Saí feliz da consulta porque a criança estava muito bem. Há
10 dias a pele estava uma coisa horrível, inchada, vermelha, descamando,
coçando e ardendo. Com 3 meses de vida já sofria muito além da medida de um
adulto. A combinação de orientação alimentar (a mãe não amamentara), alopatia e
neo-hipocratismo (o que será isso?) lhe devolveu uma pele limpa e linda, exceto
nos pulsos (por que aí?) e por isso sugeri que continuasse os tratamentos por
mais um pouco. A mãe sorria e se regozijava de ver seu pequeno sem choro. Mas o
mundo tem às vezes (ou sempre) um quê de pêndulo.
Passou o tempo um pouco e Wanessa, a agente administrativa
do posto, veio me pedir ajuda. Uma jovem estrangeira muito bonita, porém com
modos impertinentes e arrogantes, acompanhada de um rapaz alto e musculoso
exigia consulta, mesmo sendo avisada que uma unidade de saúde da família estava
voltada para o atendimento das famílias residentes, além do fato óbvio que o
SUS é universalmente dedicado aos brasileiros e apesar de ser uma coisa
maravilhosa, ainda não conseguiu cuidar da nossa gente conforme se propõe,
imagine se tiver que cuidar dos estrangeiros que aqui aportam a visitar. Disse-lhe
que atendíamos, claro, qualquer urgência etc. mesmo sabendo que para entrar na
Europa nós, brasileiros, temos que provar ter seguro saúde, recursos para
manter-se e naturalmente os estrangeiros que nos vêm visitar deveriam também
ter condições de pagar uma consulta e comprar seus remédios. Mas ela não queria
acordo. Wanessa estava nesta conversa quando cheguei, mas ela apenas me falou
que queria tirar uns pontos de uma sutura que sofreu após um acidente em
Itacaré. Nenhum problema, eu tiro. Tivesse a francesa explicado a Wanessa, ela
teria me chamado para cuidar disso. Mas ela queria mais, queria que eu fosse a
casa onde estava hospedado um seu amigo também estrangeiro que estava doente. A
conversa desandou. A questão é que ela tem um entendimento da vida
completamente diferente do meu. Para mim quando você toma uma decisão livre,
também se responsabiliza por arcar com todas as conseqüências de tal decisão.
Ela não entendia que tanto ela quanto seu amigo haviam tomado a decisão de
viajar pelo mundo sem dinheiro, livres de compromissos, de impostos, de
responsabilidades sociais (por exemplo); vivendo marginalmente sem querer
participar de uma sociedade que eles consideram (com alguma razão) podre, mas,
paradoxalmente, ávidos das benesses e da proteção desta mesma sociedade.
Muitos jovens aqui aportam sequiosos de vivenciar a vida
natural de prazeres que imaginam encontrar no Vale do Capão. Querem liberdade
total, com franca irresponsabilidade. Querem, romanticamente, a impossibilidade,
e vivem buscando um pai, pensando que querem um mundo novo. Deve ser por isso
que a tuberculose, doença dos românticos, está voltando a agitar as
estatísticas. Ontem ouvi uma mulher (sim, porque não era mais uma adolescente)
em altos brados, no telefone público do posto exigindo que os pais lhe
mandassem dinheiro. O que foi feito dos sonhos de um mundo novo de paz e amor?
Tornou-se em grande medida, farra e indolência. Qual é o problema de farra?
Nenhum. Qual é o problema da indolência se for uma coisa própria sem envolver
os demais? Porém ser parte da humanidade em plenitude implica afastar-se do
modo piolho de ser. Os piolhos incomodam porque sugam o sangue e dificultam o
sono. Nós os seres humanos somos livres, somos a amplidão, somos o sopro divino,
a luz plena. Mas não somos apenas isso: Existimos no mundo e isso é como um
pêndulo!
Tudo piorou quando o rapaz se meteu e eu, procurando
acalmá-lo, referi-me a ele na velha gíria de meus tempos de jovem, “bicho”.
Pensei que ainda hoje se usava, aliás, tenho usado com muitas pessoas sem
problema, mas ele se irritou muito e disse que ele não era bicho e me perguntou
se eu era médico de gente ou veterinário. E se aproximou ameaçadoramente
exibindo os grandes peitorais muito desenvolvidos. Quem me conhece sabe que
minha “portentosa” musculatura não dá para muita coisa. Também é do
conhecimento de todos que não sou o cara mais corajoso do mundo. Mas não recuei
um passo, por um motivo muito simples: Sei que para o covarde às vezes é melhor
aparentar coragem em dado momento de uma situação do que deixar que a situação
piore. Encarei-o e continuei dizendo o que pensava dele, dela, do amigo. Ele
recuou. Ufa!
Voltei-me para ela e disse que aguardasse um pouco para
retirar os pontos. Ela se sentou e fui verificar a pressão de uma jovem mãe que
precisava de atendimento. Quando terminei notei que o sujeito estava sem camisa,
e é proibido permanecer no posto com o torso nu. Confesso que hesitei em falar
porque não me causa agrado futucar o cão (ou é o leão?) com vara curta. Mas
aproximei-me e lhe perguntei o nome. Ele respondeu e chamando-o pelo seu apodo
lhe instei a vestir a camisa. Ele optou por retirar-se. Atendi à mulher e
depois tirei os pontos da jovem. Fiquei feliz quando ela se foi, porém não
tanto quanto estava no início deste texto.
Recebam um abraço pendular de Aureo Augusto.