodução moderna de um mundo que afundou com as invasões bárbaras, mas capaz de manter suas características apesar da passagem do tempo. Uma pena porque o Facebook, o Twiter, os e-mails, são uma grande oportunidade de democratizar relações e gerar informação formativa. Mas temos o dom de nos perder.

Penso que é maravilhoso enternecer-me com o primeiro sorriso de um bebê que sua mãe postou com a emoção dos que amam. Gosto disso e não deixo de pingar o meu “curtir”. Mas também olho com preocupação a desocupação das conversas ou a maquinização com que pessoas encaminham e-mails ou postam informações em suas linhas do tempo sem nenhum interesse maior do que satisfazer aos imperativos da preguiça agitada, mencionada por Sêneca. Sem nenhuma tentativa de senso crítico, de verificação, ou de cuidado quanto à verdade, à veracidade, à consequência, ao significado do posto nas letras da virtualidade.

“Preguiça Agitada”: Que conceito precioso este daquele autor antigo. Vejo um sem número de pessoas agitando os dedos sobre pequenos teclados, frenética e preguiçosamente agitadas na busca de nada saber sobre todas as coisas, ou melhor, sobre todo o mundo. Uma verdadeira doença e finalizo com o mesmo Sêneca: “A esta doença se prende um vício horrível: Este de se informar de tudo, de estar à espreita de todas as novidades, tanto secretas como públicas, e de possuir uma quantidade de histórias perigosas para contar e igualmente perigosas para ouvir”.


Recebam um abraço admirado do Facebook e outras tecnologias (sem ironia) de Aureo Augusto.

domingo, 9 de novembro de 2014

HOJE

Hoje fui a um lugar aqui no Vale do Capão chamado Riachinho de Lençóis. Tem um poço de águas escuras e frias que contrabalançam esta seca de tantos anos que faz o mundo sofrer. Deitei-me e deleitei-me com o frescor das águas boiando nelas como se o universo me tivesse (e tem) na palma da mão.

Depois sair a caminhar e observei a delicada fímbria dourada das folhas, rústicas flores visitadas por ágeis abelhas, pássaros rápidos disputando a velocidade com o vento. Vi uma flor idêntica à quaresmeira em suas magentas e violáceas presenças, só que bem pequenas; havia uma orquídea que não poderia existir. Tão pequena e tão detalhada. Impossível passível de ser visto pelos meus olhos embevecidos; deixei-me estar entre as flores, o sol, e o áspero mato dos gerais. Depois voltei ao rio, à água e senti a exaltação da beleza das rochas brancas rebrilhando ao sol sob a água. Uma luz inapelavelmente impassível à passagem rápida da água célere e do tempo se dilatando à minha atenção.

Sei que não sei. Sei que é tudo muito grande e grandioso. Sei que uma quase imperceptível orquídea esquecida no meio do áspero matagal é um monumento a minha ignorância tão bem vinda e à minha competência em reconhecer o irreconhecível em cada coisa, e o inominável em cada denominação.
Depois voltei pra casa e comi pizza com alface.


Recebam um abraço deleitoso de Aureo Augusto.