sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

DOS VÁRIOS FINS DE MUNDO


O fato é que morri muitas vezes e renasci, dito melhor, reencarnei, nesta minha vida. Lembro-me de quando era jovem, um rapaz tímido tentando encontrar o próprio lugar no mundo (como se fosse fácil, e nem sempre é). Foi uma vida de percalços e dores, além do mar e das traquinagens. Até quando descobri o naturismo, fui ao Chile, vivi por lá um pouco, descobri dentro de mim uma força e uma coisa selvagem capaz de correr pelas encostas da cordilheira, rolar nas serras e saltas pelas pedras no rio Clarillo (perto de El Arrayan). O tempo passou e construí e desconstruí muitas coisas.

Aos quarenta anos, uma noite me veio uma dor abdominal extrema. Foi atroz e eu não entendo até hoje de onde veio (nem para onde foi). No dia seguinte viajei para Salvador e não conseguia entender porque as pessoas continuavam conversando comigo como se eu fosse a mesma pessoa. Não era. Havia morrido e agora reencarnara no mesmo corpo que, por sua vez, passara também por um trânsito difícil.
Esta nova encarnação foi mais plácida, e nela ocorreu aos poucos uma ascensão de uma racionalidade capaz de eclipsar em alguma medida aquilo em mim capaz de loucuras, conquanto o meu lado selvagem (e tantas vezes infantil) tenha sabido perturbar a calma de um mundo como um lago nas montanhas. 

Agora estou de volta às voltas com a morte e o mundo se acabou. Em 2012 meu mundo se acabou. Não foi de uma vez, foi aos poucos e de repente desabou, como uma ponte comida pela ferrugem e que uma brisa mais forte faz tornar-se farpas e bagaços. Caiu. As lágrimas presentes são apenas mais um elemento de corrosão. As lágrimas são como o mar, cuja maresia reforça o intemperismo dos ventos e das ondas. Por isso quando choro, nas vezes que choro, sei que o mundo está mudando mais rápido.
Agora , confesso que com um certo quê de diversão, vejo as pessoas me tratando como se eu fosse aquele mesmo de há alguns meses, apenas porque me vêm saindo para trabalhar e voltando todos os dias. Creem e enganam-se os olhos. Não sou mais o mesmo e noto em mim sensações e sentimentos que retornam de uma outra encarnação passada. Impulsos e forças, sensações para além da pele, pulsões, impressões cutâneas e corporais, como se o mundo lá, decidisse avisar-me de que está cá. Abraços e sorrisos, tudo muito dentro e profundo. Ininteligível.

Olho para o novo momento e não sei bem o que vai acontecer, coisa que não me preocupa demais a ponto de perder o sono, até porque sei que continuarei a tomar banho no rio todas as manhãs e amando atender em consultas a minha adorada gente. A única coisa que me faz falta é sabedoria. Neste instante seria muito bom se contasse com sabedoria.

Pergunto-me, como agiria um homem com 60 anos, como eu, percebendo-se recém-nascido, sentindo em todo o corpo as vibrações, a curiosidade e as interrogações de um recém-chegado sendo ele dotado de sabedoria. Como seria para ele? Esta é uma pergunta para a qual não tenho resposta.
Em 28/12/12.

sábado, 22 de dezembro de 2012

UM DIA MUITO ESTRANHO


Hoje foi um dia muito estranho! 22 de dezembro, sábado, meu desejo de ir a Salvador, comprar os presentes do natal e depois partilhar este período com meus familiares, especialmente minha mãe, uma mulher muito especial, contando agora 92 anos. A festa de natal é o momento em que nos reunimos todos e, por sermos uma família inclusiva, vizinhos, amigos, gente que nem conhecemos direito quer participar do amigo secreto como se fosse parente nato. Rimos a mais não poder, gozamos a cara um do outro, e assim nos alimentamos dessa coisa de ser família, reconhecendo os grandes defeitos, mas também saboreando a deliciosa realidade.

Saí de casa às 5h. Mais tarde do que o previsto, mas tivera que trabalhar na noite anterior, em um texto e também atendendo um jovem acidentado com moto. Ao sair dirigindo estava com o coração apertado. Normalmente quando viajo fico leve e contente. Dessa vez tinha o coração apertado e procurei justificativas para isto, tendo encontrado muitas, mas nenhuma de prova clara. Quando estava nos Campos, área logo depois da subida, na saída do Vale do Capão, tive que parar. As nuvens estavam com formas bem estranhas. Gigantescas aves, algumas desenhadas apenas como asas abertas, outras com cabeças e rabos bem delineados, feitas de nuvens se deslocavam no céu, saindo do norte e rumando para o noroeste. Eram imensas e voavam tranquilas. Em seguida, uma nuvem de cor dourada, parecendo vagamente uma ave de rapina, mergulhava sobre uma área que conhecemos como Boqueirão. Estas nuvens não se demoravam muito, tampouco se transformavam, em geral simplesmente se dissolviam, de modo que as gigantescas aves eram substituídas por outras. Depois apareceram riscos delicados (também feitos de nuvens filiformes) parecendo desenhos de montanhas, que duraram cerca de um minuto. Por fim voltaram as aves, desta vez se deslocando do oeste para o norte. Atrasei pelo menos uma hora da viagem observando este movimento nos céus.  Durante o processo lembrei-me que poderia fotografar, mas infelizmente não ficaram boas, até porque só tirei as fotos nos momentos menos marcantes. Quando tudo terminou segui viagem, com o coração menos angustiado. Tive a sensação de que as aves eram uma mensagem de caráter positivo.

Após bom tempo sem nenhuma intercorrência, comecei a ter a sensação da proximidade da morte. Foi forte. Senti-a rondando. Minha mente resolveu divagar na busca do por que desta sensação. Associei a minha mãe, afinal ela já está bem velhinha e sempre fala que só está aguardando o momento final. Meus olhos marejaram ao pensar na despedida. Pouco depois, a uns dois quilômetros da localidade de Amparo/Zuca, encontrei um acidente. Havia um grande caminhão afundado na lama ao lado da pista, como se tivesse o motorista perdido o controle. No afã de ajudar parei o carro e encontrei um homem que olhava outro que afundava na lama indo na direção da cabine do caminhão. Aliás, esta era a única parte reconhecível. Todo o resto havia se transformado em uma massa retorcida. O homem me explicou que o motorista estava dentro da cabine, mas aparentemente não estava mal. Indicou-me mais adiante um carro de passeio e informou que havia alguém preso nas ferragens. Corri preocupado. No caminho havia um homem deitado dobre o lado direito, como se dormisse placidamente. Algumas pessoas olhavam sem nada fazer, pareceram-me aparvalhadas. Um me disse para não toca-lo porque havia que esperar a polícia. Não obedeci. Mas constatei que estava morto. Os olhares me perguntavam e respondi: “Este está morto, tem algum outro?”. Havia transcorrido um ou dois minutos do acidente e havia aquele cheiro estranho de óleo, poeira e sangue. Apontaram-me o carro e corri até lá. Havia alguns homens sujos de sangue, andando a esmo (depois descobri que eram os ocupantes do veículo de passeio que não haviam sido feridos ou mortos) e outros, curiosos. Estranhei o aparvalhamento das pessoas. Estavam estranhamente calmas, como se ali nada de terrível estivesse passando. Aproximei-me do carro. Nele, todo o lado esquerdo estava arrancado; e o motorista pendia inclinado para fora do carro, em uma posição bem desconfortável. Ambos os braços mostravam sinais de múltiplas fraturas, a perna esquerda expunha-se em postas de carne sanguinolenta, o sangue escorria para o chão em gotejamento contínuo. Havia também sinais de que havia recebido forte golpe na cabeça que sangrava. O sangue também escorria pelo nariz e o homem, um sujeito enorme, bem forte e acima do peso, arfava com dificuldade enquanto agonizava.

Pedi ajuda para retira-lo do carro, mas os amigos que escaparam com vida foram bastante claros em suas afirmações de que havia que esperar o SAMU. Haviam pedido a um motorista que avisasse mais adiante. Eu não entendi nada. Disse que aquele homem estava morrendo, mas que talvez pudesse ser salvo, mas deveríamos tira-lo dali, eles recusaram ajuda. Debalde tentei afastar os restos retorcidos do carro que impediam a liberação do homem. Após cerca de quinze minutos de luta solitária chegou um motoqueiro que começou a gritar e ordenar. Conseguiu um pedaço de pau e arrombou uma das portas do lado direito do carro (que eu havia tentado abrir em vão), e tentou afastar o banco para liberar o homem. Então percebi que a morte havia cobrado sua fatura. Disse a ele que agora não adiantaria mais nada, mas ele não acreditou, continuou tentando salvar o morto. Fui saindo devagar uma mulher me interpelou: “Ele morreu?”. Respondi: “Acaba de falecer”. Ela correu para o carro, onde estavam seus familiares que não haviam ainda saltado e pegou uma máquina fotográfica e começou a registrar o acontecido, como suas primeiras fotos do passeio turístico natalino.

Achei tudo muito estranho, surreal. Conscientizei-me de que ali o ar era denso como se os movimentos fossem tolhidos por uma coisas espessa.

Ao chegar a Salvador, fui fazer as compras costumeiras, afinal meu amigo secreto espera seu presente, apesar do demais; sinto-me cansado e estranho. Amanhã acordo para outro dia.

Recebam um abraço pré-natalino surreal em 22/12/12.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

SAÚDE LOGO MAIS NO ANO NOVO

Tive a honra de ser convidado para falar na abertura do Projeto Gestar em Seabra e assim partilhei uma noite com Braulino Peixoto. Ele fez uma palestra tocante e que nos fez pensar e também fiz a minha, cujo texto aí está:

SAÚDE FUTURA
Por onde devemos começar quando pensamos na semeadura do futuro? Com certeza podemos nos perguntar como queremos este futuro. Acredito que as frases batidas e repetidas quase mecanicamente expressam o nosso real desejo: Feliz Ano Novo! Para vocês desejo feliz ano novo! Simples assim. Queremos que o próximo momento seja feliz.

Quando uma ameba entra em contato em seu ambiente com algo irritante ela daí se afasta. As raízes das árvores, no escuro úmido da terra, desenvolvem-se na direção das mais ricas fontes de nutrientes. Os cachorros e os gatos querem encher as barrigas e se deitam relaxados e... felizes, “quentando” o sol após sentirem cheios seus estômagos.
Não somos diferentes dos demais seres, nós, seres humanos, também buscamos o prazer, a felicidade, enfim, estados aprazíveis de estar no mundo. Porém, nós os seres humanos temos crenças. E, tais crenças frequentemente são para nós mais importantes do que qualquer dado inequívoco da realidade. Vai daí que subordinamos o existir a uma sequência cuidadosamente elaborada de situações complicantes capazes de afastar aquele feliz ano novo. Conto uma história recente:

A moça chegou no consultório do posto um pouco desesperada porque transou sem camisinha (foram suas palavras). Descobri com as perguntas que o rapaz era desconhecido. Ela estava carente (disse). Só pra saber, pois sou um tipo curioso, perguntei se havia acabado a carência, mas ela me disse que depois do ato a carência ficou esquecida, pois agora estava preocupada com outras coisas (como doenças venéreas, por exemplo). Somos seres extraordinários em nossa competência de substituir merda por bosta! Ela encontrou um bom método de não se sentir mais carente. Mas mais infeliz! Depois me contou que o mundo é complicado (também copio o que falou). Acredito, já que sou bem crédulo como podem testemunhar aqueles que me conhecem de perto.

Já fiz mais besteira em minha vida do que todas pessoas que estão na primeira fileira desta sala somadas, e vou fazer mais, por isso não critico a moça. Porém, coube a mim, naquele instante (e já que era procurado por ela para aconselhamento) tratar o fato para além de uma possível (e desagradável) doença venérea. Acontece que ela realmente não tem uma gota de amor por si. Gosto de estar com as pessoas que amo. Parece que isso faz parte de um atavismo gregarista da espécie humana e, é sobre isso que quero que conversemos hoje, dentro desta coisa de Feliz Ano Novo.
Dizia que gosto de estar perto de quem amo. Quando estou sozinho, o padrão é estar particularmente feliz. O corolário das duas afirmações é lógico:
A: gosto de estar com quem amo.
B: gosto de estar só.
C: Amo a mim mesmo (A≈B e B≈C => A≈C)
Mas esse negócio de amar é complicado, diria aquela cliente. E é mesmo. Não sei vocês, mas eu tive que labutar para olhar para o mundo com prazer. Felicidade pode ser uma falácia. Não dá para ser feliz sem olhar-se com um mínimo de carinho para si. E não adianta colocar substitutos tais como: festas e farras, dependência de amigos, trabalho, vagabundagem, riqueza, comida, pobreza, vitimização, política, poder e coisas assim. O buraco que abrimos na relação de nós conosco mesmos não será sequer minimizado por estas coisas.

Gosto de ter dinheiro dentro do bolso, pelo menos R$50,00. Andar de bolso vazio é bem chato. Também amo ir pro trabalho e ali exercer a minha competência para atividade, mas se não houver amor (Paulo aos Coríntios) a coisa não rola. Claro que não acho que podemos ser felizes sem nenhum dinheiro, com fome e frio e cheios de amor pra dar... mas se não houver amor...

Podemos criar para o futuro um mundo de obrigações, um mundo de deveres. Ou (e acho bem melhor) cuidar de que o futuro nos brinde com responsabilidades às quais respondamos – como o nome indica – com alegria e competência e poderia dizer com a competência da alegria.
Pode parecer estranho, mas este é um primeiro passo para a saúde, buscando um Feliz Ano Novo ou um futuro melhor. Por isso pensemos em cuidar de nós mesmos com carinho. Busquemos o prazer, mas tenhamos o cuidado de que o prazer que escolhemos não nos represente problemas futuros. Quando gosto muito de feijoada completa com toicinho e mocotó, pelo menos posso cuidar de não comer isso com demasiada frequência já que sei (sabemos) que não é bom para a digestão, para a circulação etc. Outrossim, façamos atividade física e mental. Há que mover o esqueleto, na dança, na roça, na caminhada, machado ou enxada. Desafiar a mente. Jogar longe de si a preguiça de não aprender coisas novas. Eliminar a rotina sem perder a disciplina... Algumas coisas há a fazer, mas sem esquecer o prazer de fazê-las. Não esquecer que cada ato é estético, ou seja, repercute em nós (e no outro).

O psicólogo Abraham Maslow estudou as pessoas felizes. É muito interessante o fato de que nós os que cuidamos da saúde estudamos muito mais a doença do que a saúde. Isso é algo parecido a apontar a pedrada para a jaca quando queremos derrubar uma manga (melhor seria usar um corrupichel!). Maslow seguiu outra direção: procurou os felizes e descobriu que esta turma consegue unir de forma satisfatória o egoísmo com o altruísmo. Ou seja, são pessoas que se comprazem em ajudar aos demais, gostam de trabalhos comunitários, estão prontos para reduzir o peso das outras pessoas, mas têm claridade quanto ao que querem da vida, do prazer a receber e não abrem mão de lutar pelo que consideram próprio.
Somos individualidades e não há mais como abrir mão disso. Mas também somos parte de um todo, somos divíduos (termo usado por Joseph Campbel). Você quer que seu ano próximo seja melhor? Você quer que seu futuro possa ser feliz? Então leve em consideração o fato de que

1.       Não há possibilidade de estar fora do mundo, à parte, algo destacado, longe. Toda atitude que tomamos repercute no mundo natural, assim como tudo aquilo que acontece lá fora nos atinge a nós, como parte deste pseudo lá fora. Nós temos uma responsabilidade com o planeta, com o Universo, com a sociedade. Os cadeados nas portas nos protegem dos ladrões, mas em quanto nós contribuímos para que aconteçam ladrões? Viver no Vale do Capão me garante ar puro, mas por quanto tempo? Quando a devastação do meio natural para satisfazer o meu egoísmo chegará à barra da minha porta? Não estamos lá, somos aqui.
2.       Somos uma equipe. Nós e aquilo que chamamos de restante de todas as coisas, na verdade somos uma equipe que funciona integradamente para que a vida siga em frente. Mas, de maneira mais limitada, aqui no mundinho de nossos trabalhos, na vida comum, somos uma equipe. Sou médico, mas não posso trabalhar sem as pessoas que secundam minha ação e vice-versa. Certa feita escutei a história de um famoso palestrante norte-americano. Ele havia sido aviador e seu avião foi abatido no Vietnã. Sofreu o pão que o diabo amassou, mas foi resgatado e a partir desta experiência passou a fazer palestras muito apreciadas sobre superação. Um dia estava em um restaurante e um sujeito veio até ele, por tê-lo reconhecido. Comentou que o admirava muito, escutava suas palestras e lia seus livros. Disse também que tinha sido seu colega em um porta-aviões da marinha dos EEUU. O palestrante perguntou-lhe o que ele fazia e o humilde interlocutor disse que ele era quem lhe dobrava o paraquedas. De repente o cara se deu conta de que aquele sujeito ali na sua frente lhe havia salvo a vida pois cuidara do seu paraquedas sem o qual morreria quando da queda do avião. Ninguém pense que pode viver só. A comida na mesa aqui chegou por conta de inúmeras mãos anônimas. Assim todas as atividades em que nos metemos.

Aqui me vem à lembrança uma frase proferida por Jesus Cristo.
Certa feita lhe perguntaram (v. Mateus XXII, 36 a 40) qual era o maior de todos os mandamentos. Ele respondeu que era Amar a Deus Sobre Todas as Coisas e completou “e o segundo, semelhante a este é Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Vejam que coisa interessante! Ele compara e equipara o amor a Deus ao amor que devemos ter pelo próximo. E reafirma que devemos amar ao próximo como a si mesmo. Não é colocar o outro acima nem abaixo, entenda-se. Em realidade só amo ao outro na medida em que sou capaz de amar a mim mesmo, senão a coisa fica meio na obrigação. Fazer o bem sem sentir alegria, é como dar um tiro no próprio pé. Penso que esta fala de Jesus é científica e isso está claro quando hoje entendemos que o mundo é um vasto ecossistema.

Pois bem, penso que este é o grande mote para o próximo ano. A Humanidade está se encaminhando para a constatação de que o individualismo enquanto degeneração da nossa consciência da individualidade perde-nos de nós mesmos. Pensando que estamos tirando o melhor proveito, na verdade estamos nos afastando do melhor que temos. Gilberto Gil dizia que “minha porção mulher que até então se resguardara é a porção melhor que trago em mim agora” e ele tem razão, mas lembremo-nos que esta porção também pode receber o nome de “o outro”. A porção melhor que trago em mim agora são vocês.
Aureo Augusto, em 13/dez/2012.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A ASSOCIAÇÃO DOS MEDÍOCRES


Às vezes é difícil trabalhar. Refiro-me a fazer aquilo que deve ser feito, mas fazer de uma forma mais completa e cuidadosa, se possível usando da criatividade para transformar o usual e corriqueiro em algo interessante e único. É delicioso para a alma, olhar as pessoas e construir caminhos onde haja interesse em fazer a vida ser vivida para além da subsistência. Porém, nós os seres humanos, graças à nossa tremenda complexidade, além de sermos tocados pelo desejo de ir além, também temos o hábito de ficar aquém. Não creio que devamos viver sempre atrás de superar obstáculos, ou crescer sempre, subir sempre, avançar sempre. Estar aqui e agora é mais do que suficiente. No entanto, aqui e agora é viver além da subsistência, uma vez que obriga-nos à atenção. Ligar-se intimamente ao existir (ou, dito de outra maneira, viver o aqui e agora) é um exercício que nos faz viver, pura e simplesmente, mas paradoxalmente, implica-nos no ato de estar além do cotidiano. Viver o aqui e agora poderia pressupor postura passiva. Longe disso, implica atividade, sem que isso obrigue à tensão psíquica, registre-se. Ou seja, viver implica ir além, do contrário apenas subsiste-se.

                Esse introito é para comentar de uma frase de um querido amigo, o filósofo Taunay Daniel. Ele comentou que os medíocres se aliam para mediocrizar tudo ao redor. E é verdade. No funcionalismo público isso é tão frequente que parece norma. Quando uma pessoa chega ao serviço, “cheia de gás”, disposta a corrigir imperfeições, alinhar condutas para maior otimização de resultados, logo encontra resistências. Quando explícitas, tais resistências podem ser contornadas, ou superadas, porém as piores são aquelas disfarçadas. O chefe fica feliz ao receber daquele funcionário uma proposta que com certeza irá superar resultados deficitários. Mas, por infelicidade, as coisas acabam não funcionando como deveriam. Em suma, por razões insuspeitas simplesmente as novas propostas não acontecem. O novo funcionário tenta, tenta mais e mais uma vez. Até que passa a acreditar que não tem jeito e adere ao padrão de bater o ponto, atender mal, deixar que se aproxime o tempo da aposentadoria.

Esta é uma história que se repete. E uma infinidade de pessoas presta concurso nos diversos ramos do serviço público com o intuito de encontrar a estabilidade sem perceber que isto é apenas a garantia da subsistência. Não garante o viver. E viver não é uma coisa só de fim-de-semana. Passamos a maior parte do nosso tempo no trabalho. 8 horas por dia, no mais das vezes. É muito tempo para imaginarmos que a vida só acontece do lado de fora das paredes do escritório, do consultório, da fábrica... Cabe a cada um transformar o labor em uma fonte de realização. Isso é fácil? Nem sempre.
Tenho a sorte de ser médico. E nessa profissão a oportunidade de realização é diária, em que pesem os numerosos momentos tensos, tristes, apesar dos fracassos, às vezes decorrentes menos da gravidade ou da insolubilidade dos casos do que das condições sócio-econômico-burocráticas. Mas não apenas a medicina nos proporciona realização.

Uma das pessoas que atendi e que me marcou profundamente foi um homem que era caixa de banco e gostava de ser caixa de banco. Veio à consulta por curiosidade da filha já que não tinha queixas, gozava de boa saúde e levamos bom tempo conversando sobre o como ele gostava de olhar no rosto as pessoas que atendia, perguntar como se sentiam e naqueles poucos minutos em que faziam um depósito ou retirada e pagavam uma conta, descobria singularidades das vidas dos demais que lhe enriqueciam o dia. O resultado disto é que a fila em seu caixa era sempre maior do que nos demais, porque as pessoas preferiam ser atendidos por ele. É dessa maneira que atuam aqueles que não são medíocres.
Está bem, você talvez deteste o seu trabalho e não necessariamente é medíocre. Porém olhe ao redor, pode ser que esteja excessivamente ligado nos aspectos negativos da existência. E pode ser que você tenha sido vítima do sistema de mediocrização:

Os infelizes que chafurdam na agonia de uma vida sem perspectivas além da mais rasteira subsistência, um sem número de vezes atuam no sentido de atrapalhar àqueles que cultivam a vida. Penso que o fazem porque carecem de mais gente igual a si, para significar mais fortemente a própria irrelevância. Ou porque quando alguém é vital, acaba sendo um contraponto que denuncia a mediocridade disseminada. Também o medíocre teme que se o outro se destacar poderá por em perigo o seu emprego, o seu cargo, o poder relativo que dispõe em dado momento. Podem ser estes os motivos e outros devem existir. A tristeza é que a associação dos medíocres contribui significativamente para atrasar-nos enquanto humanidade.
Os medíocres não estão apenas no serviço público, mas ubiquamente os encontramos em todos os lugares; entre os políticos são maioria absoluta, encontramo-los também no meio intelectual, entre os alternativos, os profissionais, alguns são materialistas convictos, outros espiritualistas radicais, tem os religiosos e os ateus, torcem por diversos times, mas mantêm-se fiéis ao estado anódino.

Não é uma vida fácil, porque falsa. Sofrem silenciosamente todos os dias. Vivem como se estivessem entrevados, amarrados no pé da mesa, como as crianças traquinas de antigamente. Há tanto tempo amarrados que perderam a traquinice. A única forma de labutar contra esta subversão da vida é ativamente buscar a felicidade, colocar atenção em cada coisa e tirar das coisas o que puder de sentido, sensação e prazer. A dificuldade reside no fato de que somos todos, em alguma medida, medíocres. Uma parte de nós é medíocre e está aí, de tocaia, pronta a dificultar nossa luz. Mas, todos nós, do mais medíocre ao mais genial, somos luz!
Recebam um abraço vital de Aureo Augusto

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

FRIA DE SAL e MEDICALIZAÇÃO

O texto que se segue, escrevi-o há muito (em 2008), em um novembro quente e incendiário, relendo-o gostei da ideia de partilha-lo. Aí vai:

Hoje o sol não se mostrou como nos dias passados de calor como nunca! Insinuou-se na madrugada uma mentira de frio, mas logo a manhã não economizou forno. Crestada a vegetação olha pra cima e se arrasta no chão. Mesmo a gente está cansada da borra quente que sopra à passagem dos carros na estrada, das motos enlouquecidas, dos cavalos e pedestres.
            Nunca vi calor como o que tem rolado no Vale estes dias!
            O povo assevera que isso é sinal de que o que falam dessas coisas de calotas polares que se vão e buraco na camada de ozônio que cresce (ou crescia) “né mintira não”. E o resultado, são os incêndios se espalhando, horríveis e belos, marcando a noite com sua linha luminosa. Uma coisa assim como um colar de gemas rubras ou amarelas cercando uma área negra estrelada. A beleza pode ser cruel. A beleza não tem moral, mas o coração sofre às vezes apesar da beleza. Alguém já deve ter dito isso.

            Mas o legal foi o que uma senhora me disse outro dia. Estava eu preocupado com a pressão arterial dela, muito alta. Ela disse que podia ser o calor, mas me disse também que quando morava em São Paulo (o povo nativo ia muito morar em São Paulo e agora está voltando todo mundo) sempre a pressão estava alta. Mesmo no frio! Mas me assegurou que sua alimentação era o contrário da serra ardente, era “fria de sal”. Acreditei nela, pois quem não confiaria naquele rosto amarrotado pelos anos. No entanto, procurei ver como estava sua alimentação e comecei a investigar os temperos. Acabei aprendendo que ela usava caldo de galinha ou de carne, cujo conteúdo em sal não é desprezível, acrescentava tempero pronto industrializado cujo teor de sal é impressionante e muitas vezes com glutamato monossódico que é 4 vezes mais hipertensor que o sal. Como se não bastasse ela botava um pouquinho de sal puro para “batizar”. Eu já estava horrorizado, mas aí ela ainda me informou que todos os dias saboreava uma gostosa carne de sol... Horrorizada ficou ela quando eu fui lhe mostrando um a um o teor de sal da sua frieza de sal. Brinquei que no calor que fazia, a comida dela estava mais pra água do mar do que pra rio da Chapada. Ela me olhava entre crédula e rebelde. Penso que ela sabe que tenho razão, mas não quer. E é direito dela não querer, que arque com as conseqüências então. Isso é sério e belo. Somos responsáveis pelas decisões que tomamos. O que levaria uma terna senhora a não seguir as recomendações, conquanto muito bem explicadas, justificadas? Apegos, descrença, outras crenças. Ela vem de São Paulo onde o médico do posto onde era atendida, nunca lhe falou assertivamente da necessidade de alterar a alimentação. Para ela as medicações tudo podem. Resolvem. Resolvida, para que sacrifício? Este é um dos erros desta medicalização tão freqüente em nossas vidas: Sub-repticiamente, quando não ostensivamente, informa-se que é possível não se responsabilizar.

A medicação cura o diabetes, ou a hipertensão, ou a bronquite... O tratamento afigura-se como um jogo entre o arsenal terapêutico e a entidade mórbida. Tais termos informam quanto às crenças que nos movem. Cuidar da saúde pode ser uma guerra contra um fantasma peçonhento. Seremos salvos pelo exército medicamentoso! Mas, e se não for uma guerra? E se a doença for um diálogo entre o que fazemos conosco e o que somos capazes de suportar?

            Cada qual tem o seu direito de atuar como bem lhe apraz ou crê. Porém vivemos em um mundo que nos traz respostas. Respostas virão. Portanto que nos responsabilizemos pelos nossos atos para não sermos apanhados na queixa de que fomos vítimas indefesas. Nem tudo depende de nós. Mas muito sim.

            Podemos especular em que a história da mulher "fria de sal" tem a ver com esta seca tremenda e com os incêndios. Não sei, mas durante a escrita vi que tinha a ver. O pintor não pinta a pessoa, mas a pessoa como é para o pintor. Matisse corrobora esta afirmação. Aliás, o célebre surrealista Salvador Dalí dizia que todos os quadros dele tinham um significado, embora nem sempre ele soubesse. Este texto tem alguma coisa que eu mesmo não sei o que é.
Em 13/11/08