Estava já no final do expediente, ia de um lado a outro pra
tentar resolver a situação de uma mulher que chegara em mau estado e queria eu
que fosse para o hospital. Procurava o motorista da ambulância, explicava ao
marido... Maria Alda passava a chuva na varanda do posto, parei um pouco pra
olhar o mundo encharcado.
O motorista já vinha e Cida, técnica de enfermagem,
estava pronta pra acompanhar a mulher até Palmeiras donde seria recambiada até
outra cidade (com hospital). Maria Alda é da zona rural de Boninal, casou-se
com um rapaz daqui do Capão e adaptou-se primorosamente ao cosmopolitismo
daqui. Todos os dias desce do Engenho Velho, onde tem a horta e a casa, a
vender verduras, artesanato ou cristais brutos, mas mais do que tudo, vejo que
gosta de bater perna e conversar. O mundo espalhava-se à tarde e as cachoeiras
rugiam nas serras (contei oito entre o Batista e a Rua). Gente de tudo quanto é
canto assombrando-se com tanta água e beleza. Dizia Alda que seus tomates
estavam estufando e rachando, que tomate não gosta muito de chuva,
complementava que ainda bem que teve o período de seca, quando seus tomateiros
produziram como nunca. Ri comigo mesmo da beleza de sua fala inocente, contente
de sol e feliz de chuva.
E lá se foi a ambulância... fiquei olhando o mundo enquanto
voltava a pé pra casa, vencendo os quatro quilômetros que separam e unem minha
casa ao posto de saúde. Escutava a água embelezando o mundo, construindo verdes
e sorrisos. Amigos se aproximavam e ríamos juntos enquanto meu passo coincidia
com o deles e depois se despediam nas curvas de seus destinos...
A ambulância atolou feio e não teve jeito que não voltar,
pois naquela noite ninguém saiu do Vale. Cida me telefonou pra ver o que fazer.
Recomendei mais soro na veia, manter os demais procedimentos e a técnica dormiu
aquela noite no lugar de trabalho. Gosto de ver Cida trabalhando no seu silencio
de poucos risos, mas labor cuidadosa.
Gosto de deliciar-me com cada pessoa e coisa que me
atravesse o passo, vive na minha campanha por mais ou menos tempo, ou se vai. Cachoeiras
ou poeira no pneu nos carros; lama fazendo pés deslizarem; Seu Joãozinho
sentado na porta destilando sabedoria em palavras rápidas; mangas; ruído
ríspido da enxada na terra fria, abrindo passagem pra água íngreme; pitangas;
crianças em bandalheiras discretas na água e terra propícias a bolos de lama,
represas e resfriados; maçãs no pezinho tão pequeno no meu quintal, gotas de
água pendentes das folhas, indecisas se caem ou não; vozes dentro das casas
ininteligíveis mães chamando filhos a banhar-se; homens nos bares relaxados em
suas prisões e liberdades; um violão ali; pássaros titilando; caio no meio
desses glóbulos de vida deslizando-se sorrateiramente na minha realidade
tornando-a estranhamente mágica e deliciosa quando noto. Há, portanto, que
notar.
Recebam um abraço sorrateiramente mágico de Aureo Augusto.