segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

LEITE, UM BOM VILÃO ainda as complexidades

Tenho pensado muito sobre a complexidade que é a saúde e a vida. Caso você tenha interesse em saber mais sobre complexidade, para além do dicionário, leia Introdução ao Pensamento Complexo de Edgar Morin, que é um cara muito agradável de ler. Aliás, Morin consegue ser profundo sendo agradável, coisa nem sempre fácil de encontrar. Em medicina este pensamento tem prosperado e isso traz benefícios para todos nós. No Io Encontro de Profissionais de ESF do Vale do Capão (2008), o Dr. Manoel Afonso, cardiologista, trouxe para aqueles que tiveram a sorte de participar, informações que havia coligido em um, à época, recente congresso de que participara cujo tema era a Hipertensão Arterial Essencial. Ele nos explicou que era um anacronismo tratar a hipertensão como uma enfermidade com respostas simples às medicações. Começou sua fala registrando a necessidade de uma assertiva intervenção na alimentação das pessoas com o problema. Seguiu comentando que certas medicações devem ter seu uso revisto levando-se em conta o fato que elas funcionam conforme as condições orgânicas. Ou seja, embora no laboratório ou nos ratos o efeito esteja comprovado, no organismo desta ou daquela pessoa os efeitos não são necessariamente garantidos. Tome-se o exemplo do Captopril, cujo funcionamento pode deixar a desejar quando usado em afro-descendentes ou em idosos.
E as medicações são coisas muito simples quando as comparamos com os alimentos. Tomemos o caso do leite.
Este alimento tem sido visto desde há algum tempo como essencial para consumo humano. O interessante é que este não é um costume ancestral entre nós. Poucas populações se habituaram ao leite in natura até o século XIX. Porém nos dois últimos séculos passou a ser considerado indispensável e disseminou-se o seu uso. Um dos argumentos é a presença de proteínas de alto valor biológico e de cálcio, mineral muito importante para o desenvolvimento ósseo, além da vitamina D, que tem papel importante no aproveitamento do cálcio pelo organismo. No entanto, olvidou-se que na realidade o leite pode ser uma armadilha. Há algum tempo li na revista da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) um artigo (infelizmente perdi o nome do autor) uma pesquisa mostrando a grande incidência no Brasil de intolerância à lactose. Esta substância é um dissacárido, ou seja, um açúcar formado por dois açúcares simples (glicose e galactose). Para que possa ser absorvido pelo organismo deverá sofrer uma quebra e os açúcares simples são então captados pelas células do intestino delgado (no jejuno-íleo) e passam para o sangue. Apenas 10% dos brasileiros adultos têm a enzima capaz de quebrar a lactose. Isto faz com que ela não seja absorvida e chega inteira ao intestino grosso, alimentando bactérias aí existentes e alterando o equilíbrio osmótico provocando o surgimento de gases e irritação das paredes intestinais. Em alguns o quadro é bem sério e pode levar à hospitalização, mas na maioria das pessoas o problema segue surdamente e o prejuízo não é notado, mas mina a saúde. Em alguns países africanos a situação é mais séria, pois 99% das pessoas não toleram o leite. Na África, salvo engano, apenas os Masai (salvo engano) apresentam um quadro genético que lhes garante a tolerância à lactose e, portanto, podem consumir leite. Já os povos nórdicos, como os escandinavos, holandeses, ingleses etc. apresentam um quadro de apenas 10% de intolerância.
Vale observar que o leite tem outros aspectos que o tornam pouco recomendado. Por ser bastante alcalino estimula a produção de ácidos no estômago o que o torna inadequado para portadores de gastrites ou úlceras. Também alcaliniza o intestino grosso, órgão que para funcionar bem tem que ser um pouco ácido, daí o leite contribui para a obstipação (prisão de ventre), causa ou fator coadjuvante em graves problemas de saúde . No leite temos duas proteínas importantes, a caseína e a lactoalbumina. O leite de vaca tem uma proporção muito maior da primeira (ao contrário do leite materno onde a lactoalbumina predomina). A caseína quando se coagula (em presença do ácido do estômago) o faz em grumos grandes e grosseiros o que dificulta sua digestão, este é um dos motivos pelos quais as crianças não devem tomar leite de vaca. Mais recentemente o Dr. Raphaël Nogier, publicou suas pesquisas relacionando o consumo de leite e laticínios com enfermidades da mulher, tais como corrimentos vaginais e tumores das mamas . O livro que traz farto material merece ser lido cuidadosa e criticamente. Representa um importante alerta contra o consumo indiscriminado de leite e derivados. Aliás, reforça as conclusões de um brasileiro, o Dr. Raul Barcellos . Os autores trazem diversas informações sobre o como o alimento, graças a sua fórmula de carboidratos, gorduras, proteínas e açúcares, acaba por nos prejudicar mais do que trazer benefícios.
Apesar disso, sabemos que alguns povos que tinham o iogurte como forte componente da dieta apresentavam grande longevidade e saúde, destacando-se os Hunzas dos Himalaias e os georgianos do Cáucaso. O abandono da dieta tradicional (por influência dos povos europeus), com muitos legumes, frutas e iogurte fez com que a saúde destes povos se reduzisse. A realidade é que o iogurte, ou a coalhada, são bem melhores do que o leite, pois estes são ácidos e estimulam o intestino grosso, corrigindo a prisão de ventre, ademais o cálcio só é bem absorvido em meio ácido, donde no leite in natura a absorção deste mineral é diminuída. A caseína é quebrada em parte pelas bactérias que, além disso, faz por nós o trabalho de reduzir a lactose a suas partes absorvíveis, o que é uma solução para quem tem intolerância à lactose. Mesmo assim, pesquisadores como Barcellos e Nogier fazem restrição ao uso da coalhada e do iogurte.
Penso que isso pode ocorrer, no todo ou em parte, por algo que o Dr. Servan-Schreiber nos traz no seu maravilhoso livro, Anticâncer . Ele nos alerta para o fato de que o exponencial aumento do câncer de mama e também das demais formas de câncer aconteceram após o boom de alimentos depois da Segunda Guerra Mundial, quando o consumo de leite e derivados aumentou muito, mas também aumentou o consumo de carnes, e de produtos industrializados, refinados etc. Observa que o gado passou a alimentar-se artificialmente, usando ração rica em ômega 6, um ácido graxo importante para o nosso organismo, porém capaz de estimular as inflamações em geral (que por sua vez têm seu papel na gênese do câncer). Leite de vacas que comem capim tem muito mais ômega 3 do que ômega 6. Isso acontece com a carne de boi ou de frangos e com os ovos de galinha. Cumpre atentar para estes dados antes de condenar completamente os laticínios ao ostracismo. Atualmente na França alguns criadores estão incluindo na dieta de galinhas, frangos e do gado leiteiro ou de corte, porções de sementes de linhaça; isso tem aumentado o teor de ômega 3, tornando-os mais saudáveis para consumo humano.
Podemos considerar, por fim, que o leite de vaca é inconveniente para nosso consumo (para o bezerro é muito legal), no entanto, a ingesta de coalhada, iogurte, ricota, queijos frescos é recomendável, desde que respeitemos o fato de manter a nossa dieta centrada em frutas, legumes, cereais integrais e leguminosas, tendo os laticínios como complementos, tomando o cuidado de consumir laticínios que provenientes de vacas que comeram capim e não ração. Alguém há de perguntar: Mas como é que vou saber o que a vaca comeu? Quando, há bastante tempo, enveredei pelos caminhos das terapêuticas naturais tudo era muito mais difícil. Ninguém sabia como iria saber de uma grande quantidade de coisas. Hoje, ainda temos dificuldades, mas sabemos, por exemplo, que no Brasil a maioria do gado é criado solto no pasto, enquanto na Europa quase todo ele é criado preso comendo ração. Ponto para nós. Menos uma dificuldade.
Aliás, podemos pensar outra coisa: Já que a semente de linhaça melhora o leite, graças ao ômega 3 aí presente, comecemos a comer sementes de linhaça. Mas, evitemos suplementos concentrados do ômega 3, porque na linhaça não tem só isso, e as outras substância aí presentes contribuem para o seu bom funcionamento. Esta tendência de procurarmos pílulas com produtos maravilhosos ainda nos vai trazer muito prejuízo, porque até aquilo que é antioxidante e combate os radicais livres, pode transformar-se num radical livre quando em excesso, mas isso é conversa para outro dia... Aguarde.
A razão deste texto é informar sobre o leite e seus derivados, alertar para o potencial negativo do seu consumo excessivo, mas também, lembrar que no que respeita a nossa saúde, não existem vilões absolutos nem panacéias.
Em 21/2/10, Aureo Augusto.

Referências bibliográficas:
Morin, Edgar, Introdução ao Pensamento Complexo, Publicações Instituto Piaget, Lisboa, 1991.
V. Liberte-se da Prisão de Ventre, Aureo Augusto, Cultrix, São Paulo, 1995.
Nogier, Raphaël, O Leite que Ameaça as Mulheres, Ícone, São Paulo, 1999.
Hirsch, Sonia, A Dieta do Doutor Barcellos Contra o Câncer, Hirsch&Mauad, Rio de Janeiro, 1997.
Servan-Schreiber, David, Anticâncer, Fontanar, Rio de Janeiro, 2008.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

COMPLEXA SAÚDE

Talvez alguns visitantes prefiram o sol, mas para nós que aqui moramos, nada como uma chuvinha fina no telhado. Durante a noite toda choveu... Foi o que me disseram, pois eu, na verdade, não escutei nada, embora talvez a chuva tenha escutado meu ressonar. Ao despertar descobri o Vale encharcado, as montanhas ainda se refestelando nas nuvens. O cheiro fresco do ar matinal...
Todas estas coisas simples são o fruto de trilhões, se não mais, de combinações complexas de uma infinita quantidade de elementos. Não chove do nada, o sol não aparece cortante firme por mera sorte. Cada coisa faz parte de uma dança de muitas causas para muitos efeitos. Uma dança muito complexa! Assim também na nossa saúde.
Quando era jovem, premido por problemas de saúde bastante desagradáveis, comecei a estudar alguns livros de nutrição e descobri algumas coisas bem interessantes. Por exemplo, no livro Nutrição e Vigor (A. de Miranda) encontrei que o uso de vitamina C artificial poderia não resolver todos os problemas relacionados ao escorbuto (que é a deficiência nutricional desta vitamina). Nesta doença a pessoa fica fraca, susceptível a infecções, as gengivas sangram, os dentes caem etc. Os navegantes europeus padeceram muito com este problema porque descuidavam de levar frutas e hortaliças em suas viagens através dos mares. Os índios canadenses ajudaram marinheiros ingleses ofertando-lhes alimentos frescos. Navegantes chineses no início do século XV, contemporâneos dos grandes navegadores europeus, tinham algum conhecimento da necessidade de víveres frescos, daí levavam barris, plantados com hortaliças, em seus gigantescos navios (de 1500 toneladas!). O interessante é que quando uma pessoa tem a deficiência escorbuto, o uso de comprimidos de vitamina C ajuda com todos os sintomas exceto com o sangramento gengival. Este está relacionado com a deficiência de citrina, uma vitamina pouco comentada porque está presente na natureza onde quer que exista vitamina C. Ou seja, para resolver satisfatória e completamente o escorbuto há que tomar vitamina C de fontes naturais. Na minha juventude padeci de cegueira noturna por deficiência de vitamina A. Fui a um médico que me receitou um liquido gorduroso repleto da vitamina. As alterações cutâneas derivadas do problema desapareceram de imediato, mas resultou como seqüela uma perda da competência visual no entardecer. É que a vitamina A tem melhor resultado quando em contato com o Zinco, um mineral que necessitamos em quantidades irrisórias (e que não estava presente na medicação). Não há nenhuma enzima, vitamina, mineral, proteína etc. em nosso corpo que funcione independente de qualquer coisa ou situação. Na complexidade climática de nosso organismo, o tempo bom da saúde é fruto da combinação de uma quantidade imensa de fatores. Por isso devemos evitar substâncias milagrosas capazes de nos salvar de possíveis doenças. Além disso, por mais que um suplemento seja completo (e complexo) não é nada em termos de completude e de complexidade, se comparado com uma cenoura, uma pitanga ou uma manga. O nosso corpo agradece o consumo daquilo que se adequa a sua maravilhosa complexidade.
Em 14/2/10, recebam um abraço complexamente completo.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 22

FREUD NÃO EXPLICA
Precisamos conhecer. Além do prazer que nos dá, o conhecimento pode colaborar na melhoria de nossa vida. E a ciência é uma grande fonte de conhecimento e de certeza para nós. Uma certeza, um tanto incerta é verdade, porém muito útil. O problema é que os estudos científicos evitam ser tendenciosos, mas não conseguem sê-lo. Estou lendo o excelente livro de John Horgan, A Mente Desconhecida, no qual o autor mostra que todas as afirmações conclusivas quanto ao funcionamento da mente, são inconclusas. Ao lê-lo me dá uma enorme confiança na ciência, ao contrário do esperado descrédito. Ali, como em outros lugares, podemos observar que o pensamento humano é um vai-e-vem, como um iô-iô. O autor trata de ciência, mas se lermos A História do Pensamento Ocidental, de Berthrand Russel, ou a História da Filosofia, de Jean François Revel, chegaremos à mesma conclusão quanto ao pensamento político e quanto à filosofia. E tudo isso traz em mim a certeza de que caminhamos na direção certa, tanto em ciência quanto em filosofia. A infelicidade em ambas as áreas é a idéia reducionista de que o ser humano ou o Universo podem ser explicados por apenas uma teoria e/ou um fator, ou poucos fatores. Kenneth Blum, da Universidade do Texas, afirmou que havia uma relação direta entre um certo gen e o alcoolismo. Para ele seria relativamente fácil para os pais detectarem se seu filho seria viciado em álcool. Suas pesquisas foram consideradas suspeitas por Irving Gottesman da Universidade da Virgínia e pelo famoso Dean Hamer, também geneticista. Este mesmo Hamer achou que o homossexualismo masculino e, em pesquisa posterior, o feminino também, estava vinculado a um gen presente no cromossomo X. Isso deu muito pano pra manga, mas numerosos outros geneticistas negaram tal evidência. Assim como negaram evidência a sua afirmação de que ansiedade e ânsia de novidades eram determinados geneticamente. Alguns, como o psicólogo David Likken, encantados com as afirmações e deixando de ver as negações, chegaram a sugerir que o governo só permitisse engravidar as mulheres com alto quociente de inteligência. O interessante é que até hoje não está efetivamente claro o que é e como se produz a inteligência e muito menos o real papel dos genes como fator de geração de inteligência. Naturalmente aqueles que fazem este tipo de proposta não conheceram o trabalho de Daniel Golleman, sobre múltiplas inteligências e se esqueceram de pensar na felicidade humana. Inteligência, além de desconhecida, não é tudo. Tenho visto muita gente bastante inteligente “dar com os burros n’água”. Chego até a considerar que os mais inteligentes são freqüentemente os mais dados ao auto-engano, principalmente quando são dominados pela tão comum vaidade.
Quanto mais leio e aprendo, mais dou razão ao velho Sócrates quando dizia que “tudo que sei é que nada sei”. Penso que cada cientista deveria ter esta frase afixada em um lugar bem legível em suas salas de trabalho. Talvez assim pudessem escapar do tentador desejo de enfeixar com uma descoberta todo um assunto. A cada um o seu lugar, ou seja, seria muito bom se, relegando os interesses narcísicos a um segundo plano, considerassem suas pesquisas como indicadores seguros de que parte de um determinado fenômeno poderia ser esclarecido também com aquela contribuição. Mas que esta contribuição deveria ser somada a muitas outras. Imaginar que inteligência ou esquizofrenia são frutos unicamente de fatores genéticos, considerando que o meio (educação, traumas, alimentação da mãe na vida pré-natal entre outros fatores) não tem valor, parece-me tão bobo, quanto não reconhecer que os genes também interferem em nossa vida. A obviedade desta constatação leva-me a perguntar por que os cientistas tão insistentemente pecam pelo reducionismo. Penso que aí estão as armadilhas da própria mente. Muitos estudos de genética são financiados por instituições racistas, assim como a maior parte dos estudos quanto a efeitos benéfico das drogas são mantidos por grandes laboratórios. Será que o pesquisador consegue ser realmente isento de tendenciosidade? Diversos estudos provam que não. Fora isso ainda encontramos outros fatores menos facilmente detectáveis, como o desejo de aparecer, bem como outros fatores que, como se dizia nos anos 60, “Freud explica”. Sem esquecer que as explicações de Freud, além de não serem realmente científicas (pelo menos se considerarmos os padrões epistemiológicos de Karl Popper), também não explicam tudo.
Um abração, Aureo Augusto

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 21

CONHECER(-SE)
Não é fácil, e não necessariamente por falta de disposição moral, assumir a proposta socrática de conhecer-se como base para a vida. Como função vital. Estudar a si mesmo do jeito que Montaigne queria. O principal desta não facilidade é o fato de que falta-nos, falta-me, percuciência. Falta competência. Percebo isso quando leio comentários a filmes, a livros, a obras de teatro e outras formas de arte, quando releio livros... É impressionante o quanto deixo escapar, o quanto não vejo. Dito melhor, o que não vi na leitura anterior.
Uma boa parte da população mundial não se interessa por conhecer a si mesmo. Penso, por exemplo, na infinidade de pessoas que, habitando os países muçulmanos satisfazem-se apenas com tocar o chão com a testa cinco vezes por dia e lançar diatribes contra o Ocidente, como se apenas a ambição (que não é pouca) dos países ocidentais fosse a causa de seus males, esquecendo-se dos séculos de estagnação que lhes atingiu pela incompetência em superar os impasses a que levou o poderoso imperialismo árabe, da implícita e mesmo ímpia desigualdade social que sempre os caracterizou, além da ganância de dinheiro e poder dos seus próprios dirigentes (os ayatolás que dominam o Irã rapidamente se fizeram os mais ricos) enquanto ao povo em geral só resta apresentar-se como voluntário para o exército dos homens-bomba. Também me lembro dos palestinos, cujo maior inimigo nominal, Israel, lhes causa menos estrago do que a corrupção e a ação de uma minoria fanática a serviço (freqüentemente inconsciente) de interesses o mais das vezes internacionalistas pan arábicos ou pan muçulmanos, que pouco se interessa pela questão das pessoas que residem na Palestina. Tais interesses nominalmente voltados para salvar as almas muçulmanas, o mais das vezes rezam a cartilha do jogo do poder e da satisfação de processos inconscientes traumáticos, pouco ou nada vinculados à questão árabe, palestina, muçulmana, humana... Penso também nos milhares de cristãos que se crêem compelidos por uma força demoníaca para o mal e que, portanto, necessitam de pastores ululantes e padres sussurrantes capazes de conjurar o mal que, um pensar cuidadoso sobre o si mesmo traria um efeito, no mínimo, gerador de autonomia. Talvez tivesse razão Voltaire ao considerar que a religião caso não existisse teria que ser inventada, pois que tem o forte papel de servir de freio para determinadas ações perniciosas. Sim, talvez tenha razão, mas, Nietzsche também não se enganou ao considera-la uma crueldade. Quantos se martirizam por ela? Quantos desviam seu caminho por ela? Embora tantos nela encontrem conforto, o que é bom e louvável, outros apenas aprofundam os conflitos, como vimos na Irlanda do Norte (católicos contra protestantes), no Paquistão e outros países da Ásia, onde cristãos são massacrados por muçulmanos, no Iraque onde sunitas e xiitas se matam mutuamente etc. Religião, economia e política, salvações que se tornam maquinações do mal... Creio que devido a nossa incompetência de conhecer a si mesmo, tornando-nos alvos fáceis de manipulações. Claro que o mundo não é feito apenas da minha, ou da nossa, subjetividade. No entanto, solipsismos à parte, o fato é que o não entendimento do que somos em si é causa de grande mal.
Os irlandeses estão longe daqui, bem como os conflitos no Oriente Médio. O Vale do Capão, local onde resido, descansa uterino sob a chuva suave e o gorjeio das aves matinais. Mas em sua devida escala aqui se repete o que no mundo transborda. Cá, como lá, vamos vivendo nossas limitações. O desejo de ser aceito, no mínimo, bem como o desejo de ser mais do que se é, em plano intermediário, além da vontade de ter o poder sobre os demais, mandar, dominar estão pautados, lado a lado, com a vontade de viver em paz, estar em harmonia com os demais e com o ambiente. Alguns moradores me impressionam pela sua capacidade de elaborar um sistema de valores baseados em sentimentos e raciocínios cuidadosos, mesmo que não tenham tido a oportunidade da alfabetização. Pessoas como o velho Anísio ou Maninho (Luís Quati). Outro dia, em meio a uma conversa na pizzaria de Daniel (La Piedra), pensei alto que esta coisa de ir a restaurantes é muito antiga. Araci, senhora sofrida e vivida neste vale, mãe e avó, de repente, do nada, me perguntou:
- E Deus, Aureo, existe desde quando?
Surpreso fiquei, confesso, com a pergunta. Ela queria saber. E saber é algo maravilhoso. Claro que já havia aprendido no catecismo e nas missas que Deus é eterno. No entanto, o que é e como é esta eternidade. Melhor seria um filósofo e educador para conversar com ela. Na falta, comentei para ela que dentro desta linha de pensamento que inclui a existência de Deus e sua eternidade, há cerca de 20 dias Deus existia. Claro. Há mil anos também. Há um milhão de anos idem. Para onde quer que viajemos no passado e no futuro ali Ele estará. Disso a conversa derivou para a própria existência humana e a possibilidade de uma alma e de que também seja ela eterna. Os olhos dela brilhavam e mesmo, em dados momentos marejaram, com as descobertas de uma conversa! Ao terminar o papo, ocorria um clima entre nós de descoberta da nossa amplitude. A, por assim dizer, literatura que havia sido experimentada na conversação, nos trouxe a sensação de que há e somos algo maior do que nossos pequenos e grandes egoísmos. E de que podemos conduzir-nos de melhor forma do que o fazemos no dia a dia, na medida em que mais vezes nos portemos com a consciência desta consciência. Que nos pode levar para além da política politiqueira, da religião sectarista, da economia voltada para o mero ‘levar sempre a melhor’. Sem negar política, economia ou religião, como elementos reais e componentes históricos inegáveis da vida e saúde humanas.
Recebam um abraço, Aureo Augusto.