quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

VIOLÊNCIA DROGAS VALE DO CAPÃO

Alguns pais estão desesperados por causa de seus filhos. Estes caíram na armadilha das drogas. Não é fácil vê-los assim. E o pior é que as soluções o mais das vezes mostram-se falhas e impossíveis. Ainda assim, como esperado, seguem em suas buscas e fugas. Uma fuga que tem incomodado sobremaneira à gente decente aqui do Vale do Capão é mandar para cá os “sem jeito” e “enjeitados”. Temos no vale alguns jovens que, para conforto dos pais (e desconforto nosso) vieram viver nesse lugar aonde a polícia não vem com a freqüência devida, e, consequentemente podem exercer sua adicção sem risco de prisão. Aqui, interagem com a juventude local que com freqüência se admira dos discursos ecolibertários, e da vida sem esforço. Alguns tentam seguir o exemplo, com a diferença que seus pais nativos não dispõem de recursos para manter-lhes as farras. Temo pelo futuro. Os jovens daqui, antigamente sonhavam em ir para São Paulo. Hoje querem viver neste lugar que reconhecem como maravilhoso, mas as oportunidades não são muitas e uma parte fica encantada com a possibilidade de vida fácil e sonhos químicos. Vejo-os caminhando como zumbis pelos caminhos. Não são muitos, mas o suficiente para doer na alma de quem ama o vale. Ora, se nas grandes cidades não se sabe o que fazer com estas pessoas, imagine a situação das mulheres e homens nativos que, durante a vida aprenderam a plantar e colher café e banana, mandioca pra fazer farinha, cozinhar para a família e cavucar a terra na busca do brilhante. Essa coisa de drogas é algo de outro planeta, mesmo já tendo conhecido os viciados em álcool. Aqueles que se livram de seus filhos desvairados mandando-os para cá não têm idéia do mal que causam a esta terra. Estes jovens vivem aqui com a mesada (muitas vezes polpudas) que os pais lhes proporcionam, traficando e consumindo drogas e, como escrevi acima incentivando aos jovens nativos a seguir-lhes o exemplo. Apesar do discurso pacifista e ecológico com alguma freqüência se metem em brigas, como recentemente, quando alguns deles agrediram um espanhol que por aqui andava, o qual foi socorrido por populares, mas em péssimo estado. O espanhol prestou queixa e espero que os responsáveis (?) pela agressão sejam presos, porque representam tudo aquilo que a imensa maioria da população do Capão não quer.
A população do Vale do Capão vem de uma história de pobreza e luta; a labuta para sobrevivência sempre foi muita e as condições de vida só permitiam parcimônia nos hábitos. Hoje os idosos, os adultos e os jovens cantam a alegria de um tempo que nunca se experimentou, onde o conforto é possível, a educação é mais presente e a saúde recebe cuidado. Estas coisas merecendo melhoria, mas enfim, mais e melhor do que em qualquer outra época. Tudo isso ocorre porque a beleza do lugar e a hospitalidade dos moradores atraíram e atraem pessoas que se maravilham e se harmonizam com o Vale do Capão. Infelizmente alguns se interessaram pelo fato de que podem ser bem recebidos (já que a gente é hospitaleira) e não encontram peias para seus costumes bárbaros e para seus vícios. Ao invés de visitar ou morar, invadem. Sua presença é um abuso... Por isso, peço encarecidamente aos pais daqueles que usam drogas que não mandem seus filhos para cá, a menos que achem pouco que apenas eles estejam destruídos e pensem que os demais também devem perder o senso. Sei que sofrem, mas o sofrimento não diminuirá com a chegada de novas vítimas. E, ademais, as pessoas daqui estão começando a perceber o mal que causam, querem se defender, e a polícia tem estado aqui com mais freqüência. Já não é aquele lugar onde a alegria foi confundida com permissividade. Não queremos que nossos visitantes sejam agredidos por pessoas doentes, tomadas pela violência.
Recebam um abraço triste (por causa da recente agressão) de Aureo Augusto

sábado, 11 de dezembro de 2010

HISTÓRIAS D(N)O CAPÃO

Todo lugar (e toda pessoa) tem sua história e esta define em muito a forma de ser daquele lugar (ou pessoa). E o Vale do Capão tem muitas histórias, e confesso fico um pouco agoniado com a idéia, ou melhor, constatação, de que estas, aos poucos serão esquecidas. Gostaria que os jovens ouvissem seus antepassados e soubessem daquilo que pelo que passaram, os atos e fatos que representam seus alicerces de vida, crenças, emoções... Temo que percam algo da própria identidade na medida em que se desvaneça neles o sentido plural do que foram e são. O que agora acrescentam à história, ocorre-me, fica um pouco no ar. Hoje vi um jovem nativo caminhando de um jeito estereotipado, enrolando os dedos no cabelo e assumindo uma postura de dono do mundo enquanto o carro passava, voltando (vi pelo retrovisor) a uma postura menos ostensiva. Ele absorveu a influência de um grupo de pessoas que aqui aportam, dispostas a salvar o mundo em discursos incensados com maconha, a sacralizar a vida através a ausência do mundo real, prontos a acontecer sem realizar. Minhas palavras podem sugerir que estas pessoas nada contribuam; não é assim. Contribuem, mas esta contribuição revela-se mera abstração vazia e alienante se não encontra uma consciência sedimentada (um ego estruturado) pela experiência de vida (tanto própria quanto a vida herdada dos ancestrais). Vivi, por isso sei, e o que sei só o sei por haver-lhe vivido. Conheci as propostas dos (hoje) velhos hippies e as experimentei. Mas daquilo o que aproveitei para uma vida produtiva dependeu em grande medida daquilo que meus pais são (mais do que representam) em mim. Belchior fala que “apesar de tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. No que toca a mim, tomo esta frase como um motivo de alegria. Ainda bem que sigo vivendo como eles, uma gente admirável, e, claro, ainda bem que acrescentei outras experiências pelas quais passei em minha vida (como, por exemplo, o que me trouxeram os hippies). Já o referido jovem nativo, este negou o próprio passado. Afastou-se de seus ancestrais e agora está boiando; seus pés não tocam o chão. Não precisamos, registro, ter histórias heróicas, glamurosas, precisamos apenas de histórias que possam nos significar. A vida é feita mais de pequenas coisas do que de atos extraordinários. Aliás, a busca do extraordinário é uma das coisas que nos afasta de nós mesmos e do fato único de que estamos aqui, tendo a oportunidade de viver, de existir neste mundo e nesse momento exato e especial (o agora é um momento que não se repetirá jamais – por isso especial). Como aquele momento especial em que conversava com D. Marilza e D. Lourdes que me contaram o como era saboroso os tijolinhos de licurí com rapadura feitos por D. Mariquinha nos tempos de antigamente; segundo elas até hoje ninguém faz igual. Claro, os tais tijolinhos têm a carga das boas lembranças de quando elas eram crianças; aliás, D. Lourdes, logo depois, lembrou de que houve uma época por aqui onde as pessoas adotaram a língua do ‘p’ e que isso foi bem divertido. A dureza dos tempos antigos, com suas chuvas intermináveis, parcos recursos, pontuada por momentos de miséria e fome, não impedia que as pessoas encontrassem brincadeiras e momentos felizes. Comentava com Marilza a respeito do desespero exagerado de uma jovem por estar com uma agonia no ouvido. Ela chorava, golpeava a cabeça, agitada, quase alucinada. Tentamos acalmá-la e a muito custo nos escutou. A lavagem do ouvido revelou um bolo de cera que se deslocara. Marilza e eu concordamos que boa parte dos jovens sofrem o pouco como se muito fosse. Não agüentam a dor. Não proponho uma postura ascética, mas encontro que a turma perdeu o sentido de que a vida tem dificuldades, mas por isso não precisamos nos desesperar. Falta-lhes histórias que possam referenciar-lhes. Penso.
Recebam uma abraço histórico de Aureo Augusto

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

SAÚDE E ALEGRIA

Ultimamente o pique tem sido grande por aqui. O médico do posto de saúde de Palmeiras teve férias (merecidas) e como o município não pôde contratar outro para substituí-lo por causa de um tal índice de contratação de pessoal, estou trabalhando lá e cá. Um dia no Vale e outro na sede do município, o que implica em chegar em casa tarde e assim as escritas têm rareado. Embora meu coração fique triste ao perceber que o índice ficou assim não por causa dos funcionários e sim por razões que a própria razão consideraria, no mínimo, estranhas, tenho aprendido muitas coisas, em um posto que não faz parte da Estratégia de Saúde da Família, partilhando tempo e experiências com os colegas. Ao trabalho de ESF interessa integrar conhecimentos, experiências, vida das pessoas, enquanto no posto de saúde comum, há uma tendência mais evidente daquele atendimento dicotomizado, onde entrego uma informação sob a forma quase sempre de medicações ou ordem de conduta, sem uma interação tal que a pessoa chamada paciente assuma de maneira clara a responsabilidade pelo próprio processo. Fica um coisa de “dou e você recebe”. O tempo joga um papel importante, o sistema ideológico também e por aí vai. Parece-me necessário, porém mais como algo para apagar incêndios do que para evitá-los. Útil, porque vivemos uma situação calamitosa para a saúde, mas a meu ver a proposta da ESF se realmente cumprida (e secundada por outras) pode reduzir o número de pessoas necessitadas de socorro no posto.
Com isso, tem sido mais difícil trabalhar convenientemente no PSF daqui mesmo do Capão. Encontro menos os colegas, temos que resolver coisas às pressas em reuniões rápidas de corredores etc. e, ademais, nos dias em que estou aqui, há acúmulo de atendimentos e, consequentemente alguma redução da qualidade. Inda bem que é por pouco tempo.
Mesmo com estas dificuldades, tanto no posto da sede em Palmeiras, quanto aqui na USF-Vale do Capão, tenho tido a oportunidade de encontrar, conviver, ensinar e aprender com pessoas muito interessantes. Ontem encontrei Landinha, uma mulher extraordinária. Foi ela uma das que me ensinou a dançar forró. Admirei-me sempre de sua labuta com os filhos – uma vez que enviuvou por conta de uma cascavel que matou seu marido – mantendo o pique de dançar os forrós ao som da sanfona do finado Biu. Nesta vez, ela me contava, no meio de uma consulta, que sua mãe, D. Argentina, certa feita falou que, após uma traquinagem, ia apanhar do pai. Este se organizava para sová-la quando ela, num momento de intuição pura, lançou-se ao chão, fingindo desmaio. A mãe de D. Argentina acorreu e afastou do pai a Idéia de castigo, já que a menina não resistira e tivera um desmaio – podia morrer! Landinha, que não é gente, logo pensou em usar o sistema. Traquina demais, não lhe faltou oportunidade. Foi assim que pouco depois, D. Argentina pegou o cinto para lhe dar uma boa surra e ela, conforme me contou, caiu no chão estrepitosamente, com tal denodo que o osso da bunda doeu (repito suas palavras). E ali ficou estirada como morta. Mas D. Argentina não caiu no engodo e deu-lhe uma surra e tanto. Rimos muito os dois da história e foi bom para o meu coração vê-la sair da consulta feliz da vida, limpando lágrimas nos olhos, mas não de dor e sim de alegria. Quando você vier no Capão, procure conhecer Landinha, e, aproveite e compre a granola dela, deliciosa e feita com o maior cuidado e, claro, bom humor. Uma mistura de saúde e alegria.
Receba a minha alegria em 9 de dezembro de 2010, Aureo Augusto

sábado, 20 de novembro de 2010

CUIDAR (SOLIDARIEDADE)

Ontem fui fazer as visitas domiciliares do posto de saúde onde trabalho. Instigado por um convite que recebi para uma fala sobre o cuidar, ao chegar em casa me vieram estes pensamentos:
Em primeiro lugar, antes de tudo, ocorre-me dizer que o principal é esquecer que nós somos seres especiais. Nós da saúde nos sentimos como uma elite. Nem vou falar no médico que é tratado como tal e, praticamente é induzido, quando estudante, a sentir-se como tal. Exemplo: há alguns anos atrás tive uma prova da consideração com que nós médicos somos agraciados, pois sendo minha conta bancária um ermo, mesmo assim o gerente do banco me procurou pra eu ter cheque especial porque, segundo ele, não se concebia um médico sem cheque especial. Mesmo mostrando meu saldo, ele não considerou. Médico é tratado como elite (seja ele proveniente ou não da elite), mas isso acaba contaminando todo o pessoal da saúde – não penso que se deva menosprezar a contribuição do pessoal da saúde à sociedade, mas aqui quero trazer os aspectos negativos desta elitização. Nós, os seres humanos, temos uma tendência muito forte a considerarmo-nos como fazendo parte de um grupo especial. Os católicos acham que as religiões são uma coisa muito boa, mas o João Paulo II disse que a que leva mesmo pro céu é o catolicismo. Já os evangélicos são taxativos: cristãos mesmo, só eles. Quer ir para o paraíso após a morte? Converta-se. Os muçulmanos não entendem um paraíso se não for ocupado pelos seguidores de Maomé. Já que falamos de religião, e seguindo o pensamento de Berthrand Russel, convém dizer que os comunistas se acham os únicos com a verdade. Outrossim, o pessoal do consenso de Washington, pelo menos antes de ver a cagada que propuseram, consideravam-se a verdade econômica sem apelação. Bem disse Hannah Arendt quando considerou que o totalitarismo é o governo da verdade. Isso mesmo, achamos que estamos certos e o passo seguinte é achar que os outros estão errados e, corolário lógico, estando eles errados e nós certos, somos melhores, ou superiores, a eles; logo depois, em nome de Deus, da História ou dos bons costumes declaramos os opositores culpados de lesa majestade, lesa religião, lesa história, heterodoxos, ortodoxos, ou de pervertidos passíveis de cadeia, hospício, gulag, paredão, campo de concentração, tortura etc. Mesmo que a nossa opinião seja verdadeira, o governo que dela sai (sendo excludente), é totalitário, injusto, e, mesmo, assassino. Dito assim parece que este tipo de coisa só acontece no mundo grande, na política internacional. Mas acontece todos os dias, no dia-a-dia, na vida cotidiana. Desconfiamos daquilo que é diferente do consenso (quando nós participamos do consenso) e detestamos o senso comum (quando dele não somos exemplo), este é o primeiro passo que pode chegar ao desejo e ao ato de eliminar aquilo que não se alinha à nossa verdade. Agora pense o pessoal da saúde, com toda a quantidade de informação que tem, horrorizado porque – uma que aconteceu comigo recentemente – a velhinha recusa-se a ir ao hospital. O quadro era grave, vi que não podia tratá-la em casa. Implorei, ou melhor, imploramos – porque toda a família estava lá comigo – para que fosse, mas ela irredutível: “Se eu tiver que morrer disso, morro em casa”. Com seus oitenta e tantos anos de vida e autoridade, ninguém a moveu. E ainda não morreu. Entendam: Temos razão em muitas coisas. O problema é que não vemos com a mesma presteza a razão do outro. Aí está o cerne do belicismo e também (e paradoxalmente) do cuidado. Não ponho aqui a questão de quem estava certo; a questão é que cada um tem as suas razões e como todos têm razão, acontecem as guerras, os guetos, as exclusões e as elites (que vão desde as famílias tradicionais até a nomenklatura da ex-URSS). A face bonitinha disso é o paternalismo travestido de bondade e compreensão, que ajuda, mas não liberta.
Cuidar do outro é cuidar com o outro. A palavra ‘com’ traz algumas implicações. Uma delas é que o cuidador não sentir-se-á superior àquele a quem dirige o cuidado. Ou seja, seu motor virtuoso será a ‘solidariedade’ no sentido posto por André de Comte-Sponville, em seu belíssimo Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Explica-nos o autor de uma forma deliciosa que esta virtude ocorre entre iguais. Você será solidário com alguém que considera como um parceiro, companheiro, enfim, um igual. Caso se considere superior, já não será solidariedade e sim generosidade. Quando uma pessoa da classe média dá um prato de comida a um mendigo está sendo generosa, porque ela se considera mais bem aquinhoada no quesito finanças (pelo menos). Mas quando esta mesma pessoa se reúne com os colegas de trabalho para um movimento por melhores salários está agindo em solidariedade com os demais. O mundo foi solidário com os mineiros chilenos, porque ninguém se sentiu superior, todos se colocaram no lugar deles, como seres humanos que todos somos, e, consequentemente passíveis de sofrer as dores do existir (não necessariamente presos em uma mina, mas partícipes das malhas da vida, que tanto nos pode trazer condições de alegria quanto de dor). É assim que devemos receber a pessoa que nos procura em um posto, hospital ou outro lugar de atenção à saúde (ou doença); ou quando, sendo Agente de Saúde ou de Endemias, chegamos à casa das pessoas a perguntar-lhe coisas, penetrar-lhe o recôndito da vida e do lar. Solidariedade.
Georg Grodeck era radical na atenção ao que a pessoa falava (leiam o instigante Estudos Psicanalíticos Sobre Psicossomática. Para ele o atendente devia respeitar absolutamente a linguagem do assim chamado paciente. Pois ali estava registrada a sua verdade e a expressão da sua vivência única. Pense: O cara diz que sente as vermes andando dentro da barriga dele. Esta é sua experiência. Você pode achar que são gases, mas ele vivencia vermes. Em que medida, gases não são vermes? E, sendo gases, e se eles forem frutos de vermes? Outro exemplo: No Chile certa vez uma mulher me disse que tinha o estômago doente. Desacostumado à linguagem local demorei a descobrir que para aquela gente estômago não é apenas um órgão específico do abdômen e sim o abdômen. Para mim o problema era intestinal, para ela intestino e estômago são uma coisa só. A verdade anatômica pode não ser a verdade cultural. Mas que importa? Importa que eu compreenda que descrições servem ao propósito de comunicar e não ao de impor verdades. Talvez devesse dizer ‘deveria’ porque nós, os depositários do pensamente científico confundimos ciência com verdade, e tomamos nossas descrições e nossas opiniões (doxa) por únicas expressões da verdade (episteme), o que é epistemologicamente falso, e, parece-me, Karl Popper já nos mostrou isso claramente em Conjecturas e Refutações, livro delicioso e imprescindível. A linguagem científica é prática e objetiva para descrever fenômenos e objetos, mas tem o grave defeito (que é sua principal qualidade) de evitar a subjetividade, como se fosse possível observação sem subjetividade. Comento isso apenas para mencionar que no quesito subjetividade a poesia ganha longe. Ou seja, existem diversas possibilidades de linguagens. Perguntar qual a falsa e qual a verdadeira é um tanto ocioso.
Nós que trabalhamos com a saúde precisamos entender (ou devo dizer compreender?) que aquela pessoa que está carecendo de apoio por encontrar-se enferma (sendo este o caso) é uma igual, na mesma medida em que somos também passíveis de padecer doença. Sofrer é condição sine qua non de existir. Sofremos a vida, sofremos as agruras e as benesses do clima, sofremos as alegrias familiares e as dores de nascer e crescer. Lembre que, como assinala Ralph Blum, sofrer é submeter-se a. Todos nós, inclusive o melhor médico do mundo, e mesmo o Ministro da Saúde (que me parece um cargo assim bem grande) está submetido às contingências de viver aqui no Planeta Terra. Portanto não somos maiores nem melhores que os demais e sim e apenas e sim e gloriosamente iguais (já que somos gente humana). E para mim esse é o primeiro passo do cuidar.
Ontem fui fazer visitas domiciliares, atributo do serviço em uma Unidade de Saúde da Família (USF). Quase todos os visitados eram idosos, com os rostos profusamente vincados por rugas e olhares tocando um passado que desconheço. Como eu, construídos de história, aquelas pessoas me tocaram da mesma maneira como lhes despertei a gratidão por nada mais fazer que cumprir a minha obrigação. Olhava para seus olhares e percebia que logo serei tal qual eles, com o rosto e alma ainda mais vincados pelo tempo. Não sou diferente e meu diploma não me fará viver mais, não me protegerá necessariamente das agruras que a idade traz ao corpo físico. Dona Marica tem uma espécie de domínio das dificuldades físicas, muito semelhante ao diálogo que estabeleceu com o clima e as condições de vida que vivenciou em um lugar duro como foi o Vale do Capão durante o quase século que viveu. A dor é assim e assado, mas ela continua catando café e fazendo a própria comida, driblando posturas dolorosas e lentidões inevitáveis, como antes organizava a vida para a época “das águas” quando a chuva forte rompia com a possibilidade de sequer sair à porta. A montanha de batatas colhidas pouco antes da estação da chuva forte, o fogo no meio da sala em um buraco no piso de barro batido. As conversas e a fumaça afastando insetos. Seus meios são os métodos que utiliza para continuar viva e feliz. Ela à despedida sincera agradeceu-me e à agente comunitária de saúde (ACS) pela visita tão grata e pelas medicações e conselhos. Em meu coração sabia que não lhe havia dado apenas e sim trocado.
Foi o velho Anísio que me ensinou a usar o mastruz com sal para as pancadas. E foi ele e Seu Artur que me mostraram na prática que a fala de Shakespeare, “há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga a nossa vã filosofia” é poesia pura e verdade. Ambos tiveram miíase no nariz em épocas distintas e testemunhei o fracasso de todas as medicações em ajudá-los. Ora, foi um benzedor que os ajudou. Logo depois da reza as larvas começaram a cair em profusão. Contado assim é forte, testemunhar foi chocante. Qual a linguagem você escolherá? Caso venha eu a ter miíase optarei pelo benzedor. Até porque o tratamento não tem efeitos colaterais. Seu Artur careceu de cataplasmas de argila para reduzir as inflamações que lhe ficaram como seqüela da miíase, enquanto o velho Anísio usou medicações “de farmácia”. Descobri no final que as diversas linguagens da nossa bela humanidade, podem (e devem) comunicar-se entre si e devo tal aprendizagem a essa gente que concedeu-me a graça de estar com ela.
Caso você saia incólume do contato com esta pessoa a quem chama de paciente, ou sua carapaça é muito dura e impenetrável, ou está dormindo tão alienadamente que perdeu a competência de conscientizar fatos interiores.
E tantas vezes aquela pessoa que está a nossa frente e solicitando o nosso socorro pode tornar-se nada mais que mais um número em uma estatística! Talvez porque estamos cansados depois de um dia de labuta, ou até porque a vida tem se revelado a nossos sentidos e pensamentos algo sem muito sentido, ocorre muitas vezes que nos pomos na condição de querer se livrar mais ou menos rápido daquele caso. Permitimo-nos não sentir. Como máquinas, orientamos poções, porções de substâncias e horários e deixamos que se vá mais uma oportunidade de sermos gente humana. Mas se o percebemos, no momento seguinte podemos olhar a pessoa e deixar que flua de nós todo este amor que podemos manifestar no conselho quanto às medicações, alimentação ou conduta... optamos por uma vida, ou seja, uma rede de relações que à máquina não é dado dispor.
O primeiro passo é permitir-se ser apenas um ser humano, despido dos diplomas e títulos cujo valor define-nos em certos ambientes, mas não em outros e muito menos naquilo que nos diz de nós mesmos a nós mesmos do que somos per si. Em seguida podemos olhar para as pessoas à altura dos olhos delas e estabelecer comunicação que será de variada profundidade (porque, como sabemos, o outro é o outro e o querer é um dever que cabe a cada um dizer se fará ou não). Uma vez isso estabelecido, podemos dizer que o processo de cura iniciou-se.
Em 20 de novembro de 2010, recebam um abraço orgânico.

sábado, 13 de novembro de 2010

TELEVISÃO NO VALE (E PÁSSAROS)!

Hoje passei por uma experiência inesperada: Fui fazer algumas imagens para a emissora de televisão que está prestes a ser inaugurada no Vale do Capão. Imagine! No Vale do Capão! Nesse fim de mundo (que prefiro chamar de princípio do mundo). O Vale é um lugar um tanto remoto; tanto é assim que a estrada chega aqui e daqui não vai pra lugar nenhum. Se você quiser seguir adiante terá que andar. Quando aqui cheguei e comentava com as pessoas que um dia este lugar seria conhecido no mundo, e que atrairia muitas pessoas, o povo ria na e da minha cara. Ninguém acreditava. O tempo passou e olha só. Até televisão vamos ter. Já temos uma rádio, devidamente regularizada, que é um sucesso enorme entre os meus vizinhos. Neste momento está parada por causa de uma pane e as pessoas se lamentam bastante por isso. E logo mais, no dia 21 de dezembro teremos a inauguração de uma televisão a ser acessada via internet. Por isso fui fazer as ditas imagens. Não é uma televisão igual às outras e por ser veiculada na net terá suas peculiaridades. As pessoas que quiserem acessar clicam sobre o programa, ou os programas e os assistem. Falas curtas sobre assuntos de interesse geral em saúde são o que vou fazer e também rapidíssimas entrevistas com os moradores. Estou todo feliz com essa nova onda aqui no Capão. Ô lugarzinho bom de viver. Aqui temos as vantagens do viver no campo, com uma paisagem inigualável, tranqüilidade, beleza, pássaros cantando, rios e cachoeiras e atividades que habitualmente não são comuns nos lugarejos camponeses (tais como circo, rádio, aulas de dança do ventre, capoeira, pilates, massagens, internet, drenagem linfática e, agora televisão). Há um ônus, não há dúvida. Embora as visitas em geral sejam de pessoas muito legais, às vezes aparecem umas pessoas que são desagradáveis. O barulho das motos também tem sido um incômodo. As drogas que estão alcançando todo o interior da Bahia, não deixaram de visitar o vale o que me causa muita tristeza. Mas agora não quero tocar nas tristezas e sim na alegria. E, além da televisão tive uma alegria gostosa ao chegar em casa. Um casal de pica-paus estava conversando animadamente com suas imagens no vidro da oficina. Lindos! Depois pensei que talvez estivessem brigando (tenho visto garrinchas, bem-te-vis e outros nestes entreveros com os seus reflexos nas janelas) e por isso tapei o vidro. Fiz isso depois que um deles começou a bicar o vidro com aquele jeito de metralhadora dos pica-paus. Junto deles, como se estivesse curioseando, um sofrê mostrava-se em toda a sua beleza. Agora, uns pássaros semelhantes ao sabiá, que o povo aqui chama de ‘miado-do-gato’ está saltando de galho em galho bem na minha frente. Cigarras fazem um estardalhaço e motocicletas anunciam a juventude em seu dorso.
Gosto desta mistura de ontem com amanhã que acontece por aqui.
Recebam um abraço de Aureo Augusto.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

DILMA E O FEMININO

Lembro-me que nos tempos do regime militar comentava-se a boca pequena (e não poderia ser de outra forma) que no tempo em que Costa e Silva ocupou o cargo de presidente imposto, sua mulher deitava e rolava na governança. Inclusive naquela época se dizia que “a diferença entre o Brasil e um trem é que o trem vai pra frente e apita e o Brasil vai de costa e silva”. O povo sempre encontra uma forma de inventar alguma piada sobre quem está no poder. Isso é uma mostra da resistência, mas também denuncia o medo de se colocar ostensivamente. É verdade que naquela época quem ostensivamente colocava-se na oposição tinha alta possibilidade de desaparecer, ser torturado e morrer. Coisas, convenhamos, desagradáveis. Mas, ainda que a mulher de Costa e Silva realmente tivesse algum papel no poder, ela não era efetivamente presidente da república. Agora temos oficial e efetivamente uma mulher como dirigente maior da Nação. O que tenho pensado é quanto ao quanto esta mulher representará verdadeiramente um caráter feminino no governo. Devo dizer que dois livros me vêem à mente quando inscrevo no papel virtual estas letras. Um deles escrito por uma mulher, O Cálice e a Espada de Rhiane Eisler, Ed. Imago, um livro de leitura obrigatória. Uma das vezes que o li tomei o cuidado de fazer comparações com outros livros de história o que me causou maior certeza do seu valor. Deveria ser livro de texto nas escolas. Acho-o essencial para conhecermos nosso tempo e os tempos passados. O outro é A Teia da Vida de Fritjof Capra, Ed. Cultrix/Amana Key, que nos remete ao futuro em termos de compreensão da vida. Penso que a leitura destes dois livros podem contribuir significativamente para que consigamos superar este momento da humanidade onde as mudanças partilham presença com o sofrimento e a incerteza. Além disso podem trazer luz sobre o papel da mulher (e consequentemente do homem) no mundo hodierno, seja no dia-a-dia, seja no governo de empresas ou nações, como é o caso de Dilma Rouseff. Há que registrar que estes comentários nada têm a ver com a qual partido a presidente esteve ou está vinculada. A presidente é de todos, inclusive daqueles que não votaram nela. Outrossim não estou aqui (e neste momento) tratando do bom ou do ruim da continuidade do governo Lula, ou da pessoa de Dilma enquanto indivíduo particular com ou sem competência para governar. Quero tratar agora da mulher no governo e de se esta mulher no governo traz uma governança feminina. Apenas como esclarecimento acrescento que caso Marina fosse eleita o artigo teria a mesma pertinência.
Temos dois exemplos marcantes de mulheres governando países em período recente. Margaret Tatcher e Golda Meyr. Sempre me pareceu que, embora mulheres, não eram distinguíveis dos homens quando de sua ação política. Ou seja, travestiram-se. Contingências do cargo e do tempo? Talvez. Penso que não teriam alcançado os postos que ocuparam se não tivessem se adaptado ao jeito masculino de fazer política. A feminilidade dessas mulheres impressionantes seguramente ficou reservada para os seus esposos, filhos e netos. Mas, repito, enquanto governantes, foram homens.
Há mais de cinco mil anos, na Eurásia encontramos civilizações que se caracterizaram por uma especial consideração pelos aspectos femininos da existência, que traçavam neste aspecto uma linha direta com os povos coletores caçadores, nos quais a mulher tem um papel bastante especial, conforme encontramos (por exemplo) no belíssimo livro de R. Leakey, A Evolução da Humanidade (Ed. Melhoramentos/Un. de Brasília). Na Sociedade Européia Primitiva as pessoas não escolhiam construir suas casas em lugares inacessíveis para proteção contra invasores e sim em recantos aprazíveis. Esta sociedade fomentava e valorizava a fertilidade, a construção de elementos que melhorassem a vida, em detrimento daquilo que a destruía, como as armas. Cidades como Çatal Huyük, na península anatólica, existiram por longos períodos sem guerras, assim assinalam os registros arqueológicos. Até que invasões de povos patriarcais (os kurgas ou kurganas) eliminaram este status quo e produziram novas sociedades com maior ou menor proeminência do elemento masculino, e com variadas formas de dominação de uns sobre os demais. Cidades como Mohenjo Daro na península indiana não tinham extremos de pobreza e de riqueza e seus habitantes contavam com sistema de eliminação de águas servidas há 9000 anos atrás. A última civilização com fortes características gilânicas (ou seja, de igualdade entre os sexos), os minóicos de Creta, nos legou cidades sem muros, um cuidado com o bem estar, expresso, por exemplo, no sistema de água para a população e uma arte totalmente desprovida de elementos guerreiros. Mas tudo isso foi substituído pelos povos patriarcais e nós, habitantes do século XXI, somos os produtos dessa radical mudança. Os nossos sistemas de pensamento têm embutidos a concepção de que a dominação de uns sobre outros é algo natural e interpretamos os fenômenos naturais e sociais como acontecimentos centrados na luta, na guerra, no confronto e na hierarquia de dominação. O filósofo grego Heráclito, filho de uma sociedade tremendamente machista – para os gregos a mulher era inferior a ponto de sugerirem que as relações homossexuais masculinas eram preferíveis às heterossexuais (veja isso n’O Banquete, de Platão) – considerava que o próprio ato de existir era fruto da luta entre os elementos da natureza. A idéia de interação dos opostos não era tão cara ou comum em uma sociedade onde a guerra era uma constante. Para os gregos a Ilíada, o livro de Homero que descreve os últimos momentos da Guerra de Tróia, era o texto onde aprendiam ética e moral, daí ser-lhes difícil compreender o mundo em termos pacíficos. O livro permanece hoje como fundante da nossa cultura, porém já começamos a, sem deixar de reconhecer-lhe o valor, criticar os princípios sobre os quais se assenta.
Nos últimos anos do século XX, principalmente no mundo Ocidental, onde é possível, graças ao pensamento democrático, a crítica, começou uma mudança deste paradigma. As percepções, técnicas, valores etc. que aprendemos têm sido questionados profundamente e iniciamos uma época difícil por trazer a insegurança do novo (e não estabelecido), porém fértil e rica em possibilidades para uma sociedade cansada (porém viciada) de injustiças. Daí, surgiram movimentos que propugnam novas relações entre as pessoas e insistem na percepção de que a diversidade é desejável, de que somos parte do meio-ambiente e também no reconhecimento da igualdade inerente a todos os seres. Neste novo paradigma não cabe avanços científicos ou econômicos sem avaliação de seu impacto social e ambiental. Nos estudos sobre ganhos de certas tecnologias há que incluir os prejuízos ambientais que a sociedade como um todo paga. A exemplo: Produzir energia com petróleo tem sido considerado mais barato do que a energia eólica ou solar (por causa do custo inicial dos equipamentos), mas não se incluía até agora nas contas o impacto da poluição decorrente do uso de combustíveis fósseis, custos estes que nós, pessoas comuns, pagamos, e pelos quais as empresas não são cobradas. Mas o principal são as relações interpessoais. Aqui não cabe dominação. E isso ainda é bem difícil para todos nós, mesmo aqueles que conscientemente querem um mundo melhor. Ainda estamos acostumados a mandar e/ou sermos mandados. Confundimos liberdade com irresponsabilidade, direitos com satisfação de desejos etc.
Dilma em sua juventude participou da luta contra as graves discrepâncias sociais. Diferentemente de personagens como Gandhi, que optaram por uma não luta contra a injustiça, ela optou por fazer parte de grupos clandestinos guerrilheiros. Àquela época eu estudava medicina e admirava a coragem destas pessoas, conquanto admirasse também a enorme coragem do Mahatma. Ainda os admiro, porque me lembro que os governos militares nos impuseram uma vida indigna e subhumana, uma vez que o ser humano existe, entre outras coisas, na medida da sua autonomia, da sua liberdade e responsabilidade. Dilma, como eu, ou como você que me lê, aprendeu que competir é mais aconselhável nas relações políticas do que cooperar. Ela alcançou o lugar que agora ocupa competindo arduamente contra outros grupos. Nesta competição, não apenas ela, mas eu e você, leitor, esquecemos que os adversários são pessoas da mesma forma que nós e que estão aprisionados no mesmo sistema de valores que nós. Os inimigos, de regra, são nossos espelhos reversos. Vejam, por exemplo, Franco e Salazar na Espanha e em Portugal e compare-os com Stálin ou Pol Pot na Rússia e no Cambodja. Os dois primeiros estabeleceram cruéis ditaduras de direita e, os dois outros, cruéis ditaduras de esquerda. Para as pessoas que sofreram perseguições, torturas, morte, perda de amigos, familiares e liberdade, qual a diferença entre esquerda e direita?
Hoje somos, enquanto espécie, muito poderosos e podemos destruir o nosso planeta. Em realidade o estamos destruindo. Movimentos pacifistas, ecológicos, eco-feministas, de economia solidária entre outros estão atuando na criação de um mundo novo. Dentre estes destaco os movimentos pelo diálogo reflexivo, franco, responsável e aberto (v. Adam Kahane, Como Resolver Problemas Complexos – Uma Forma Aberta de Falar, Escutar e Criar Novas Realidades, Ed. Senac). Os nossos governantes estão muito longe destes movimentos, ou de levar em consideração suas conclusões e propostas. Agradar-me-ia em grande medida se Dilma entendesse oposição como possível complementaridade (aliás, que a oposição também entendesse isso), percebesse que o desejável crescimento econômico só se justifica na medida em que as próximas gerações não tenham suas possibilidades de bem estar e de sobrevivência negados e, mais ainda, que educação é mais do que repetição de sílabas ou palavras preestabelecidas e sim a construção de leitores e escritores capazes, dotados de autonomia (inclusive para questionar nossos valores). Em realidade, a questão não é o sexo do governante e sim o quanto ele já compreendeu da necessidade que o mundo tem de que os seres humanos percebam-se dentro e não fora, participantes e não observadores, juntos e não contra. Mas antes de exigir algo de Dilma, devemos procurar em nós os sinais de um novo tempo. Quando queremos impor nossas idéias, mesmo que elas sejam corretas e imbuídas das melhores intenções, estamos mantendo um padrão de dominação (em muito semelhante à conduta dos colonizadores cristãos na África ou América, obrigando os moradores a usarem roupas européias porque consideravam os trajes nativos ofensivos à moral), quando insultamos àqueles que por ignorância, por preconceito, ou por qualquer outro motivo, têm propostas diferentes das nossas, estamos dando continuidade ao pensamento colonizador, dominador, elitista, onde alguns são os donos da verdade e os demais não passam de uma massa amorfa, sem nome e sem vontade, sem valor e sem rumo. Queridos amigos e amigas, a ignorância é algo conspícuo no mundo; os mais sábios, algo não sabem e os que menos conhecem algo sabem para ensinar até ao sábio. Não espero uma mudança rápida nos modos de comportamento e na filosofia de vida de nossa população, nem de nossos governantes, e, claro, nem mesmo de mim (porque, lembro, fui criado dentro de um sistema e mesmo vendo suas fragilidades filosóficas e estruturais, estou impregnado de seu modelo), mas convido a todos a que continuemos a mudar a nós mesmos no sentido de praticar democracia, e, consequentemente, tolerância.
Recebam um abraço gilânico, de Aureo Augusto

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

ELEIÇÕES 2010 NO VALE DO CAPÃO

O dia amanheceu frio e a neblina escondia as serras até bem abaixo da metade. O dia 31 de outubro de 2010 acordou com aquele silêncio que caracteriza a névoa, quebrado pouco depois pelos pássaros e crianças com seus cantos esparsos. Lembrei-me que o povo se arruma para a votação, mais ainda os mais velhos. Pensei que já estou entre os mais velhos, pois, com 57 anos, estou bem próximo dos 60 que marcam a terceira idade. Consequentemente me arrumei com uma roupa (para mim) bastante digna do evento cívico (conquanto obrigatório). Uma calça bege praticamente nova, camisa de manga comprida xadrez ostentando no bolso uma caneta tinteiro e uma lapiseira. Só não gravata porque não sou muito afeito a este adereço.

Durante o período ímpio do regime militar eu não votava. Pensava comigo que de alguma maneira estava colaborando, ou melhor, avalizando o regime se fosse escolher nas urnas os candidatos que, mesmo de oposição, eram permitidos pelo regime vigente. Porém, e, mais ainda, depois daquele belo movimento das diretas já, e também da movimentação que levou à queda de Collor de Melo, evidenciou-se que o Brasil entrou em um período de democracia. Reconheço que ainda estamos no início e que, como tal, cometemos ainda erros sérios. Mas somos, a meu ver, uma democracia bem mais robusta do que o esperado em tão pouco tempo, e disso me orgulho. Quero votar, mesmo quando os candidatos não são aquilo que sonho. Deputados e Senadores têm cometido barbaridades absurdas e sei em mim que para a maioria deles pouco importa a palavra democracia, exceto quando usada para preencher discursos hipócritas. Em que pese a dignidade de alguns, a regra para a maioria é o usufruto do cargo com olhos em ganhos pessoais. Sei que não se importariam que voltássemos a um regime militar, ou de exceção, desde que mantivessem sua ocupação. Comportam-se de modo tal que algumas pessoas, com pouca memória, até desejam um regime de força onde um homem nos salve da corrupção. Este sonho do homem forte nos remete à família patriarcal e nos faz esquecer que o patriarcado nos levou a beco terrível onde bombas atômicas, guerras, desrespeito ao meio-ambiente, homens-bomba, separação entre fato e valor, são a norma. Onde impera uma espécie de ética da força bruta.

Quero votar e o faria mesmo que não fosse obrigatório. Porque esta é uma das formas de estar presente. Estar acompanhando os atos dos eleitos é outra forma e muito importante do viver democrático; a república não existe apenas nos momentos do voto, mas também quando avaliamos aqueles que nos representam no executivo e no legislativo. Sempre há em mim uma esperança de que os eleitos correspondam à consideração que os meus vizinhos do Vale do Capão têm pelas eleições. Estas esperanças nem sempre se cumprem em realidade, porém tampouco morrem e em grande medida porque vejo como a gente do nosso país tem evoluído politicamente apesar da eleição de alguns palhaços.

Recebam um abraço democrático e aguardem um post sobre alguns pensamentos que tenho tido sobre mulheres no governo e feminismo (e ecofeminismo).

Escrito por: Aureo Augusto

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

RELÂMPAGOS E TROVÕES

Foi um belíssimo espetáculo a noite passada e não posso deixar de partilhar com vocês. As nuvens se reuniram encorpadas durante a tarde e logo que a tarde esmoreceu quando o sol se foi começou uma chuva com as gotas esparsas. Muito ao longe já no meio do dia dava para escutar trovões. Aos poucos se achegaram ao Vale e quando já estava escuro o mundo estremeceu. Foi uma daquelas tempestades pra não esquecer!

Pus uma roupa abrigada e me sentei na varanda. Os ventos irregulares lançavam em minha cara gotas grossas da chuva enquanto lá no zênite relâmpagos chispavam. Fiquei olhando cada detalhe. Houve tempo para tanto. A luz fugaz dos raios revelava as árvores curvadas ao peso da chuva, os ciprestes do jardim me traziam Van Gogh à lembrança. Em segundos o negror quase absoluto (quebrado pela luz de um poste que se mostrava entre as folhagens densas) abandonava os olhos e os clarões revelavam as serras. O Morro Branco, bem defronte de minha casa, como a tela de um cinema, plano e claro refletindo a luz azulada, rápido movimento da luz, bafejos de vagalumes gigantes. E a cada explosão da claridade cedo ou um pouco depois o ruído do trovão igualzinho (só que mais alto) aos filmes de guerra.

Ali fiquei uma boa parte da noite até que o sono desceu as pálpebras ao vencer a consciência desperta e o ruído que abalava a terra.

Hoje saí, como de costume, a caminhar e tomar banho no rio. Tudo muito mais bonito. As folhas lavadinhas, escovadas e brilhantes, o rio cheio rugindo, os pássaros mais alucinados do que nas manhãs de costume.

Agora partilho com vocês o regalo que o presente me trouxe. Recebam meu carinho.

Aureo Augusto

terça-feira, 26 de outubro de 2010

III ENCONTRO DE PROFISSIONAIS DE ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA

Embora viva no Vale do Capão, um lugar para saborear com os olhos e o corpo, às vezes fico um pouco sobrecarregado de trabalho. Sou o médico da USF (unidade de saúde da família) e, portanto, trabalho durante o dia no posto. Mas este tipo de serviço de saúde pede ações como educação para a saúde e outras que às vezes nos toma o tempo em outros momentos. Ademais, como o Vale fica a pouco mais de 20km da sede do município, mesmo fora do horário o pessoal que trabalha no posto pode ser chamado a ajudar a população quando de seus problemas de saúde. Às vezes podemos passar vários dias e até semanas sem ter nenhuma urgência fora do horário de trabalho, mas noutros momentos há um acúmulo de ocorrências e por isso o tempo encolhe. Nos dias 21, 22 e 23/10 fizemos o III Encontro de Profissionais de Saúde da Família do Vale do Capão. Esta atividade foi proposta desde o princípio pela equipe do posto, e a DIRES 27 (Diretoria Regional de Saúde), cuja diretora é Larissa Paiva, sempre deu apoio total ao evento. Também temos tido o apoio inestimável da EFTS (Escola Federal de Técnicos em Saúde) e da SESAB (Secretaria Estadual de Saúde). Para nós é uma tarefa hercúlea realizar este encontro mesmo com a ajuda dos parceiros. É que organizar um evento traz uma razoável quantidade de ações, as quais se acrescentam à enorme gama de atividades que já temos no dia-a-dia. A equipe se desdobra. Por coincidência logo que começou o evento, duas mulheres abortaram espontâneamente, outra pensou que ia parir e não pariu, ocorreram crises hipertensivas, acidentes de bicicletas e motos com costuras e curativos e uma criança rasgou a cabeça em suas traquinagens e por isso foram necessários alguns pontos. Vai daí que não pude, como no ano passado, “falar” pra vocês sobre o encontro. Agora o faço, porque o carro que vem me buscar para o atendimento nos povoados da Conceição dos Gatos e Rio Grande está atrasado (coisa, aliás, que me desespera porque não gosto de saber que estão me esperando – ainda mais na Conceição, onde as pessoas são, em sua maioria, idosas).
O III Encontro honrou o brilho dos anteriores. Foi bem legal. A equipe aprendeu muito – na verdade um dos motivos pelos quais fazemos esta atividade é chamar pessoas que possam nos ensinar. O pessoal da EFTS, do DAB, os demais palestrantes nos mostram o que acontece, como fazer para melhorar e as dicas se somam à simpatia deles, de modo que fica tudo muito prazeroso. Desta feita a sempre brilhante e apaixonada Mary Galvão nos trouxe um estudo da situação do atendimento à mulher grávida e ao parto na Chapada Diamantina, iluminando-nos os caminhos. Elânea do núcleo Itaberaba da EFTS acrescentou mais material do tema, ao falar sobre o nosso papel na realidade da mortalidade materno-infantil. Depois o Dr. Ari Avelar, meu colega de turma na faculdade (quando era conhecido por Dr. Gal, por causa do seu cabelo Black Power) alertou-nos para a necessidade da busca ativa de pessoas com tuberculose. Sua palestra causou forte interesse em nossa equipe. Tuberculose é um sério problema de saúde pública no Brasil, sabemos disso, mas sua fala nos trouxe para uma realidade mais séria do que imaginávamos. Sílvia Laranjeira do DAB tem estado conosco desde o primeiro encontro, trazendo sua fala, sua dedicação e esforço e desta vez estava novamente aqui (agora acompanhada da competente simpatia de Vanessa Lima), na fala – essencial – sobre política de atenção básica, prestando esclarecimentos e fazendo comentários pertinentes. O pessoal da cidade de Iraquara fez uma apresentação para nós, reproduzindo o trabalho que têm feito para esclarecer a juventude sobre doenças sexualmente transmissíveis. Deram boas dicas de como lidar com os nossos jovens, que aproveitaremos. Foram muitas coisas e muitas pessoas, isso sem contar as pessoas que estavam escutando os palestrantes, trazendo perguntas que levavam a considerações mais percucientes. Foi enfim muito bom e sei que cometerei injustiça, deixando de falar de algumas pessoas cuja participação fez com que a coisa fosse tão boa.
Desta vez incluímos, no sábado, um passeio à Cachoeira do Riachinho (na verdade eu preferia ir à Cachoeira da Angélica e depois à Cachoeira da Purificação, mas parte da turma, os farristas que ficam até tarde no converseiro, preferiu um lugar mais fácil de ir), onde tomamos um gostoso banho e contemplamos, porque é um lugar onde, mesmo com muita gente, somos convidados ao silêncio ou a conversas tranquilas.
O carro está chegando para me levar aos atendimentos. Vou fechar esta escrita. Já estamos nos reunindo para ver como será o IV Encontro. A roda da vida não para e é por isso que é bom viver!
Abraço carinhoso para todos de Aureo Augusto.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

DUAS SURPRESAS

Duas coisas me tocaram esta semana:
A primeira: Tenho um sobrinho que é um gênio desta onda de computador, comunicação, internet, rádio, televisão e coisas assim tecnológicas. Seu nome é Thiago e ele é quem fez o blog. Ele sempre me está trazendo informações interessantes e aconselhando-me quanto a coisas que eu posso fazer – e que acabo não fazendo porque como ele é tecnológico fala rápido e deduz que eu entendo os princípios da onda, quando eu estou bem longe disso. Esse pessoal que entende de tecnologia tem uma frase de duas palavras: “é fácil”. E toca a dizer as etapas a serem seguidas. Mas na hora exata os bocós como eu se lascam. Mas recentemente Thiago me explicou que posso entrar em um lugar lá e ter informações sobre o blog. Fiquei absolutamente pasmo. Descobri que tem gente freqüentando o blog com regularidade, por ordem de freqüência dos seguintes países: Brasil, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Inglaterra. Além destes maiores freqüentadores, encontro: Panamá, Kuwait, Rússia, Costa do Marfim, Chile, Ucrânia, Itália e França. E o interessante é que estes países não visitaram um vez e pronto. Todos visitam com alguma freqüência. Ontem, dia 18/10, foram 216 visitantes, um número que me impressionou. Fico imaginando que antigamente para que um texto alcançasse as pessoas tinha que passar por uma gráfica, com um custo significativo. Hoje, sem ônus, um brasileiro pode ser lido em lugares que ele jamais alcançaria, ou, pelo menos, muito dificilmente alcançaria sem a internet. Descobri também que tenho 64 pessoas seguindo o blog. Fico olhando as fotos dessas pessoas, algumas são conhecidas, outras não tenho idéia. Incrível. O problema é que ainda não sei mandar um e-mail para cada uma delas dizendo o quanto é interessante saber que elas estão ligadas. Esse negócio de blog é impressionante.
Outra coisa que me tocou: Hoje, após semanas sem chuva, exatamente às 17h fomos abençoados com o ruído da água no telhado e aquele cheiro adorável de terra molhada. Desde então a chuva cai gostosamente, os trovões ribombam e os raios rabiscam o céu. Cheguei em casa depois do trabalho e saí a caminhar sentindo as gotas frias lavando-me a alma. A água deu as caras e a vegetação despe-se da poeira, brilha.
Agora vou ter que apagar tudo porque os relâmpagos estão jogando duro, falta luz toda hora e o protetor de corrente está gritando loucamente.
Um abraço molhado de Aureo Augusto.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ELEIÇÕES 2010 LÁ FORA

Acompanhei uma parte do processo eleitoral lá em Portugal e isso foi uma boa experiência porque pude ver com um certo distanciamento as coisas do Brasil, além, é claro, de ver de perto a maneira como eles nos vêem.
A candidatura de um palhaço e algumas das propagandas eleitorais veiculadas por lá causaram reações bem negativas. Os portugueses com os quais tive a oportunidade de conversar sobre isso ficaram chocados com algumas manifestações que mais eram deboche do que política. Para eles, bem mais conservadores (ou mais sérios) do que nós, determinadas coisas não combinam com política. Mas as candidaturas aos governos estaduais e às legislaturas estaduais ou federais eram coisas de menor importância para a população e para os analistas na mídia em Portugal. O grande interesse correu por conta da disputa pela presidência. E, naturalmente, Dilma e, em menor escala, Serra, foram os nomes mais comentados. Tanto na mídia como nas conversas o nome de Marina foi pouco mencionado. Quando isso acontecia era sempre em termos elogiosos, porém considerava-se que sua candidatura resultaria em pouco peso na disputa. A surpresa que ocorreu aqui, saibam, foi menor do a que aconteceu por lá. Ninguém esperava que Marina alcançasse praticamente 20% dos votos. A mídia e a população tinham toda a certeza de que a candidata da situação ia levar de roldão os adversários conquistando a presidência no primeiro turno, sem contemplação. Para a população portuguesa Lula é um mito. A maior parte das pessoas que encontrei elogiou sua forma de governar e grande número de pessoas (assim me pareceu) tem uma visão bem histórica do processo atual tão positivo (e mesmo invejável) da nossa economia. Reconhecem que esta pujança econômica não é tão estável como poderia parecer aos incautos, mas encontram que a partir do estabelecimento do plano real, ainda no governo Itamar Franco, sob a batuta de FHC, o Brasil encetou um caminho de qualidade que até aquele momento desconhecia. Vêem, e nisso concordo com eles, que Lula teve bom senso em não dar ouvidos à extrema esquerda, mantendo uma orientação econômica herdada do governo anterior, porém (para os analistas portugueses) com uma conduta que sugere maior participação popular. Um articulista (que lamentavelmente olvidei o nome) de um jornal da cidade do Porto considerou que este foi o maior mérito de Lula, e que este teve grande competência em assumir como seus programas de governos anteriores, o que, a meu ver, corresponde à verdade. Independentemente destes comentários, destas considerações e constatações, a mídia portuguesa me pareceu considerar Lula como um político capaz, carismático, competente até, na condução de nossa nação e acrescentam invariavelmente que Dilma é uma criação (assim se referem) dele. Havia um consenso tanto na mídia quanto entre as pessoas que a candidata situacionista seria eleita no primeiro turno, por obra e graça do todo poderoso Lula. Confesso que incomodou-me um pouco a forma com que os experts referiam-se a Dilma. Era comum tratá-la como se fosse uma marionete, e nós aqui no Brasil sabemos que não é bem assim. Dilma tem uma história e concordando ou não com suas maneiras (eu, particularmente, não sinto nenhum agrado pelo seu novo sorriso eleitoral), suas idéias, e, mesmo com a referida história, devemos reconhecer que ela existe por direito próprio. E isso não significa desconhecer que os votos destinados a ela apontam para Lula, que é realmente carismático, sabe conversar com a população e consegue como ninguém usar o PT para seus fins e desviar-se de todos os atos bizarros tanto do PT quanto de seus assessores.
Quanto a Serra, recebeu numerosos elogios, porém havia um consenso de que não tinha chances de ganhar. Receberia muitos votos, mostrando a força (declinante) do PSDB, mas estes votos seriam em menor quantidade do que mostravam as pesquisas. Uma observação freqüente era que os programas e a ideologia dos dois candidatos eram tão próximos que podiam sobrepor-se em quase tudo. Aliás, nisso eu também concordo e acrescento que gostaria de ver PT e PSDB como aliados. Mas voltando ao povo lá de fora, e resumindo, eles não viam a possibilidade de segundo turno.
Uma atuação que foi bastante criticada em Portugal, tanto na televisão como nos jornais, foi a da mídia brasileira. Alguns articulistas criticaram duramente revistas brasileiras que agridem Lula pelos seus erros de português ou que lançam mão de meios bisonhos de tentar abalar o gosto do brasileiro pelo seu presidente. Foi citado o caso de uma reportagem sobre a morte de um cangaceiro de Lampião que seria tio ou tio avô de Lula (não me lembro o parentesco). Quando li a reportagem estava na cidade de Ovar, no norte de Portugal. Ri um pouco desta insana tentativa de abalar Lula e, consequentemente, Dilma. Pareceu-me uma conduta mais estúpida do que qualquer estupidez que o presidente tenha cometido contra a língua. Ora, a população está pouco se lixando para a linguagem pulcra e cada vez que as críticas se firmam na incompetência gramatical do sujeito, isso desperta muito mais simpatia do que condenação. Um ou outro se preocupa com a língua; a maioria quer saber como está o bolso. Ademais, que importa isso. Cuidemos da democracia, se ela está sendo atingida; atentemos para as orientações econômicas, se elas levam a bom termo; vigiemos a educação, se ela é conduzida por caminhos nos quais os estudantes possam alcançar a escrita e a leitura proficientes e colabore para que eles sejam sujeitos pensantes e não massa de manobra para aventureiros populistas... Temos coisas sérias a tratar! As denúncias de corrupção são essenciais para o processo democrático, mas por que elas não mobilizam a população de forma mais contundente? Não há dúvida que a presença de Lula joga um importante papel, mas também a estabilidade econômica, o poder de compra, a inflação controlada. Ou seja, assim como há males que vêm pra bem, há bens que vêm pra males. Sofremos tanto com uma economia pessimamente administrada que aceitamos quase tudo desde que as coisas estejam nos seus lugares. Voltando à mídia brasileira, lá em Portugal ela não é vista como tão séria como gostaria. Foi o que me pareceu.
A grande surpresa foi o dia seguinte. Marina cresceu e todos correram a explicar o acontecido. Como, onde, porque... Falou-se muito na opinião dos candidatos quanto ao aborto como fator de elevação de Marina e diminuição de Dilma. Mas também considerou-se a história de Marina, sua reputação, inteireza e postura na campanha. Ninguém conseguiu explicar a complexidade do caso, mas até hoje se discute. Os articulistas por lá consideram que com, ou sem, o apoio de Marina, Dilma leva o segundo turno. De minha parte, penso que foi bom um segundo turno, por que para a democracia não convém excesso de poder em um homem, mulher, ou partido.
Recebam o meu carinho, Aureo Augusto.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CHEGADA!

CHEGADA
Já estamos no dia 12 de outubro. Estou em casa, no Vale do Capão, mas demorei a postar porque o computador deu bode e teve que ir para a oficina. Vivi algumas aventuras desde que cheguei, inclusive acompanhar meu pai ao hospital, onde foi internado, mas sentir o ar frio do Capão me confirma que da viagem e por melhor que seja a viagem, o melhor é a chegada. Vejamos o texto:
Viajar 6 horas em um avião não é graça. E as cadeiras da classe econômica são tão apertadas que mesmo alguém como eu, que não sou alto, é um sacrifício. É difícil se mover e as pernas começam a queixar-se da posição. Houve também outro fator que tornou a viagem mais difícil e que em alguma medida foi um acontecimento tragicômico. De quando em vez alguém expelia gases sumamente fedorentos. Todos ao redor mostravam-se constrangidos com o odor espantoso, exceto o casal à frente e uma família na frente à direita. Durante toda a viagem foi um clima de Primeira Guerra Mundial com gases tóxicos e trincheiras apertadas. Apesar de sua potência a origem dos petardos só foi descoberta quase no fim da viagem, porque uma criança inocentemente denunciou o pai (sentado à frente/direita) em alto e bom som, dizendo-lhe que ele estava podre. O constrangimento foi enorme e de tal monta que ninguém ousou criticar o pobre homem que não sabia onde por a cara enquanto timidamente dizia a criança para calar-se. Fora isso a viagem foi tranquila porque o avião nem tremia, com o clima perfeito, sem ventos, vácuos e outros sustos.
Havia um rapaz sentado um pouco atrás que estava nervoso. Não se levantou toda a viagem e em um momento em que lhe dirigi a palavra, tomou um susto. Quando chegou a hora de desembarcar ele ia pelos cantos, evitando o meio do corredor. Tinha, notei, um leve defeito em uma das pernas, que era mais curta, fato denunciado pelo caminhar. Na hora de passar pela aduana estava logo atrás dele e vi que ficou muito tenso. O funcionário recebeu seu passaporte e seu olhar mostrou desde logo que encontrou algo errado, muito errado. Saiu e consultou um companheiro. Depois telefonou e solicitou ao rapaz que aguardasse sentado em uma cadeira próxima. Então chegou a minha vez e assim passei adiante e não pude ver o desfecho da história.
Aliás, o aeroporto é lugar de histórias sem princípios e sem fins. As coisas ali só têm presente. Como foi o caso de outro acontecimento, ainda no aeroporto de Lisboa, na fila de embarque. Havia uma mulher de tez negra muito nervosa revirando a bolsa procurando algo. Um homem de pele clara, aparentemente seu marido, andava nervoso de um lado para outro enquanto ela perguntava repetidas vezes: “Onde eu deixei? Onde eu deixei?” Foi quando surgiu um garçom correndo e lhe entregou algumas passagens. Ela, ao receber os papéis, desabou num choro intenso, enquanto o homem procurava tranquiliza-la. Esqueci o caso, até que, uma vez embarcado, notei seu companheiro poucos passos atrás do lugar onde eu estava conversando com um casal. A conversa durou muito tempo, mas a moça do choro não estava presente. Então, em uma das minhas caminhadas pelo avião (para esticar as pernas e ativar a circulação) resolvi procurar aquela mulher. Mas não encontrei. Parece que não embarcou. Perguntei-me se seria mesmo a esposa dele, ou se embarcara em outro vôo. Nunca saberei.
Porém se pensamos bem, todas as histórias são assim. O princípio mesmo, nunca saberemos; tampouco o final. Podemos captar o princípio provisório: Pedrinho caiu da árvore, em um dia de chuva escorregou no galho limoso. Na sequência quebrou o braço; teve que ir ao hospital e finalmente ostentava orgulhoso entre os colegas da escola o branco do gesso a ser preenchido pelas assinaturas dos companheiros. Princípio, meio e fim. Porém Pedrinho era antes disso, havia um princípio anterior e é e será, ou seja, terá uma história depois deste acontecimento; a anterioridade no tempo pode ser alcançada em um óvulo unindo-se a um espermatozóide, mas antes disso haviam moléculas e átomos ou, almas que queriam frequentar a Terra; da mesma forma, seu futuro sempre se dilatará no tempo. A diferença para o aeroporto é que aqui o mais das vezes, não temos nem idéia do que ocorreu pouco antes ou acontecerá daqui a pouco.
Voltei!
Recebam um abraço carinhoso de Aureo Augusto, recém chegado.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

FÁTIMA

Hoje fui em Fátima. Confesso que estava com algum preconceito e não estava muito a fim de ir lá. Imaginava (e um amigo tinha dito que era assim mesmo) aquela loucura de gente vendendo imagens, fitas, um carnaval comercial religioso.
Peguei um autobus (ônibus), que me deixou a cinco minutos do santuário. Caminhei até lá sob um vento bastante frio. O caminho era uma rua agradável, simpática, com lojas e restaurantes. Alcancei o lugar e fui recebido por uma série de pequenas lojas circundando um espaço quadrado onde se vendiam lembranças em profusão. Porém não senti uma ostensividade comercial que esperava. Passei pelo lado deste lugar e entrei no santuário que é algo impressionante pelas suas dimensões. Há uma grande área asfaltada cortada por um caminho de pedra polida branca. Ao fundo uma igreja portentosa, porém não muito grande (para os padrões de Portugal) ladeada por corredores cobertos com colunata sustentando arcos redondos, formando um gigantesco ‘U’. O efeito sumamente agradável e, apesar da grande proporção, passando a impressão de simplicidade e, até, leveza. À esquerda, e em certa medida interferindo com a concepção geral do espaço, uma estrutura moderna cobrindo uma pequena capela. As pessoas que andavam dispersas por todo o ‘U’ concentravam-se aqui. Fui para lá e, sentado em um banco de madeira, assisti às pessoas e aos padres enquanto celebravam uma missa. Lá fora algumas pessoas penosamente avançavam pelo caminho no meio da praça, de joelhos, pagando promessas, ou se penitenciando. Aqui dentro (o espaço é quadrado com 3 dos lados de vidro e o quarto aberto em toda a sua extensão), senti uma forte sensação que não consigo definir exatamente, e que me levou a encher os olhos de lágrimas todo o tempo em que ali permaneci. Quando começou a comunhão, retirei-me e fui caminhar pela igreja, pela colunata. O ambiente era tão agradável (energeticamente também) que parecia estar em um lugar de sonhos. Tudo convidava ao silêncio e à reflexão, apesar dos grupos que se revezavam indo e vindo (hindus, japoneses, indonésios, chineses, germanos, americanos, portugueses, espanhóis, brasileiros...). Todos os espaços eram completamente permeáveis à presença, nada de taxas (ao contrário de várias igrejas que visitei aqui) ou proibições. Não havia nada que sugerisse uma intenção de explorar a fé dos visitantes. Claro que na cidade as lojas vendem de tudo relacionado com a religião e ao fenômeno que deu origem ao santuário, mas ali dentro, um mundo à parte. Apenas para a fé...
Saí para comer (e me surpreendi com o preço dos restaurantes, muito mais baratos que em outros lugares) e depois retornei. Sentei-me em um muro baixo diante da esplanada e fiquei olhando. Tocado com o esforço das pessoas que se arrastavam em penitência meus olhos marejaram, mas havia algo muito mais evidente e muito mais forte que o questionável sacrifício dos fiéis. Percebi que ali estava a Mãe. Dito melhor: Que a Mãe está conosco todo o tempo, mas naquele lugar, por motivos que ignoro (mas sinto), há uma possibilidade mais clara de percebermos que Ela está conosco todo o tempo.
Recebam um abraço bem dentro do coração, que não tem a ver com esta ou aquela religião e sim com esse Mistério que nos faz algo mais do que apenas um amontoado de células.
Aureo Augusto.

domingo, 3 de outubro de 2010

CHUVA AQUI E MORTE NO VALE DO CAPÃO

Hoje amanheceu chovendo aqui em Lisboa e é a primeira vez desde que aqui cheguei. Parece que o outono resolveu, finalmente, dar as caras. Também está ventando muito. As bandeiras que festejam o centenário da república são vigorosamente açoitadas pelo vento que uiva alto na janela.
Ontem recebi a notícia da morte de D. Licinha, velha amiga e vizinha lá do Vale. Fiquei triste, por ela, pessoa que me gratificava o coração e também pelo que isso representa em termos de um passado que se vai e do número de histórias que se perdem. D. Licinha desempenhou um importante papel no lugar e não apenas por ter se casado com Seu Piroca, que durante largo tempo foi o “médico” do Capão. Ele tinha remédio pra tudo. Dizem que estudou medicina no sul do país, mas não completou o curso e voltando para estas terras começou a ajudar à população com seus conhecimentos, sem receber nada por isso. D. Licinha era sua esposa e dele enviuvou. Era uma mulher bastante viva e assim permaneceu mesmo depois que uma paralisia a obrigou a ficar em casa e na cama a maior parte do tempo.
Fico pensando na dor de alguns dos parentes. Digo alguns, porque sei que esse negócio de parentesco nem sempre é tão fluido como os costumes parecem indicar. A filha que mais cuidava dela, Luci, também conhecida como Bula, esta deve ter sofrido muito. Muito mesmo. Andréia sentirá saudade da avó. D. Argentina (não confundir com outra Argentina, que é viúva do Velho Anísio), também sofre, mas ela é que nem um anjinho, não sei se sente a dor do mesmo jeito como nós outros sentimos doer.
Embora nessa lonjura e com todo o Atlântico me separando dele, não esqueço do Vale do Capão que todo o tempo me toca. Quando escuto Sérgio Niza ou Assunção, que são educadores de competência e amor, falando dá-me a vontade que lá apareçam para conversar com os professores do Vale e da Chapada; quando vou a um museu penso no quanto seria maravilhoso se os estudantes das escolas pudessem estar comigo e por aí vai. Mas, com a notícia do falecimento de D. Licinha, o Vale tivesse entrado com mais força no quarto do hotel. Aqui está ele, tomando cada canto e fresta. Até o vento cortando o silêncio me traz os ruídos habituados aos meus ouvidos.
Como dizem as pessoas lá no Vale: “Que Deus a tenha”, D. Licinha.
Recebam um beijo, cada um de vocês que me lêem.
Aureo Augusto.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

CRISE ECONÔMICA

No Porto não demorei quase nada, confesso. Fui de trem – eles chamam comboio e um professor da Universidade me disse que trem é um termo antigo aqui em Portugal que já caiu em desuso – ou seja, nós, brasileiros, falamos um português antiquado, coisa que acredito. É um trem bem diferente da Maria-fumaça que tomei quando ainda era jovem. A última vez que peguei um trem foi no meu último plantão em Alagoinhas, ainda estava no 5o ano de Medicina. Como era o último dia, quis fazer algo diferente e voltei para Salvador de trem, saltando na estação da Calçada (tão linda). Bom, isso foi há muito tempo! O trem daqui parece um metrô. É rápido, silencioso e não solta fumaça. Em um instante estava passando sobre o rio divisando a impressionante cidade do outro lado do rio. Ouvi dizer que a cidade era cinza e, é. Estranho dizer isso, mas é. Apesar das cores aqui e acolá, é cinza. Não vou dizer mais porque demorei pouco, uma manhã e isso é pouco.
Na verdade estive no Porto antes de visitar Óbidos. Aliás, esta cidade me faz alertar vocês. Tomem cuidado com as fotos dos hotéis na internet. O que fiquei em Óbidos, pelas fotos era amplo e espaçoso, mas na hora a cama era bem apertada o quarto pequeno e o preço jamais correspondeu ao pagamento. A cidade, como disse antes, é muito impressionante e bela, porém o melhor não é dormir lá, como fiz. É caro e em uma tarde dá pra ver tudo. Agora estou de volta a Lisboa. As pessoas aqui não estão contentes. O governo anunciou um pacote econômico de lascar. Quem ganha acima de 1500 euros terá redução do salário que varia de 3% a 10% conforme o que recebe. Fiquei horrorizado. Perda salarial é porradão. Claro que os sindicatos estão se mexendo. O que me faz pensar é que os importantes fizeram besteira (e fizeram, ademais aqui também tem corrupção) e os funcionários públicos pagam a conta. Esse negócio de reduzir salário é muito estranho.
Comecei a ler o livro Portugal Hoje, O medo de Existir, do filósofo José Gil. Foi-me explicado que lendo-o entenderei melhor a tristeza do português. Estou gostando muito da leitura, o cara é fera. Pergunto como será para esta gente se os jornais já anunciam que o próximo ano será terrível.
Recebam um abraço crítico de Aureo Augusto

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

DESAFIOS AO DESCOMER, ÓBIDOS E CASCA DE OVO

Nos últimos dias tem sido um pouco difícil contatar à internet, ou mesmo escrever, porque fico na estrada ou nas ruas e à noite o cansaço não me deixa escrever. O ato da conexão é muito fácil porque compramos um pen drive de uma empresa local que faz facilmente a ligação on line como um telefone pré-pago, por um preço semelhante àqueles praticados no Brasil. Nos hotéis, os valores cobrados para fazer a ligação são altos. Saímos de Évora até Aveiro de carro. As estradas aqui em Portugal são interessantes. Os nomes não os consigo entender bem, mas é algo mais ou menos assim. Tem uma estrada incrível, um tapete, sem sombra de buraco, vazias, onde podemos viajar a grande velocidade, com pedágio caro; para nós brasileiros, bastante caro. Paralela a esta estrada tem uma outra, que chamam de principal ou nacional, que se assemelha às estradas do nordeste do Brasil, porém sem buracos. Nem sempre, ou melhor, a maior parte das vezes, sem acostamento, muito movimentadas e, que não permitem, por causa do movimento, desenvolver maiores velocidades. Além destas tem as estradas asfaltadas secundárias que são lenhadinhas, mas não terríveis (pelo menos as que experimentei) e ainda tem as bagaceiras do interiorzão, que não conheci, fui informado. Observe-se que as estradas com pedágio seguem o mesmíssimo roteiro das nacionais ou principais; gastaram dois dinheiros para a mesma coisa! Cada país tem o seu jeito de ser.
Cada país com o seu jeito. Fomos ao cinema, pra ver como era. Um filme português, filmado nos EUA, em inglês. Gostei, embora o título não tinha nada a ver com a história e, no final, o diretor ou o autor tenha caído naquela tentação tão comum de matar o herói no final para dar um toque mais intelectual, já que intelectual que se preza não pode ser feliz, porque felicidade é, para os entendidos – não em felicidade, claro – coisa superficial e piegas. Em dado momento do filme, as luzes se apagaram e pensei que tinha faltado luz (mas ninguém gritou, como quando eu era pequeno, faltava luz, e o bairro inteiro gritava, repetindo o grito quando a luz voltava). Segundos depois apareceu na tela um aviso: “Intervalo, sete minutos”. Caí na gargalhada! Claro que cada um com o seu jeito, mas achei engraçado. Pensei também como seria o banheiro feminino em dia de casa lotada. Em sete minutos a mulherada não ia conseguir satisfazer suas necessidades essenciais.
Aliás, tive nova experiência de banheiro. Estava em um restaurante na cidadezinha de Veiras. Após almoçar fui ao banheiro, não para a parte do desaguar e sim para a área de descomer. Notei que não tinha chave e fui solicitar, mas me disseram que era assim mesmo. Então me sentei na latrina com o receio de que alguém de repente entrasse e desse de cara comigo. Uma sensação estranha, pelo menos para mim, brasileiro. Ademais, ali tinha um daqueles sistemas para não gastar muita eletricidade. Um detector de movimento mantinha a luz acesa, quando cessava o movimento a luz se apagava segundos depois. Normalmente quem está descomendo está quietinho. Daí logo a luz apagava e por isso eu era obrigado a periodicamente balançar os braços no alto da cabeça. O que me levou a imaginar o que pensaria alguém que entrasse e me visse sentado, mas balançando os braços. Talvez fantasiasse que a dificuldade de eliminar fosse grande. Não sei. Seja como for não foi muito confortável. Nós, os turistas, passamos por tais dissabores.
Nestes dias conheci, Aveiro, Vieras, Ovar, Estarreja, Torreiras. Todas em uma mesma região onde se combinam um pântano (chamado de Ria) e o mar. Área lindíssima. A, digamos, capital da região é Aveiro, cognominada a Veneza de Portugal, como dizemos que Recife é a Veneza brasileira. Porém se Recife for tão Veneza como é Aveiro, não tem nada daquela cidade italiana. Aveiro tem um canal no meio da cidade (que por sinal e muito bonita) e pronto. Nem é muito grande ou largo. Os barcos daqui são bem bonitos, com popa e proa elevados ostentando pinturas. A cidade é agradável, bonita, mas não é Veneza (e não precisa desta apodo).
Agora estou em Óbidos, que é um espetáculo, com seu castelo do século XII (sobre fundações mouras mais antigas) e cercada por muralhas medievais feitas dois séculos depois da construção do castelo. A cidade parece um presépio. Lindíssima e caríssima. Deus do Céu!!! A turma aqui arranca o couro! Também tive uma sensação de que algo estava estranho. É estranhamente sem vida. Pelas fotos me pareceu que ganha vida quando tem as procissões e eventos religiosos, mas agora, sem o chilrear das crianças, sem camponeses indo para a roça. É uma vila muito pequena, com poucos habitantes intramuros e poucos fora destes. As sensações aqui são divididas entre o encantamento da beleza medieval e o estranhamento da ausência de vida natural, de gente indo e vindo, estudantes, camponeses, vendedores ambulantes, em que pesem as inúmeras lojas vendendo lembranças à multidão de turistas.
A cidade foi decretada patrimônio da humanidade pela UNESCO. Ótimo e merecido. No entanto, pergunto-me, como manter a essência vital de um lugar além de preservar-lhe as características físicas? Há algo de casca de ovo vazio em Óbidos, coisa que não acontece em Évora, por exemplo, com suas ruínas, suas tradições, suas casas antigas preservadas e o povo nas ruas.
Com estes comentários me despeço por hoje.
Recebam todos um beijo saudoso.
Aureo Augusto

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

CANTOS ALANTEJANOS e CAETANO VELOSO

Assunção, a simpática vice-reitora da Universidade de Évora nos levou (Cybele e eu) a participar de um grupo de cantos alentejanos. No Alentejo antigamente quando as pessoas estavam no campo trabalhando, nas tabernas ou nas festas, cantavam músicas folclóricas. Algo semelhante ao que se passa na Bahia, com o samba de roda e outras manifestações musicais. Com o evoluir da sociedade estas músicas correram o risco de se perder e alguns amantes daquele costume se reuniram para preserva-los. Felizmente os jovens estão voltando a se interessar e há uma possibilidade de renascimento deste costume. Chegamos e já tinha começado. Um senhor de bigodes amplos e bela voz puxava os cantos e os demais (incluindo os visitantes se inseriam uma vez que recebiam uma apostila com as letras) acompanhavam. Quando acabava uma música o líder, Sr. Manoel Joaquim, perguntava que música o grupo queria cantar e alguém dizia um número e todos iam àquela música e começava a cantoria. As músicas deliciosas, com letras que variavam da ingenuidade mais pura a uma terna malícia, ou romantismo exaltado. No dia seguinte estávamos em um grupo, almoçando e conversando sobre os cantos. Então falei para o grupo que na Bahia há um cantor, Caetano Veloso, que eu tinha certeza de que ele iria adorar aqueles cantos. Todos me olharam espantados e começaram a rir. Então me explicaram que Caetano Veloso é do mundo e não da Bahia apenas. Para minha surpresa conheciam Caetano a fundo (aliás, ao entrar em uma casa estava tocando justo ele, por coincidência). Não esperava que conhecessem tanto. Ficaram bem felizes quando lhes disse da possibilidade de ele gostar daquelas músicas e considerei que muitas das músicas que ele canta ou cantou são extraídas do folclore e que lhes proporcionava uma roupagem cujos resultados eram maravilhosos. Em segundos a Bahia alcançou esta distante Évora, graças à voz de um de seus filhos.
Espero que os cantos alentejanos se tornem conhecidos, tanto quanto a nossa capoeira. Ocorre-me que alguns deles estão na origem de algumas das nossas músicas, já que sangue português está em nossas brasileiras veias e também penso que conhecer, contatar, com as tradições nos enriquece a alma.
Aliás, Assunção comentou algo que merece contemplação ao dizer que quando viajamos conhecemos melhora ainda o nosso lugar de origem e aí está uma verdade.
Recebam um abraço cantado.
Aureo Augusto

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

ÉVORA!

É marcante a diferença entre os lisboetas e o pessoal daqui desta cidade sensacional. O pessoal aqui é mais relaxado, risonho, mais dado. O turismo é muito forte, mas a atividade artesanal (com cortiça principalmente) é marcante, assim como a agricultura. Caminhar em Évora é andar sobre o passado. Procurava uma construção do século XVII e no caminho encontrei as ruínas de um templo romano supostamente dedicado a Diana. A visão daquelas colunas coríntias fez meu corpo tremer. Lágrimas me saltaram dos olhos. Desde que eu era muito criança já me apaixonara pela antiguidade. Com onze anos tinha 4 cadernos de desenho sobre mitologia grega. Meus colegas de escola me apelidaram “rato grego” pelo meu tamanho e pela minha paixão. Agora estava vendo e tocando em um objeto arquitetônico que me levou diretamente àquela gente (mesmo sendo romano, o modelo era grego da ordem arquitetônica coríntia) que tanto me preenchera a infância e a adolescência. Fiquei um tempo tocando as pedras desgastadas, sentindo umas coisas por dentro.
A cidade está bem conservada e é um amálgama de romanos, mouros e cristãos medievais, renascentistas e modernos, tudo dentro das muralhas construídas pelos primeiros e preservadas e modificadas pelos demais. Antes de todos eles os celtas moraram aqui e antes destes, os povos que construíram os dólmenes e menhires que, como é comum se dizer, se perdem na noite dos tempos.
Não sei o que verei adiante, mas Évora é a cidade. Caso morasse em uma cidade de Portugal, com certeza escolheria Évora.
Estamos na época abominável dos trotes e Évora (como Lisboa) está tomada por bandos de estudantes veteranos manifestando seu sadismo sobre os calouros. Alguns destes até que se divertem, mas a maioria mostra-se constrangida. Não gostei quando fui calouro e reagi e fugi ao trote. Não gosto do que vejo aqui. Os professores também se manifestam contra, mas não adianta. Penso que se poderia organizar alguma brincadeira com os novos estudantes e até pintar as caras, além de manifestações de boas-vindas, porém é evidente que os veteranos, ou melhor, alguns dentre eles que participam nisso, não demonstram contemplação.
Mas apesar disso, a cidade nos olha de suas pedras.
Para minha surpresa o hotel onde estou tem toda uma sessão do restaurante dedicada ao vegetarianismo. Uau! Estou passando bem. Pão integral, frutas, grande variedade de legumes crus e cozidos etc. Apenas o arroz e a farinha de trigo em algumas receitas são ‘brancas’, porém o restante dá pra encher os olhos e a barriga. E a pizzaria que fomos ontem à noite, Cybele, eu e a vice-reitora da universidade (uma pessoa muito simpática e simples, apesar dos numerosos títulos acadêmicos, coisa que nem sempre encontramos) oferecia pizza vegetariana. Parece que estamos conquistando o mundo!
Évora é a principal cidade de uma região chamada Alentejo (que vem do fato de estar além do rio Tejo – eles gostam da onda; outro lugar chama-se Ribatejo porque fica rio acima), que tem forte presença de uma planta, o sobreiro. Dela a cada 10 anos retira-se a casca e com ela são fabricadas milhões de rolhas. Portugal é o maior produtor de rolhas do mundo. É a nossa conhecida cortiça. Mas eles fabricam de tudo com a cortiça. Aventais, sapatos, bolsas, esculturas, cintos, bandejas, roupas... E o resultado é lindo. Quando viajamos pelo campo vemos os sobreiros depois da retirada da casca. Ficam com o tronco muito vermelho exposto, como se fossem as ovelhas tosquiadas da família das árvores. O legal é que o processo não prejudica a planta que 10 anos depois será novamente “tosquiada”.
Estou encantado com este lugar.
Recebam um abraço cortical.
Aureo Augusto

terça-feira, 21 de setembro de 2010

SOCIEDADE DE NATURALOGIA

Caminhando pelo centro da cidade antiga de Lisboa dei de cara com a sede da Sociedade de Naturalogia. Curioso, subi as escadas até o terceiro andar de um antigo prédio e encontrei um espaço com jeito de antigamente, mas com algumas modernidades, tal como um data show apresentando as atividades da instituição. Apresentei-me como médico que trabalhava na mesma linha deles, mas não deram atenção a isso, nem demonstraram nenhum interesse em partilhar. A sociedade é antiga e tem tradição, é reconhecida como de utilidade pública e faz muitos trabalhos, tais como cursos, passeios, palestras, tertúlias etc. Tem uma pequena biblioteca, sala de atendimento, livraria, restaurante. O ambiente é simples e tranqüilo. Tomei um suco centrifugado por um preço bem accessível e fui turistear. Uma hora depois comi no restaurante deles e estranhei o fato de não ter nenhuma salada. O arroz integral também estava muito duro. A variedade era pequena e o sabor deixava a desejar. Deu-me a impressão de estar em um restaurante macrobiótico, como o Gergelim em Salvador, só que a comida não era tão agradável.
Depois me deu vontade de descomer, como sempre. Procurei o retrete (também chamado de casa de banho ou wc) e estava muito feliz quando bateram na porta. Respondi que estava ocupado e uma voz feminina me informou que estava no banheiro errado. Fiquei constrangido e pedi desculpas, mas tinha que terminar o que havia começado.
Recebam um abraço constrangido.
Aureo Augusto

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

SOLIDÃO E REBELDIA

Estava no metrô e meus olhos alcançaram uma jovem sentada mais adiante. Linda, mas com o olhar perdido, distante enquanto escutava música pelos fones de ouvido. Estes objetos tornaram-se presença constante em todos os lugares. Pensava que eram moda apenas no Vale do Capão, que chegou como uma novidade. Não, em tudo quanto é lugar as pessoas perdem-se das outras, isolam-se do mundo, ensimesmando-se através a escuta da música dos MP-3, MP-4 (na verdade não sei qual é o número agora) ou dos celulares. Então resolvi observar as outras pessoas do vagão e havia nelas a mesma coisa. Todas as pessoas olhavam para o vazio. Mesmo aquelas que não tinham fones nos ouvidos.
Portugal tem algo de triste. Tem uma coisa melancólica nos portugueses. Por que será?
Cybele pensou que poderia ser por ausência de lazer. As pessoas aqui trabalham mais do que seria de se esperar, e apenas para garantir a sobrevivência, para, enfim, pagar as contas. Existem parques públicos lindos, tem o zoológico, o Parque das Nações etc. E vai muita gente. Mas mesmo assim, há um clima de que estas coisas são para de vez em quando. Conheci um brasileiro que trabalha de garçom. Ele está contente de estar aqui, porque ganha bem. Mas trabalha em um local pela manhã e parte da tarde e em outro, de parte da tarde até à meia-noite. Desconhece domingo como tempo de descanso. Disse-me que tem aluga um apartamento de qualidade e tem certos confortos, mas a um alto custo.
Uma coisa também que noto é que tendem a ser ordeiros. Nada de mal nisso, mas um pouco de rebeldia sempre pode ser útil e necessário. Parece-me que aqui a rebeldia não é a tônica. Mesmo entre os jovens. Alguns deles se vestem modernamente, mas não vi nenhum punk, ou riponga. Há uma ternura neles, mas uma ternura melancólica.
Será que perderam a esperança? Quero dizer: Será que após tantas revoluções pelas quais passou a Europa, tantas guerras, ditaduras e rebeliões, eles sentem que o essencial não mudou e, portanto, qual o sentido de mais algum ato rebelde? Talvez todas as revoluções tenham esbarrado no fato simples de que somos nós os seres humanos que as realizamos e não mudamos nelas, embora nelas mudem aqueles que assumem o poder. Na verdade, os últimos movimentos de rebeldia configuram-se, inclusive assumidamente, como modas, apenas modas. Pode parecer que isso seja triste, mas não é. Isso é o indicador de que precisamos fazer outro tipo de revolução. A mudança não é mais lá fora apenas. Aquele que quer mudar o mundo deverá (pelo menos) tentar mudar a si.
Recebam um abraço melancólico em consonância com este admirável mundo novo.
Aureo Augusto

domingo, 19 de setembro de 2010

MOZART E OS MEUS PÉS

A Fundação Gulbenkian está fazendo uma série de apresentações, filmes etc. sobre Mozart e neste momento acabo de chegar de uma das atividades, uma série de apresentações (duo de violino e viola, sonata, quinteto de cordas...) de músicas daquele grande músico, sempre com participantes da orquestra da Fundação. Não entendo nada de música, não sei distinguir um autor clássico de outro, mas gosto. O Improptus de Schubert é uma coisa maravilhosa, e me toca profundamente. Isso eu sei. Tenho a sensação de que a música é o máximo que o ser humano, enquanto ser humano como nós somos, pode alcançar. Quando Caetano canta “a sombra da encosta cor de laranja, capim rosa-chá...”, ou quando se exalta o coro no Carmina Burana, ou ainda quando delicadamente as vozes indígenas cantam Wakan Tanka, estas coisas me dão a sensação de que escutando estou mais próximo do Mistério. Ali naquele momento o mundo, o Universo, fica muito próximo. As montanhas ao redor de minha casa deixam de ser ao redor e recolhem-se dentro. Senti isso hoje escutando Mozart.
Claro que não deixei de reparar que os músicos usavam uns sapatos enormes e brilhantes. Caso quisesse pinta-los em uma tela, teria que fazer grossas pinceladas brancas ocupando metade dos sapatos para indicar-lhes o brilho envernizado. Também faltava uma lâmpada no palco. A platéia portuguesa, antes do espetáculo é igual à brasileira, bem barulhenta. Porém uma vez que começa o silêncio é tão intenso que dá para respira-lo. Peguei uma porção e guardei-a no bolso, para usar mais tarde. Claro que sempre há exageros. Em um certo momento mexi em um pacote de papel e naturalmente fez um ruído discreto. Uma mulher na frente deu um pulo como se tivesse estourado uma bomba de São João bem junto o ouvido dela e olhou como se tivesse sido pessoalmente insultada. Depois disso fiquei duro feito pedra, não me mexi nem um pouquinho e quando terminou aquela música estava com o ombro doendo. Aproveitei os aplausos e tirei o pacote do colo para poder me mexer de vez em quando. Aliás, os portugueses não aplaudem a toda hora, nos intervalos entre as partes das músicas eles sabem que a música não terminou e ficam quietos, ou melhor, aproveitam, entre um adágio e um allegro, para tossir, pigarrear, se mexer, isso bem rápido, pois antes da música recomeçar já estão em silêncio.
Mencionei sapatos e isso me faz lembrar de meus pés. Estão branco rosados, limpos como a muito tempo não os vejo. É que aqui ‘pelazoropa’ só ando calçado. Aí os pés vão perdendo aquela cor bufenta que só o Vale do Capão sabe dar. Até as velhas rachaduras dos calcanhares estão quase desaparecidas. ‘Tô com muita saudade de andar descalço.
Recebam um beijo mozartiano.
Aureo Augusto

sábado, 18 de setembro de 2010

A QUESTÃO DA ALIMENTAÇÃO

Quando comentamos com algumas pessoas que viríamos a Portugal foi unanimidade que teríamos problemas com a alimentação já que somos naturistas. Claro que fiquei um pouco preocupado com isso. Todos diziam que em Portugal o peixe é onipresente, mesmo nas saladas. Não foi isso que aconteceu.
Temos encontrado numerosos restaurantes com opções para vegetarianos, mesmo nos lugares típicos. Aqui tem uma comida típica, a pita, que é uma espécie de pão fino com um buraco no meio onde se coloca todo tipo de comida. Hoje fomos visitar o mosteiro dos Jerônimos, que é uma coisa inacreditável. Impressionante a igreja, sua altura de tirar o fôlego, o cuidado nos detalhes... O português, tenho notado, é dado à burocracia. Às vezes anotam coisas que observo não seria necessário, ou passam papeizinhos onde bastaria dizer tudo bem. Será que tal afeição pela picuinha vem do passado detalhista do período manuelino da arquitetura? Mas saindo desta viagem hipotetizadora e voltando para a alimentação, acho que o pessoal que nos disse que aqui não se comia natural não abriu os olhos. As saladas são sensacionais. A parte cozida não é tão boa, mas isso não significa que seja desprezível. Dá pra passar muito bem. Pois bem, você, leitor, acha que já me perdi no papo e que não vou mais falar da pita. Mas nem vem, pois retorno ao tema: Após ficar embevecido com a igreja e com o jardim interno, saímos a comer algo e no restaurante de comidas típicas ali estava a pita com recheio vegetariano, a escolher, ou seja, com diversas variedades. O pão não era integral, mas o recheio compensava. Aliás, pão integral é sumamente comum. Em quase todos os lugares onde comi, havia esta opção. A maior parte excelentes e os que não alcançam esta qualificação são muito bons, pelo menos. Notei que estou emagrecendo, mas não porque coma pouco e sim porque as saladas são tão grandes que acabo não me interessando pela parte cozida. Agora tenho comido coisas um pouco mais ricas em calorias para que não acabe “entrando na garrafa”, como se dizia antigamente.
Assim, caro amigo que procura alimentação natural, pode vir, que não vai se decepcionar.
Hoje também fui ver a torre de Belém. É linda, mas não fica mais no meio do mar como na época em que Cabral veio para o Brasil. Com o tempo a foz do rio Tejo estreitou de modo que a belíssima torre está ao alcance dos nossos passos. Havia pensado em pegar areia de perto da torre, para levar ao Brasil e dar de presente para as pessoas; afinal dali saíram os navios que colonizaram nosso país. Mas quando cheguei lá, não achei a areia muito limpa, também pensei que quase ninguém é assim tão amante de história e por último, a areia que estava aqui quando saíram os grandes navegadores portugueses dos séculos XV e XVI era outra. Vou ter que levar outra lembrança!
em 18 de setembro de 2010, desde esta lonjura mando uma lembrança para vocês!
Aureo Augusto

MUSEU GULBENKIAN e os JOVENS DE NEGRO

Hoje passei todo o dia no Museu Calouste Gulbenkian. Não dava pra fazer mais nada. Entre o Museu, a Biblioteca e o Centro de Arte Moderna as horas foram passando. No meio das visitas almocei no restaurante do museu que tem uma magnífica vista para um dos jardins, povoado de pássaros.
Cheguei antes da hora e me dediquei a passear, a me perder no meio dos jardins, com córregos e lagos repletos de nenúfares, patos, pássaros e pombos. Recantos secretos com bancos acolhedores apenas esperando-nos. Quando abriu o museu foi se descortinando centenas de anos da arte de nossos antepassados.
Calouste Gulbenkian foi um armênio nascido na Turquia, filho de pais ricos, tornou-se milionário lidando com petróleo. Na Segunda Guerra Mundial quis ir viver em um país neutro e escolheu Portugal onde viveu os últimos treze anos de vida. Gostou do país, o que não é novidade, dada a sua beleza e às maneiras dos nativos, e ao falecer doou toda a sua coleção de arte e uma quantidade de dinheiro inacreditável para a criação de uma fundação, que veio a receber o seu nome e que se dedica à educação e à arte entre outras coisas. Existem no mundo vários museus Gulbenkian. A fundação tem um importante papel no desenvolvimento da cultura em Portugal e no mundo, desde que foi fundada. O homem era ligado em colecionar objetos de arte e tudo o que está exposto é a sua coleção particular que tem desde moedas gregas do século V a.C. até a arte dos impressionistas franceses do século passado. Impressiona particularmente as moedas, tão pequenas e tão perfeitas e os azulejos turcos. Mas o que digo? Impressiona também as telas de Camile Corot e Turner, os dípticos em marfim do século XIV, os biombos, tudo! É coisa pra ver com muito cuidado, com muito vagar. E foi o que fiz e não fiz com tudo. Foi um dia ganho!
Antes de ir pro museu, encontrei mais uma vez os jovens vestidos de negro com longas capas, semelhando uma gente medieval. Desta vez parei-os para perguntar qual era a deles. Tratava-se de um simpático casal muito jovem. Explicaram-me que eles estudavam na Faculdade de Ciências e esta era uma tradição, vestir-se daquela maneira nos primeiros dias de aula. Não é obrigatório, porém eles gostam. Outras faculdades têm roupas diferentes. Acrescentaram que em Coimbra a tradição é ainda mais forte e são encontrados estudantes se vestindo como eles em muito maior quantidade. Parece que aqui eles gostam de estudar. Muito legal!
Um abraço, Aureo Augusto.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O CHAPELEIRO PORTUGUÊS (que não é louco)

Para mim Portugal tem a ver com chapéu. Melhor dito, tinha, e logo saberás (viu o acento lisboeta?) o porquê do verbo no passado. Acontece que na minha cabeça, sempre associei o país ao grande poeta Fernando Pessoa. Nada mais óbvio já que era português. E em todos os desenhos e fotos que conheço de Pessoa, sempre ostentava um chapéu. Por isso pensei que estando aqui logo encontraria lojas e mais lojas de chapéu e todas as pessoas nas ruas estariam com chapéus na cabeça e não bonés como em tudo quanto é canto hoje em dia. Como o meu chapéu está bem velhinho, pensei que aqui encontraria outro, barato e de boa qualidade. Para minha tristeza o que mais vi foram os onipresentes bonés. Nem uma única loja de chapéus. Aliás, nenhum português de chapéu. Só então me dei conta de que Fernando Pessoa era de uma outra época, na qual todos usavam aquele objeto, hoje visto como anacrônico, mas que para mim não é, haja vista o sol que arde cada vez mais nestes tempos de camada de ozônio mais tênue. Mas a realidade é que a nossa mente faz umas coisas! Não é que tenha feito conscientemente a associação. Mas fiz, lá por baixo do pano, por dentro das gavetas fechadas que se comunicam entre elas de um jeito que as maçanetas e os puxadores não sabem. A mente faz umas associações estranhas e nem percebemos. Há que tomar cuidado com a mente.
Hoje saí com o desejo de, além de ver as belezas daqui, comprar o meu chapéu porque o sol tem sido bem forte e fico procurando as marquises. Chapéu para mim é uma marquise portátil, o que é muito legal. Fui para a Lisboa antiga e pergunta daqui, pergunta dali, descobri a única chapelaria. Ali encontrei uma senhora já de alguma idade, em uma loja com um jeito dos anos 1920. Ela e a loja eram feitas uma para a outra. Delicada me atendeu e mostrou-me os vários modelos masculinos. Escolhi um. Ela sorriu e me disse que este era o modelo usado por Fernando Pessoa. Depois, como não tinha um que desse bem em minha cabeça ela colocou dentro do chapéu uns pedaços de cortiça de modo a que ficasse justo, mas não apertado. Sua mão tremia muito e por isso a ajudei. O preço foi o mesmo que aquele que encontro na Bahia, quando compro na mão de um português que já foi mascate e vendia seus produtos no Vale do Capão de antigamente.
Saí feliz com meu chapéu de Fernando Pessoa!
Aliás, por coincidência encontrei o primeiro lisboeta de chapéu. Um sujeito com a cara toda enrugada, cabelos canosos, olhar esquisito, todo vestido de negro, do sapato à gravata, paletó e ao chapéu. Ele me olhou e quando passei por ele, perguntou: “Marijuana?”. Então entendi o porquê do seu aspecto decadente. Segui meu caminho. Espero que a partir de agora eu não faça uma associação entre chapéu e venda de drogas!
Um beijo para todos.
Aureo Augusto

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O TAXEIRO AUTÔNOMO

Ontem aconteceu uma coisa que merece registro: Vínhamos, Cybele e eu, voltando de uma entrevista com uma pessoa maravilhosa, Sérgio Niza, um grande educador português, que ademais, é um homem suave, agradável, aberto, humilde e dono de si, coisas que percebi nas horas em que passei assistindo silenciosamente ao diálogo dele com Cybele. Poderia comentar muito tempo as impressões que o educador me causou, mas agora prefiro falar do motorista de táxi que nos trouxe. Ele escolheu o caminho, porque pensou que era o mais rápido, pois o outro caminho prometia ter mais engarrafamento. Porém acabou que havia um tremendo congestionamento no caminho que havia escolhido. Ficou bem aborrecido – como, aliás, freqüentemente acontece com os portugueses, principalmente no tráfego – com o fato e nos explicava que seu erro foi não se lembrar de um jogo de futebol que ocorreria naquela hora. Ficamos com receio que o taxímetro saltasse sobre nós e arrancasse todos os euros que tínhamos no bolso, já que os carros mais paravam que andavam. Então, em certo momento o motorista nos explicou que desligaria o taxímetro porque ele fora o responsável único pela decisão de ir por aquele caminho.
Ficamos estupefatos com sua atitude. Uma coisa temos notado aqui em Portugal: Há uma tendência entre eles a assumir a responsabilidade pelo que propõem e pelas decisões que tomam. Dá-me a impressão que aqui na Europa não é como no Brasil, onde adoramos jogar a culpa nos demais, inventar desculpas. “Ah! Foi o tempo”, dizemos. Ou foi tal pessoa que nos atrasou. Acho incrível se desculpar por haver chegado atrasado porque o tráfego está apertado ou porque tem filhos a cuidar. E se perder o emprego, o que serão dos filhos? Seguramente já não terá problemas com o tráfego. Mas não terá como comer e comprar roupa. Há uma mulher que conheço que de vez em quando começa a me contar seus problemas. Abestalhado que sou, comecei a sugerir-lhe saídas. A cada proposta que lhe fazia ela encontrava impedimentos. Com o tempo percebi que ela só quer que eu finja que é uma coitada. Sou um cara obediente, mas aí já é demais. Não finjo, mas não lhe dou mais dicas. Apenas escuto.
Nós, na América Latina, gostamos de lançar invectivas contra o capitalismo, os americanos, os colonizadores... Todos estes têm seus defeitos, mas perdemos muito tempo culpando-os. Melhor seria assumirmos nossas responsabilidades. Ontem fui à biblioteca da Faculdade de Psicologia e na saída encontrei uma banca com livros e revistas que a biblioteca oferecia gratuitamente a quem quisesse levar. Peguei uma revista em quadrinhos africana com diversas histórias educativas e em uma delas um pai cachaceiro mandava o filho comprar bebidas para ele. Um dia o filho foi aliciado por um traficante de drogas e mudou de ramo. Passou a ser “avião” apesar (ou talvez por isso mesmo) de ainda ser uma criança. Numa dessa, indo ao ponto das drogas, a polícia chegou e houve um tiroteio e o menino morreu crivado de balas. Quando seu pai soube da notícia, entre um trago e outro comentou que aquele menino não tinha futuro e acrescentou: “Também com a mãe que tem”. Este é o método subdesenvolvido de encontrar explicações para as coisas. Esta é a forma colonizada que permanece colonizada. É fácil ter alguém lá fora para culpar e eximir-se de qualquer responsabilidade.
O taxeiro português, que por sinal cheirava a álcool e dirigia horrorosamente, podia ter lá seus defeitos, mas responsabilizava-se pelas suas decisões e por isso merece nosso respeito.
Recebam um beijo português.
Aureo Augusto
,