segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O LUGAR DA PARTEIRA

A parteira é uma pessoa muito respeitada em sua comunidade e aqui no Vale do Capão não é diferente. Regra geral a mulher que cuida da parturiente durante a labuta para o nascimento da criança tradicionalmente é alguém que faz parte de uma família cujas mulheres se acostumaram a esta tarefa. Em outros casos foi por instinto, noutros porque calhou estar ali na hora certa. Tem mulheres que obviamente têm o dom.

Aqui temos Nara que vem de uma linhagem de parteiras e que tem feito partos algumas vezes; já Araci e Marilza, não têm linhagem e tampouco são parteiras, mas vejo que ambas têm o dom, apenas não o assumem. D. Aurea, que já está bem velhinha e por isso afastando-se da atividade, começou porque aconteceu de estar na hora certa no lugar do nascimento. Da turma nova, temos Natália e Mariane que são enfermeiras obstetras que está recebendo o título de enfermeira obstetra agora. Este é outro grupo, o das parteiras por idealismo e amor, as quais querem levar para a mulher confortos da ciência associados às práticas ancestrais de acolhimento e protagonismo. O Capão, como veem, está bem servido. Aqui ainda contamos com doulas (Lívia e Juliana) o que é algo especial.

Todas as parteiras, independente do que e do como se inseriram nesta atividade, têm em comum um sentido de missão e é por isso que a comunidade as exalta. Tive a oportunidade de experimentar isso.

Há quase 30 anos fui chamado para auxiliar uma mulher num parto. Foi o primeiro que acompanhei por aqui. À época morava em Lothlorien e Dinha, a parturiente, tinha sua residência logo depois da ponte de Almir (que é o marido dela), indo pro Bomba. O parto foi muito legal, com direito após tudo terminado, a um gostoso caldo de cana que foi feito em uma máquina manual construída com troncos de madeira que a família movia na força do braço.

Naquele tempo não havia feira aqui no Capão e no sábado todos desciam até Palmeiras para vender e comprar. Eu também. Então, em um destes sábados dei com Dinha na feira. Ela me viu e me deu um abraço que me impressionou pela sua peculiaridade. As mulheres daqui eram bastante reservadas. Lembro que uma vez Nivaldo durante um forró entregou-me sua esposa para que eu dançasse com ela. Esta era uma atitude que mostrava publicamente grande confiança e consideração (ela, que estava tensa demais e por isso dançou com dificuldade, pareceu-me que não gostou de tanta consideração naquela hora). Enfim, as mulheres não eram dadas a maiores aberturas com os homens que não fossem maridos, irmãos, ou enfim, parentes próximos – e veja lá. Mas Dinha me abraçou com uma alegria e abertura inusuais. As mulheres ao redor também se aproximaram e me trataram com uma intimidade que até então nunca havia ocorrido e olhe que já morava aqui havia cerca de 5 anos!


Só então me dei conta que havia acompanhado um parto e assim entrava para o grupo das parteiras. Ponho no feminino porque naquele momento com aquelas mulheres, conversando e dando risada, me senti como se eu não fosse um homem (embora tampouco fosse uma mulher), ocupando um limbo destinado a seres relativos à magia do parto. Gostei!

Recebam um abraço parteiral de Aureo Augusto

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

DULCE

Sempre gostei muito da presença das mulheres da vizinhança durante os partos que fiz aqui no Vale do Capão. Porém agora me lembro de uma pessoa que era extraordinária. Recordo-me de Dulce. 

Este não era o seu nome, mas ninguém se referia a ela pelo batismo e sim pelo apelido que revelava-lhe a doce alma.
Ela tinha olhos verdes, claros, cristalinos e sorriso bondoso. Mas era firme e brincalhona. Quando eu chegava nas casas para parto ou atendimento médico ela já lá estava. E me informava: “já pus água para ferver”. Caso fosse parto, tinha o chá de algodoeiro em andamento. Como conhecia, pelo observar, muitos dos meus tratamentos hidroterapêuticos, cuidava de ter panos para as compressas...

Parece que havia um acordo tácito entre os vizinhos que fazia com que a considerassem parte de qualquer cuidado em saúde. Eu, de minha parte, estranhava quando ela não estiva ali. Dulce era parte íntima do cuidado.

Impressionava pelo bom humor, embora tenha tido uma vida matrimonial dura, já que seu esposo era homem difícil, adicto ao álcool que o tornava mais difícil ainda. Há quase 30 anos soube que ela havia enviuvado. A ponte dos Brancos sobre o rio que serpenteia por todo o Vale do Capão havia caído quando de uma enchente e ele, bêbado, caiu do cavalo na passagem difícil pelo vau, batendo a cabeça e foi encontrado morto.

Daí para a morte dela se passaram em torno de 15 anos, quando tive a oportunidade de conviver (pelo menos nos momentos de atendimentos) com sua disponibilidade bondosa. Desenvolveu um tumor cerebral e foi tratar-se em Salvador. Eu estava trabalhando no quintal de casa quando me procurou um de seus filhos, Gilmar. Ele entrou devagar me olhou, disse que sua mãe tinha morrido e retirou-se incontinenti. Fiquei parado... Como seriam os atendimentos a partir de agora?

Recebam um beijo saudoso de Aureo Augusto.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

RODILHA DA CALÇA DO MARIDO

Frequentemente os costumes populares vêm da relação do ser humano com a natureza, ou de acontecimentos antigos nas sociedades. Um exemplo é a capoeira que, todos sabem, é uma dança e uma luta que se desenvolveu como uma forma de defesa. A gravata que até algum tempo atrás era adereço masculino obrigatório foi adotada pelos franceses quando foram apoiados por tropas sérvias no século XIX que usavam lenços no pescoço. Os franceses adotaram, modificaram e logo foram imitados pelo resto do mundo.

Mas tem alguns costumes que nos provocam interrogação. Uma vez fui fazer um parto lá no Bomba (a parte mais ao sul do Vale do Capão, antes chamada de Coruja – o povo não gostava deste nome e mudou – já perto da subida dos Gerais). O processo demorou um pouco e a mulher acabou ficando cansada. Mas, embora demorado, estava dentro da normalidade, afinal cada mulher e seu bebê tem seu ritmo. Estava aguardando quando D. Maria, parteira que também estava comigo, procurou uma calça do pai da criança. Fiquei curioso. O marido da parturiente trouxe uma calça, mas estava limpa, recém-retirada da gaveta. Não servia. Tinha que ser usada, não precisava ser imunda, mas usada.
Quando o rapaz trouxe a calça, a parteira fez uma rodilha e pôs sob a mulher que estava de cócoras. Para ela isso acelerava o parto.

Continuei esperando e matutando sobre qual a causa ou qual o simbolismo naquela atitude. Depois de muito pensar ocorreu-me que, conquanto durante a dilatação a mulher fique bastante introspectiva e até mesmo abstraída do mundo, o processo de expulsão marca um retorno ao mundo, a uma conduta mais ativa, já que uma vez que a criança nasce a mãe deverá estar bem atenta a possíveis problemas para a criança. Quando vivíamos nas matas, este era um momento frágil e os predadores poderiam se aproveitar. Talvez intuitivamente se faça uma associação entre esta conduta mais, digamos, agressiva, e a calça do marido que pode simbolizar a força ativa, a adrenalina que chega neste momento. Claro que esta minha elucubração pode ser pura viagem, oxalá os leitores me tragam explicações melhores.

Em tempo: O parto aconteceu na boa, mas não vi nenhum aumento do pique com o uso calça do marido.

Aureo Augusto.