quinta-feira, 25 de agosto de 2011

LIÇÕES ao VOLANTE

Zé Alfredo é um dos motoristas que me acompanham nas visitas domiciliares – que é uma das atividades obrigatórias de uma unidade de saúde da família (USF), quando vou às casas de pessoas que, pela gravidade ou por necessidades especiais, não podem comparecer ao posto – ou quando viajo para outras comunidades rurais para atendimentos ambulatoriais regulares às terças. Gosto muito quando ele vem porque nos dedicamos a conversar à larga, principalmente sobre religião. Trata-se de um homem muito alto e forte, com uma voz tonitruante, apaixonado por pesca e, mais do que tudo, um evangélico sumamente imbuído do sentimento de que Deus está presente em sua vida (e na de todos nós). Muito curioso, traz sempre alguma novidade científica que aprendeu nos canais de televisão voltados para a ciência, ou nos livros que muito lê. Suas conversas são instigadoras e tomo nossas viagens como lições, debates, aprendizados sobre diversos assuntos, principalmente na área da prática moral. Conquanto evangélico, e dedicado, ele tem grande abertura para conversar com aqueles que não comungam seu saber cristão. Aceita com sincera alegria quando lhe conto uma alegoria de outras religiões, mas com um cunho edificante. Causa-me grande prazer ao ver-lhe abrir-se a alma em alegre gargalhada quando termino um conto e ele percebe de chofre a mensagem. Sua risada estronda no carro e alcança as serras, se espalha forte pelo mundo. Então me conta algo, interpreta algo da Bíblia, e me mostra a sutilidade, beleza e força moral de alguma de suas passagens. De minha parte, surpreso, caio na gargalhada, por puro prazer de sentir-me envolto por uma verdade, um gozo anímico.

Ontem conversávamos sobre uma passagem da Bíblia, na qual os doutores da lei queriam castigar a Jesus por haver curado um cego no sábado. Concluímos que é uma atitude louvável reservar um dia para a religião, ou, melhor ainda, para a meditação quanto à própria conduta, ou à oração pelo bem comum, no entanto, mais vale tornar cada ato e cada momento em uma oração; digamos, tornar o dia-a-dia em um sábado, como era (e ainda é) o sábado para os judeus. Celebrar os dias todos como se fossem o domingo dos católicos, cantar a glória de estar aqui neste belo planeta para viver as oportunidades de estar na existência... Assim aconteceu o dia e, ao final, estava com a sensação de que foi um dos mais belos dias da minha vida. Graças a Zé Alfredo. O legal dele, é que não é daqueles garganteiros, que fala, mas não cumpre. Ele é. Gosto disso: Vive o que diz.

Outro dia me contou que um mestre e um discípulo caminhavam na beira de um rio quando o mais jovem notou um escorpião se afogando. Alertou ao mais velho, que ágil, apesar da idade, caiu na água e tomou o animal na mão, salvando-o. Mas eis que o escorpião picou seu salvador, coisa que revoltou ao discípulo que logo quis que o mestre o matasse. Então o preceptor retrucou que o artrópode não fez por maldade e sim por obra e obrigação da sua natureza. “É da sua natureza picar – disse – e é da nossa natureza perdoar”. E assim permitiu que o animal seguisse sua vida e natureza, permanecendo o mestre sem ressentimento, para surpresa do seu discípulo.
Sendo eu uma pessoa bastante irascível, muito provavelmente (comentei com Zé Alfredo) teria trucidado o bicho. Mas reconheço a plena razão do mestre. Minha raiva seria por ver na atitude do escorpião algo semelhante à ingratidão humana. Embora muitos animais mostrem sinais de gratidão, ao escorpião não é dada a condição de manifestar tal virtude, então porque trata-lo como se humano fosse? E, quantas pessoas são como escorpiões, não conseguindo liberar-se de condutas destemperadas? Eu mesmo, quando me irrito, e só depois percebo que lancei palavras como flechas, que feriram o alvo com suas pontas lacerantes. O pior é que nem sempre as endereço a pessoas como aquele mestre da história... Nem todos (e eu entre estes) têm a condição de compreender o quanto somos incompetentes no agir corretamente, no pensar corretamente, no falar corretamente, enfim, no viver corretamente. Tenho a sorte, entretanto, de contar com Zé Alfredo e suas lições.

Recebam um abraço compreensivo de Aureo Augusto (aproveitem enquanto ainda estou influenciado pelo motorista). Em 25/8/11.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

FÉ e CURA

Dia 12 de outubro, no Vale do Capão à tardinha, só quem é maluco pensa em preparar a janta. Todo mundo vai pra rua, pois as famílias que celebram o dia de N.S. Aparecida, desde o dia anterior estão preparando as comidas que serão distribuídas na festa. O povo vai de casa em casa, fartando-se e re-fartando-se de salgadinhos, pipocas, bolos e tortas caseiros, além dos bombons industrializados. Ninguém pode se queixar da vida em um dia como esse. Beli, uma senhora cuja família se dedica a um restaurante (o famoso “Comida Caseira da D. Beli”), me pediu que fotografasse sua festa o que o fiz sem hesitação. Por isso assisti e registrei em detalhes uma orgia de fé, religiosidade, gula e alegria, tudo isso em altas doses. A dona da casa começou esta tradição há alguns anos quando seu filho, que padecia de fortíssimas enxaquecas, ficou curado após orações à santa. Ele já havia inclusive sido internado por causa das dores lancinantes e a cura foi impressionante e imediata. Nunca mais fui chamado para cuidar dele, nas emergenciais crises.
O Dr. Herbert Benson, um dos fundadores do Mind Body Institute, da Universidade de Harvard, nota que há um fator de cura em nós, e que tal fator não está definido pela bioquímica. Tem realizado estudos interessantíssimos sobre aquilo que denomina ‘Resposta de Relaxamento’. Segundo ele, uma vez que o nosso corpo relaxa e permite-se crer, mecanismos de cura são postos em funcionamento e que tais mecanismos são muito poderosos, conforme mostram seus e de outros estudos. É uma felicidade ver instituições de alto gabarito como Harvard abrigarem pesquisas nesta linha, que nos remete ao enorme poder de autocura.
Infelizmente o desenvolvimento da ciência muitas vezes gera uma negação de alguns aspectos não tão passíveis de medição sistemática, como o é o poder da cura interior. Nós, os médicos, aprendemos detalhadamente como funciona a fisiologia orgânica, quais os efeitos benéficos e deletérios de cada droga em sua ação farmacológica, estudamos os melhores momentos e caminhos para uma abordagem cirúrgica adequada, quando esta é necessária e, nestes laboriosos estudos, olvidamos que lidamos com um organismo dotado da capacidade de se curar, tanto do ponto de vista meramente químico/biológico, como de outra potência que está além do físico. A ciência não definiu se esta potência é apenas um epifenômeno resultante dos eventos materiais, como uma conseqüência da nossa evolução biológica complexa, ou se algo pregresso a esta evolução conduziu-a a esta competência. Mas não importa. O fato é que quando cremos a coisa funciona.
Confesso que não sou um primor de fé, no entanto testemunhei coisas interessantíssimas. Conto duas relacionadas com a mesma enfermidade. Quando aqui cheguei, há mais de vinte anos, conheci o Sr. Artur, homem pelo qual tive imediata simpatia. Ele padecera de miíase no nariz. Trata-se da eclosão de ovos de uma certa mosca. Ela desova em pele ou mucosa lesada e quando suas larvas nascem devoram os tecidos de suas vítimas. Seu Artur me contou que só ficou curado quando um benzedor rezou-o. Tratei as seqüelas da doença com bons resultados e ele ainda viveu muito para contar sua história. Verifiquei entre os vizinhos e todos testemunharam a seu favor. Era verdade, garantiram. O tempo passou e o velho Anísio, homem pelo qual tenho a mais profunda admiração (embora já falecido), apresentou um quadro idêntico ao de Seu Artur. Procurou um médico em Seabra que lhe receitou algo que poderia chamar de uma “bomba”, usada para tratar cavalos e bois com quadro semelhante. Seu Anísio usou a “bomba”, mas o resultado não foi o mesmo que os cavalos e bois apresentavam. Não resolveu o problema. Usou de novo e nada; e seu sofrimento aumentava a cada dia. Dores atrozes lhe consumiam, desesperando a mim como amigo e ao médico de Seabra. Aí resolveu ir ao benzedor, e foi. Lá mesmo, no momento da reza, as larvas começaram a sair; no retorno ao lar, o mesmo se dava, e quando chegou em casa um número enorme de vermes esbranquiçados rolavam de seu nariz caindo ao chão e atraindo a atenção dos vizinhos, até que todos caíram e o velho se livrou da dor, ficando como seqüelas uma lesão no conduto lacrimal direito que ficou entupido e uma deformação no nariz.
Por quais, inda insondáveis mecanismos, estes dois homens foram curados? Não sei, mas quero saber. Como saberei? Todavia não sei. Mas observo e anoto. Aliás, as conexões entre as coisas e os eventos merecem reflexão, principalmente quando pensamos em saúde. O filho de Seu Artur era um jovem raro. Não tinha boa saúde e fiz de tudo para que mudasse determinados hábitos alimentares muito prejudiciais. Tinha as paredes da casa repletas de gaiolas com passarinhos, coisa que eu, particularmente, não via com simpatia, mas, paradoxalmente havia uma simpatia entre o jovem e os animais. Um dia recebi a notícia que havia sido levado de urgência para o hospital. Como era muito querido, várias pessoas estavam em sua casa, com seus pais, aguardando notícias. Foi assim que, em determinada hora (que mais tarde verificou-se ter sido o momento de sua morte), todos os pássaros engaiolados que até então haviam permanecido em silêncio, dispararam a cantar intensamente e, logo depois, silenciaram.
O mundo tem seus mistérios. O bom é que somos inteligentes, sensíveis e curiosos. Um dia descobriremos a razão destes casos que contei e então outros mistérios se manifestarão de modo que sempre teremos o prazer de ter algo mais a descobrir.
Escrevi este texto em 2007, por isso recebam um abraço pretérito de Aureo Augusto.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

SILÊNCIO DE NOVO

Silêncio, escrevi sobre isso outro dia aqui mesmo no blog. Semana passada me veio esta poesia:
HÁ SILÊNCIO
Há silêncio, mas só às vezes
Porque se o céu se ressente
Do excesso de azul e a luz
Condensa-se em calmaria,
A mente segue correndo
Transformando paz em azáfama
Categorizando coisas como se
Ruído fosse o dom do existir.

Por isso, que se faça o silêncio
E a mente possa fazer-se em paz.
Foi em um dia onde estava claro para mim a enormidade da quantidade de pensamentos que nos invadem. Ocorre-me às vezes que os pensamentos podem ser como morcegos hematófagos, vampirizando nossa energia. Porque, pensamos demais. Porque pensamos demais pensamentos dispensáveis, improdutividades. Ora, se tais pensamentos são fúteis, vazios, se não são criativos, se são mera repetição de vazios, então por que pensa-los?
Será que nós pensamos os pensamentos deste tipo, ou será que estas nulidades nos assaltam, vindas não sei de onde?
Claro, há tipos de pensamentos. Alguns nos trazem possibilidades. Criam realidades, animam o mundo, são parte de um processo de construção de novas realidades, idéias que têm real possibilidade de atualização no plano da existência material. Já outros apenas alimentam a si mesmos em uma circularidade que jamais alcança o mundo este aqui onde estou escrevendo.
Soube, há algum tempo, que entre os povos chamados por nós de primitivos o pensamento não é uma constante, sendo uma ferramenta usada apenas quando necessária. Sei que quando consigo ficar sem pensar por algum tempo isso me dá um repouso (que depois se traduz em vitalidade e criatividade) bem agradável. Porém isso é mais fácil quando me proponho em uma meditação, ou quando estou pintando, escrevendo ou trabalhando na marcenaria. Ou seja, em atividades que pedem concentração. Às vezes, em minhas caminhadas matinais, me proponho e consigo ficar no silêncio mental. Quando é bem feito, parece que o mundo fica mais presente, mas às vezes é como se estivesse dormindo, ou dormido; nesse último caso, não há atenção, não há presença... melhor seria ter ficado pensando!
Agora recebam um abraço silencioso de Aureo Augusto

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

PROTEÇÃO DA PELE

Esta postagem é em muito uma continuação da anterior e nela complemento o assunto 'pele'. Escrevi ambas há bom tempo, mas acho que permanecem atuais:

Meu pai foi militar do exército – na verdade os militares tendem a nunca deixar de sê-lo, por isso é melhor recomeçar: Meu pai é militar reformado e serviu nas forças armadas na época em que nenhum soldado ficava sentado no ônibus se tivesse algum passageiro de pé. Não sei se hoje em dia ainda é assim, se mudou, trata-se de mais uma perda para a civilização. Ocorre que o significado de servidor perdeu muito do seu sentido nos dias de hoje. Servidor é o que serve, um servidor público aí está para servir ao público, não para servir-se daquilo que é público (Ah! Se os políticos se dessem conta disso). Meu pai tinha uma senhora biblioteca, talvez a única no bairro pobre em que morávamos. E eu era assíduo freqüentador de suas prateleiras e foi daquela época que adquiri o vício da leitura. Como ele era assinante da Biblioteca do Exército Editora, me deliciei com títulos como Logística da Invasão e Os Blindados Através dos Séculos, de modo que ainda criança sabia como portar-me no caso de um combate nas ruas ou no campo. Talvez por isso, por perceber as agruras em que me meteria, não optei por tornar-me militar e dado ao pacifismo. Mas além da leitura guerreira, havia O Homem Através da Ciência de Nelson S. Mitke, Viagem à Terra do Brasil de Jean de Léry (o autor veio com Villegagnon quando este comandou a invasão francesa no Rio de Janeiro) e o livro de Guilherme Piso, História Natural e Médica das Índias Ocidentais, escrito durante as invasões holandesas a Pernambuco, quando as Índias Ocidentais, ali citadas, eram governadas por Maurício de Nassau. Neste livro ele comenta que os brasileiros (isto é, os índios) viviam desnudos e não podiam ver água que logo iam tomar banho, e eram muito sadios; já os europeus, que andavam cheios de roupas e evitavam o banho, estavam sempre com problemas de saúde. Esta leitura da minha adolescência marcou-me, bem como Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos de Gilberto Freire. Em um destes o autor assinala que os índios do Brasil começaram a apresentar problemas pulmonares na medida em que foram vestidos pelos jesuítas. Estas interessantes observações mereciam mais cuidado, pois elas apontam para o fato de que assim como a saúde da pele depende do (e evidencia o) estado do corpo, a cútis tem algum papel na saúde deste mesmo corpo.

Outro livro nos traz mais o que pensar. É aquele em que Charles Darwin descreve a sua viagem no Beagle. Quando o navio passava pelo Estreito de Magalhães, no sul da América, na confluência entre o Atlântico e o Pacífico, ele descreve o encontro com um grupo de índios que se aproximaram do barco em que ia. Nota, penalizado, que uma mãe amamentava o seu filhinho e a neve que caía se dissolvia em contato com seus corpos nus. Não percebeu o ilustre cientista que a mãe (tampouco o filho) padecia de frio. Quando vivi no Chile, tive a oportunidade de conhecer gente que estudara aqueles mesmos índios que Darwin avistou, os Yamanas, além de outros moradores da Araucania. Contaram-me que as mães quando iam dar à luz, acocoravam-se e deixavam que seus filhos saíssem do ventre direto para as águas geladas de algum lago ou do mar. Dessa maneira, frio não era algo desacostumado para aquelas crianças. Não imagino as conseqüências psicológicas deste costume, mas que era ótimo para a circulação cutânea, lá isso era.

Aqui, no Vale do Capão, onde moro, muitas pessoas andam em mangas de camisa, mesmo no inverno. O que para mim é frio, para elas é um fresquinho agradável. É que a minha pele careceu de exposição às intempéries como uma forma de educar a circulação sangüínea nela. Pessoas que se protegem demais (e as mães fazem isso com seus filhos, por amor e falta de conhecimento) acabam se tornando friorentas. Já aquelas que tomam banho frio todos os dias, que caminham com a pele exposta, tornam-na mais vigorosa. Que ninguém saia por aí dizendo que sugiro que as mães banhem seus recém nascidos em gelo. Porém insisto em que não protejam demais seus rebentos. Isso lhes beneficiará a pele e, como inferimos dos textos citados, trará também saúde ao restante do corpo.
Recebam um abraço profundamente cutâneo.