segunda-feira, 30 de julho de 2012

PACIENTE IMPACIENTE


As denúncias de mal atendimento do poder público à saúde são inúmeras e o mais das vezes fundadas em fatos reais. Aqui em Palmeiras vivemos uma situação triste no quesito saúde. Os motivos são muitos, e nem sempre a corrupção tem o primeiro lugar como causa de desserviço. Inoperância, descaso, manipulações eleitoreiras, tudo isso tem o seu papel. Além da prefeitura, muitos funcionários não entendem claramente qual deveria ser o seu comportamento como servidores públicos e dão sua triste contribuição para que a população sofra. Porém hoje quero comentar algo relacionado com a pessoa a ser atendida, que também acaba por tratar mal a si mesma.
Há aqui uma mulher que acompanho há muitos anos e sempre me preocupou. Ela é simpática e desleixada com a saúde. Mais de 10 anos atrás quando tentei mostrar para ela o risco que corria pelo fato de ser jovem e hipertensa ela foi bastante debochada, usando frases do tipo “todo mundo um dia morre”. Aliás, tomou a mesma atitude com um colega, Dr. Ricardo, que acompanhou-lhe uma das gestações, e também se preocupou com a hipertensão (que na gravidez é algo sério). O tempo passou e outros médicos também se preocuparam e ela continuou descontinuando o uso das medicações...
Como esperado tudo foi piorando. Seu sofrimento fez com que voltasse a atenção para si mesma. Porém, em que pesem as admoestações do pessoal da saúde, nem sempre, ou quase nunca segundo a agente comunitária que a acompanha, seguia com rigor as recomendações dietéticas e medicamentosas.
Recentemente fortes dores de cabeça a fizeram vir ao posto. Por alguns dias tentei debalde, usando diversas medicações, reduzir os níveis tensionais de modo que a encaminhei para internação. A prefeitura providenciou transporte e internamento. Chegando à clínica, o cardiologista fez uma medicação e pediu que esperasse para verificar se seria necessário mesmo o internamento. Ela então aproveitou o transporte grátis para fazer compras em Seabra e retornou pra casa sem voltar na clínica.
No domingo encontrei-a na feira, ainda com dor de cabeça. Ela sempre se queixa dos políticos, e da prefeitura; muitas vezes disse para mim que tentou fazer os exames que eu solicitava, mas não conseguiu, pois não dispunha de recursos e tampouco do apoio da prefeitura. E agora?
Recebam um abraço de Aureo Augusto.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

DO DESESPERO AO DOMÍNIO

Hoje uma jovem mulher veio à consulta. Há anos, era uma criança que gritava todo o tempo, quase não falava. Havia um desespero nela. Mesmo assim um rapaz se interessou por ela e casaram. Ele é um bom homem, mas é um bom homem com todo o ranço de séculos e crê e age do jeito de que a mulher deve apenas obedecer e seu gosto, o gosto da mulher, não é algo a ser levado em consideração – pensa, e há sinceridade nisso, que o mundo ainda é regido pelo mesmo motor que moveu aquele em que seu pai viveu – e vive. O tempo passou e ela cresceu. Um dia, procurou-me para uma consulta. Sua queixa foi inusitada. Dizia que havia reconhecido em si um tormento e que ela estava destruindo o próprio casamento. Explicou-me que seu marido, apesar dos conceitos era (é) uma boa pessoa, e que as dificuldades matrimoniais não dependiam necessariamente do comportamento dele, mas era mais, do desespero dela, prévio ao casamento, que lhe impedia agir com calma e pensar, que lhe impingia uma maneira de viver aos gritos que era o mesmo viver de sua mãe.

 Nos últimos tempos ela havia descoberto o espiritismo – me disse – e a custo estava começando a conseguir pensar, e foi assim que descobriu que precisava sair daquele desespero que a acompanhava desde criança. Conversamos um bocado e propus que lesse o Evangelho todos os dias em uma determinada hora. Quis que pelo menos uma vez por dia, regularmente, sua mente aquietasse em algo. Ela fez. Meses depois nunca mais sua voz se tornou esganiçada e gritante. Eu mesmo não esperava tal resposta.

 Engravidou e como o mundo ao redor não acreditava tanto assim na sua mudança me alertava que eu sofreria no seu parto – que seria um escândalo. Penso que as pessoas ao redor perdem referencias próprias quando as referências do outro mudam, pois referenciamo-nos também no outro (para o bem e para o mal), daí mudar é romper consigo e com os demais... E pariu um parto tranquilo e bonito. E também cuidou do seu filho com uma competência inesperada. Hoje entrou na sala com gotas de suor brilhando na ponta do nariz, como sempre, apesar do frio. Havia um sorriso matreiro nela. Então anunciou-me a gravidez nova. Sorrimos e fiz festa. Então comentei que seu marido deveria estar feliz. Ela riu bastante e disse que ele não queria e ficou muito aborrecido porque ela o enganou, fingindo que estava usando a “pílula”.

 - Mas não se preocupe, disse, em poucos dias ele ficou bem, e começou a me tratar muito bem para me agradar, pois estava arrependido. Percebi que aquela menina agoniada que conheci, tinha em suas mãos o marido machão, por artes cujos instrumentos eram variados, desde submissão até uma forma de rebeldia simpática. Ainda não consegui entender tudo o que ela tem a me ensinar, mas se já a admirava, agora muito mais.

Recebam um abraço admirado de Aureo Augusto.

terça-feira, 10 de julho de 2012

O MORIBUNDO, o MÉDICO, o PASTOR, e MONTAIGNE

Quase todos os dias, antes ou no final do expediente, tenho ido visitar um homem jovem (35 anos) que está morrendo aos poucos com um câncer devastador que lhe causa grandes incômodos. Já está desenganado. O médico em Salvador foi muito claro ao lhe revelar que não há mais possibilidades de recuperar-se do grave trânsito pelo qual está passando. Hoje quando estava conversando com ele chegaram alguns representantes de uma corrente cristã evangélica. Dois homens, um pastor e um cantor, e uma mulher, vieram dar-lhe conforto espiritual.

O pastor falou muito insistindo que ele pode se salvar na dependência de sua fé. Algumas vezes disse que estava também nas mãos de Deus e que este, no final decidiria. Em dado momento exaltou-se e olhou para a esposa do moribundo e apontando-lhe com o indicador disse que ela tinha em sua família um “espírito hereditário de doença”. Naquele momento dentro do quarto se instalou um clima bem estranho, havia uma exaltação de emoções, uma energia, uma vibração bem forte, porém francamente (a meu ver) associada ao estado do próprio pastor, que repercutia na chorosa esposa. Por fim ele foi bem claro ao dizer que dentro de mais alguns dias não mais haveria um doente naquela casa. O oráculo foi claro. Também acho que dentro de mais alguns dias não haverá mais um doente naquela casa. Ou Deus vai agir e o cara vai estar curado, ou Deus vai agir e o cara já não estará entre nós.

A questão é que percebo um clima no qual Deus vai salvar o sujeito. Fico me perguntando o que é salvar. Será que salvar é alcançar um estado (que já vi em outras pessoas em estado terminal) onde haja uma paz redentora no confronto final com a morte? Ou será que salvar é apenas e unicamente a recuperação total do corpo físico? Lembrei-me de um dos ensaios de Montaigne no qual ele lamenta que muitas pessoas só acreditam em Deus na medida em que este age de acordo com o desejo de quem diz crer. A pessoa afirma com todas as letras: Deus é grande, pois eu lhe pedi tal coisa e ele me concedeu. Montaigne pergunta: E se ele não tivesse concedido, deixaria de ser grande? Fiquei pensando na certeza do pastor, que contou diversos milagres que testemunhou e que ocorreram graças ao poder de Deus, que por sua vez interveio por obra das suas orações. Não sou dado à descrença, conquanto não seja uma pessoa de fé. Porém olhei a cena com certa estranheza.

O quarto, o homem pálido, macilento, esquálido e triste, os filhos pequenos atônitos, o irmão alheio, a esposa contrita e sofrida (será viúva pela segunda vez – a menos que a intervenção tenha como resultado o seu desejo), os religiosos tomados por uma fé, diria, medieval, e eu, olhando e ao mesmo tempo participando com o coração contrito. Eu estava contrito, pois procurei encontrar aquele Mistério que nos une a todos no sofrimento, ou seja, no ato (como diria Ralph Blum) de estar submetido às contingências da Terra, deste mundo. Saíram todos e por fim eu e a esposa do rapaz enfermo.

Olhamos o céu do entardecer e alertei-a para o dourado que a luz assinalava em casa coisa, realçado pelo céu plúmbeo agourando chuva. Ela sorriu triste e me falou de esperança e de redenção. Saí caminhando pela vila e logo a palpitante vida me fez notar que o mundo está estranhamente girando apesar de que naquela casa, o Universo parou à espera de um milagre – mas não podemos nós os seres humanos determinar egocêntricamente que milagre é este que acontecerá. Esperemos.

 Recebam um abraço pensativo de Aureo Augusto.

domingo, 1 de julho de 2012

VOLTANDO

Desde ontem comecei a retornar ao lar. Hoje estou em Salvador, sofrendo os efeitos da longa viagem de avião através diversos fusos horários. O corpo cansado e uma discreta confusão mental. Dirigindo o carro em Salvador e vendo as pessoas, todas brasileiras! Antes de ontem entrei em uma loja e a balconista me perguntou de onde eu era. Como sempre aconteceu neste tempo de Inglaterra, ela abriu um largo sorriso ao saber que sou brasileiro. Quanto a ela, vinha da Eritréia, área situada no corno da África, bem perto do Iêmen. Vou ter que me acostumar de novo à pouca diversidade do Brasil! Aqui as coisas não mudaram muito. Na casa de minha mãe a família reunida ao redor da fogueira de São Pedro, risonhos, apesar e até por causa das lembranças que meu pai deixou. Mas não foi ele o tema principal, o que se comentou mesmo foi o tempo na Europa. Como é, como foi, o quanto de gente e de novidade, porque será e aonde chegará este mundo tão diferente... O mundo é feito também de novidades e línguas estranhas, até porque cada pessoa é em si um mundo per si, por mais conhecido, estranho aos demais, por mais acostumado, um ambiente a ser desbravado, descoberto. Recebam um beijão de Aureo Augusto.