sábado, 20 de novembro de 2010

CUIDAR (SOLIDARIEDADE)

Ontem fui fazer as visitas domiciliares do posto de saúde onde trabalho. Instigado por um convite que recebi para uma fala sobre o cuidar, ao chegar em casa me vieram estes pensamentos:
Em primeiro lugar, antes de tudo, ocorre-me dizer que o principal é esquecer que nós somos seres especiais. Nós da saúde nos sentimos como uma elite. Nem vou falar no médico que é tratado como tal e, praticamente é induzido, quando estudante, a sentir-se como tal. Exemplo: há alguns anos atrás tive uma prova da consideração com que nós médicos somos agraciados, pois sendo minha conta bancária um ermo, mesmo assim o gerente do banco me procurou pra eu ter cheque especial porque, segundo ele, não se concebia um médico sem cheque especial. Mesmo mostrando meu saldo, ele não considerou. Médico é tratado como elite (seja ele proveniente ou não da elite), mas isso acaba contaminando todo o pessoal da saúde – não penso que se deva menosprezar a contribuição do pessoal da saúde à sociedade, mas aqui quero trazer os aspectos negativos desta elitização. Nós, os seres humanos, temos uma tendência muito forte a considerarmo-nos como fazendo parte de um grupo especial. Os católicos acham que as religiões são uma coisa muito boa, mas o João Paulo II disse que a que leva mesmo pro céu é o catolicismo. Já os evangélicos são taxativos: cristãos mesmo, só eles. Quer ir para o paraíso após a morte? Converta-se. Os muçulmanos não entendem um paraíso se não for ocupado pelos seguidores de Maomé. Já que falamos de religião, e seguindo o pensamento de Berthrand Russel, convém dizer que os comunistas se acham os únicos com a verdade. Outrossim, o pessoal do consenso de Washington, pelo menos antes de ver a cagada que propuseram, consideravam-se a verdade econômica sem apelação. Bem disse Hannah Arendt quando considerou que o totalitarismo é o governo da verdade. Isso mesmo, achamos que estamos certos e o passo seguinte é achar que os outros estão errados e, corolário lógico, estando eles errados e nós certos, somos melhores, ou superiores, a eles; logo depois, em nome de Deus, da História ou dos bons costumes declaramos os opositores culpados de lesa majestade, lesa religião, lesa história, heterodoxos, ortodoxos, ou de pervertidos passíveis de cadeia, hospício, gulag, paredão, campo de concentração, tortura etc. Mesmo que a nossa opinião seja verdadeira, o governo que dela sai (sendo excludente), é totalitário, injusto, e, mesmo, assassino. Dito assim parece que este tipo de coisa só acontece no mundo grande, na política internacional. Mas acontece todos os dias, no dia-a-dia, na vida cotidiana. Desconfiamos daquilo que é diferente do consenso (quando nós participamos do consenso) e detestamos o senso comum (quando dele não somos exemplo), este é o primeiro passo que pode chegar ao desejo e ao ato de eliminar aquilo que não se alinha à nossa verdade. Agora pense o pessoal da saúde, com toda a quantidade de informação que tem, horrorizado porque – uma que aconteceu comigo recentemente – a velhinha recusa-se a ir ao hospital. O quadro era grave, vi que não podia tratá-la em casa. Implorei, ou melhor, imploramos – porque toda a família estava lá comigo – para que fosse, mas ela irredutível: “Se eu tiver que morrer disso, morro em casa”. Com seus oitenta e tantos anos de vida e autoridade, ninguém a moveu. E ainda não morreu. Entendam: Temos razão em muitas coisas. O problema é que não vemos com a mesma presteza a razão do outro. Aí está o cerne do belicismo e também (e paradoxalmente) do cuidado. Não ponho aqui a questão de quem estava certo; a questão é que cada um tem as suas razões e como todos têm razão, acontecem as guerras, os guetos, as exclusões e as elites (que vão desde as famílias tradicionais até a nomenklatura da ex-URSS). A face bonitinha disso é o paternalismo travestido de bondade e compreensão, que ajuda, mas não liberta.
Cuidar do outro é cuidar com o outro. A palavra ‘com’ traz algumas implicações. Uma delas é que o cuidador não sentir-se-á superior àquele a quem dirige o cuidado. Ou seja, seu motor virtuoso será a ‘solidariedade’ no sentido posto por André de Comte-Sponville, em seu belíssimo Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Explica-nos o autor de uma forma deliciosa que esta virtude ocorre entre iguais. Você será solidário com alguém que considera como um parceiro, companheiro, enfim, um igual. Caso se considere superior, já não será solidariedade e sim generosidade. Quando uma pessoa da classe média dá um prato de comida a um mendigo está sendo generosa, porque ela se considera mais bem aquinhoada no quesito finanças (pelo menos). Mas quando esta mesma pessoa se reúne com os colegas de trabalho para um movimento por melhores salários está agindo em solidariedade com os demais. O mundo foi solidário com os mineiros chilenos, porque ninguém se sentiu superior, todos se colocaram no lugar deles, como seres humanos que todos somos, e, consequentemente passíveis de sofrer as dores do existir (não necessariamente presos em uma mina, mas partícipes das malhas da vida, que tanto nos pode trazer condições de alegria quanto de dor). É assim que devemos receber a pessoa que nos procura em um posto, hospital ou outro lugar de atenção à saúde (ou doença); ou quando, sendo Agente de Saúde ou de Endemias, chegamos à casa das pessoas a perguntar-lhe coisas, penetrar-lhe o recôndito da vida e do lar. Solidariedade.
Georg Grodeck era radical na atenção ao que a pessoa falava (leiam o instigante Estudos Psicanalíticos Sobre Psicossomática. Para ele o atendente devia respeitar absolutamente a linguagem do assim chamado paciente. Pois ali estava registrada a sua verdade e a expressão da sua vivência única. Pense: O cara diz que sente as vermes andando dentro da barriga dele. Esta é sua experiência. Você pode achar que são gases, mas ele vivencia vermes. Em que medida, gases não são vermes? E, sendo gases, e se eles forem frutos de vermes? Outro exemplo: No Chile certa vez uma mulher me disse que tinha o estômago doente. Desacostumado à linguagem local demorei a descobrir que para aquela gente estômago não é apenas um órgão específico do abdômen e sim o abdômen. Para mim o problema era intestinal, para ela intestino e estômago são uma coisa só. A verdade anatômica pode não ser a verdade cultural. Mas que importa? Importa que eu compreenda que descrições servem ao propósito de comunicar e não ao de impor verdades. Talvez devesse dizer ‘deveria’ porque nós, os depositários do pensamente científico confundimos ciência com verdade, e tomamos nossas descrições e nossas opiniões (doxa) por únicas expressões da verdade (episteme), o que é epistemologicamente falso, e, parece-me, Karl Popper já nos mostrou isso claramente em Conjecturas e Refutações, livro delicioso e imprescindível. A linguagem científica é prática e objetiva para descrever fenômenos e objetos, mas tem o grave defeito (que é sua principal qualidade) de evitar a subjetividade, como se fosse possível observação sem subjetividade. Comento isso apenas para mencionar que no quesito subjetividade a poesia ganha longe. Ou seja, existem diversas possibilidades de linguagens. Perguntar qual a falsa e qual a verdadeira é um tanto ocioso.
Nós que trabalhamos com a saúde precisamos entender (ou devo dizer compreender?) que aquela pessoa que está carecendo de apoio por encontrar-se enferma (sendo este o caso) é uma igual, na mesma medida em que somos também passíveis de padecer doença. Sofrer é condição sine qua non de existir. Sofremos a vida, sofremos as agruras e as benesses do clima, sofremos as alegrias familiares e as dores de nascer e crescer. Lembre que, como assinala Ralph Blum, sofrer é submeter-se a. Todos nós, inclusive o melhor médico do mundo, e mesmo o Ministro da Saúde (que me parece um cargo assim bem grande) está submetido às contingências de viver aqui no Planeta Terra. Portanto não somos maiores nem melhores que os demais e sim e apenas e sim e gloriosamente iguais (já que somos gente humana). E para mim esse é o primeiro passo do cuidar.
Ontem fui fazer visitas domiciliares, atributo do serviço em uma Unidade de Saúde da Família (USF). Quase todos os visitados eram idosos, com os rostos profusamente vincados por rugas e olhares tocando um passado que desconheço. Como eu, construídos de história, aquelas pessoas me tocaram da mesma maneira como lhes despertei a gratidão por nada mais fazer que cumprir a minha obrigação. Olhava para seus olhares e percebia que logo serei tal qual eles, com o rosto e alma ainda mais vincados pelo tempo. Não sou diferente e meu diploma não me fará viver mais, não me protegerá necessariamente das agruras que a idade traz ao corpo físico. Dona Marica tem uma espécie de domínio das dificuldades físicas, muito semelhante ao diálogo que estabeleceu com o clima e as condições de vida que vivenciou em um lugar duro como foi o Vale do Capão durante o quase século que viveu. A dor é assim e assado, mas ela continua catando café e fazendo a própria comida, driblando posturas dolorosas e lentidões inevitáveis, como antes organizava a vida para a época “das águas” quando a chuva forte rompia com a possibilidade de sequer sair à porta. A montanha de batatas colhidas pouco antes da estação da chuva forte, o fogo no meio da sala em um buraco no piso de barro batido. As conversas e a fumaça afastando insetos. Seus meios são os métodos que utiliza para continuar viva e feliz. Ela à despedida sincera agradeceu-me e à agente comunitária de saúde (ACS) pela visita tão grata e pelas medicações e conselhos. Em meu coração sabia que não lhe havia dado apenas e sim trocado.
Foi o velho Anísio que me ensinou a usar o mastruz com sal para as pancadas. E foi ele e Seu Artur que me mostraram na prática que a fala de Shakespeare, “há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga a nossa vã filosofia” é poesia pura e verdade. Ambos tiveram miíase no nariz em épocas distintas e testemunhei o fracasso de todas as medicações em ajudá-los. Ora, foi um benzedor que os ajudou. Logo depois da reza as larvas começaram a cair em profusão. Contado assim é forte, testemunhar foi chocante. Qual a linguagem você escolherá? Caso venha eu a ter miíase optarei pelo benzedor. Até porque o tratamento não tem efeitos colaterais. Seu Artur careceu de cataplasmas de argila para reduzir as inflamações que lhe ficaram como seqüela da miíase, enquanto o velho Anísio usou medicações “de farmácia”. Descobri no final que as diversas linguagens da nossa bela humanidade, podem (e devem) comunicar-se entre si e devo tal aprendizagem a essa gente que concedeu-me a graça de estar com ela.
Caso você saia incólume do contato com esta pessoa a quem chama de paciente, ou sua carapaça é muito dura e impenetrável, ou está dormindo tão alienadamente que perdeu a competência de conscientizar fatos interiores.
E tantas vezes aquela pessoa que está a nossa frente e solicitando o nosso socorro pode tornar-se nada mais que mais um número em uma estatística! Talvez porque estamos cansados depois de um dia de labuta, ou até porque a vida tem se revelado a nossos sentidos e pensamentos algo sem muito sentido, ocorre muitas vezes que nos pomos na condição de querer se livrar mais ou menos rápido daquele caso. Permitimo-nos não sentir. Como máquinas, orientamos poções, porções de substâncias e horários e deixamos que se vá mais uma oportunidade de sermos gente humana. Mas se o percebemos, no momento seguinte podemos olhar a pessoa e deixar que flua de nós todo este amor que podemos manifestar no conselho quanto às medicações, alimentação ou conduta... optamos por uma vida, ou seja, uma rede de relações que à máquina não é dado dispor.
O primeiro passo é permitir-se ser apenas um ser humano, despido dos diplomas e títulos cujo valor define-nos em certos ambientes, mas não em outros e muito menos naquilo que nos diz de nós mesmos a nós mesmos do que somos per si. Em seguida podemos olhar para as pessoas à altura dos olhos delas e estabelecer comunicação que será de variada profundidade (porque, como sabemos, o outro é o outro e o querer é um dever que cabe a cada um dizer se fará ou não). Uma vez isso estabelecido, podemos dizer que o processo de cura iniciou-se.
Em 20 de novembro de 2010, recebam um abraço orgânico.

5 comentários:

  1. Simplesmente, Fantástico! Adorei o texto!

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  2. Amigo Aureo, esse seu texto eh quase como uma poesia que nos leva a ter esperancas de que um mundo melhor ha de vir. Deus nos de forca para que possamos aplicar o que voce nos ensina em relacao ao respeito as ideias do outro. Fosse assim com a maioria dos habitantes desse nosso planeta e poderiamos sonhar com o fim da ganancia, da violencia e das guerras que destroem a humanidade que existe em nos.

    Falando agora mais especificamente da medicina eu estou as voltas com um medico que vendo o meu quadro de diabetes resolveu por bem que eu necessitava de injecoes diarias de insulina (como se o meu pancreas ja tivesse cessado de existir). Felizmente que aprendi que nem tudo que esses alopatas nos falam constitui a verdadeira cura para os males do corpo.

    Pois bem, munido de uma apartelho que faz leituras do nivel de glucose no sangue eu tomei a decisao de cortar a insulina (eh claro que sempre monitorando os niveis pelo menos 3 vezes ao dia). Pois bem, gracas a dieta rigorosa que me foi receitada pela nutricionista e tambem as caminhadas diarias de pelo menos 40 minutos, os meus niveis de glucose tem se mantido em valores mais que satisfatorios, e sem nenhuma medicacao.

    Santo ditado eh aquele que diz que nos somos aquilo que comemos, pena que eu tenha demorado tanto para dar atencao.

    Gracas a Deus tenho encontrado forces para seguir a dieta e mudar o meu estilo de vida. Mas fosse eu dar ouvidos aquele medico maluco e certamente ainda estaria sofrendo as consequencias daquelas injecoes diarias da insulina.

    Bom mesmo seria se a medicina podesse ser exercida apenas por pessoas com consciencia e com uma preocupacao com o verdadeiro bem estar dos pacientes. A vida nos ensina muito mais do que mil escolas.

    Um forte abraco,

    Riba

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  3. Grato pelos comentários de vcs. Ribamar, tomara mtos leiam seu comentário pq é importante que aquele a quem chamamos paciente deixe de ser passivo e assuma o controle do próprio processo. Não nego o valor de um médico, mas não podemos continuar negando o valor da pessoa.
    Parabéns!

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  4. Enfim descobri seu blog, e está maravilhoso. Parabéns pelo trabalho.
    Grande abraço
    Firdauz

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  5. Grato Firdauz,
    Vc pode não acreditar, mas eu sou tão bocó pra esse negócio de internet que fiquei com dificuldade de entrar no blog.

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