terça-feira, 29 de dezembro de 2009

RESPIRAR 2010

Fui cuidadosamente ensinado no hábito de esquecer de respirar. Aconteça o que acontecer prenda a respiração. Encha o pulmão e espere, inerte, inerme, pelo pior. Procuro em meus pais a origem deste ensinamento e não encontro. Na verdade eles também foram educados na dor de afastar-se. Foram adestrados no hábito de abandonar a rede que nos conforma no mundo. Mas quem é que nos educa? De onde vem a regra insana que regra a vida de todos nós? Como fomos nos padronizando na desabituação do encontro? Não sei bem. Sei que temos uma história e ela marcou nossos corpos, nosso sistema físico, nosso jeito de se emocionar e pensar. Sei que não somos seres criados apenas no momento do encontro de gametas. Nestas células já havia o registro de muitos tempos e ademais existimos em um campo de existência. Somos, em muito, e muito mais do que notamos, frutos do tanto que a humanidade experimentou, de campos verdejantes a esconderijos úmidos e fumacentos, de adoráveis rios e mares a naufrágios, invasões sufocantes e lutas atrozes. Duas células com metade de genomas se encontram: Não são duas células, são uma montanha de histórias. Talvez por isso, e porque nossa história não é um conto de paz, que somos ensinados a prender a respiração.
Disto resulta que nem sempre conseguimos usufruir o que de bom o mundo nos dá. Esperamos o pior. Talvez porque o pior veio muitas vezes. Muito mais vezes do que esperávamos que viesse um conforto, um afago, uma ternura.
Às vezes (quase sempre) me pergunto se é assim mesmo. Será que veio sempre o pior, ou será que o mais das vezes não vemos o melhor? Uma mulher veio para a consulta. Ela mora em outra comunidade aqui de Palmeiras e tem uma longa e amarga história para contar. Há muita dor. Mas também na entrevista descobri que tem um marido que é um santo, homem bom, cuidador e dador, com o qual ela sempre conta. Também um filho que é muito inteligente e premiador com suas conquistas na escola. Ela ganha em alegria com ele e suas notas. Ganharia, dito melhor, se soubesse dar a devida atenção. Também tem um lar, uma casa bem legal, feita de tijolos com telhas e não palha. A roça é pequena, mas “dá pro gasto”. Consegui uma longa lista de bondades... Pergunto-me, perguntei-lhe, se já não era hora de olhar um pouco mais para o lado luminoso.
Hoje, logo depois que visitei esses pensamentos e que, portanto, respirei com cuidado e atenção, ia para casa e encontrei três passos-pretos em animada conversação bem no meio da pista. Parei o carro e aguardei que terminassem. O negro de suas penas, bicos e olhos, era tão forte que quase azul. Percebi que a discussão enveredou por um assunto não tão pacífico. Um deles foi alijado do grupo e saiu um tanto irritado. Os dois outros também não estavam muito satisfeitos com o assunto. Por fim ficou apenas um que se achava o dono da rua e caro custou para que se afastasse para dar passagem ao carro. Logo depois encontrei a borboleta gigante de asas azuis. Como ia bem devagar ela ficou arrodeando o carro e dançando em frente ao pára-brisa. Segui meu destino e ela o dela, após o encontro inspirador.
Que no ano de 2010 todos nós consigamos ver o mundo com os olhos de quem vê o negativo e suas soluções. Que possamos divisar também, sem dificuldade, a bondade que o mundo nos dá e a bondade que somos e fazemos.
Recebam um abraço carinhoso,
Aureo Augusto em 29/12/09.

domingo, 20 de dezembro de 2009

É NATAL, UFA!

Já se sente no ar o clima de Natal. Mesmo aqui nas lonjuras do Capão. Antigamente por aqui não havia esta coisa de presentes. O Natal era só uma celebração religiosa. Hoje, com o avanço avassalador da comunicação a celebração é comercial a todo vapor. O Natal para mim sempre foi algo um tanto ambíguo e continua sendo. De pequeno, gostava mesmo era de São João, com seus brilhos de fogos e fogueiras. Mas meu pai, no meio da noite em dezembro, colocava em nossos sapatos aos pés da cama um presente. Lembro-me de caminhões coloridos, de um jipe de plástico... Dionísio, meu irmão mais velho, batizado Dionísio Aurélio, em homenagem aos dois avós, respectivamente paterno e materno e de um herdou o dom para as coisas manuais e a criatividade; do outro a magrem. Este meu irmão construía carrinhos de papel e papelão, televisões com caixas de fósforos e antenas de chicletes e alfinetes que eram uma alegria para mim e para meu irmão menor (na idade, não no corpo). Também, atento, nos acordava assim que meu pai deixava os presentes e passávamos parte da noite gozando da alegria daquele regalo natalino. Não era como hoje, muitos presentes. Era um só e a alegria não tinha tamanho. Mesmo assim, o São João era “a festa”. E ainda é.
O Natal continua sendo uma coisa ambígua. Detesto a correria para os presentes. No ano passado viajei a Salvador para a festa e saí da estrada para o shopping. A confraternização primeira foi com os vendedores, alguns muito cansados da jornada extorsiva, as filas, a tensão das pessoas comprando de um jeito que em alguma medida me parecia uma espécie de drogadicção e/ou condenação de todo um grupo social. E eu no meio. Não gosto dessa parte, embora goste muito de dar presentes. E receber! Não me agrada esta coisa obrigatória que esconde e mesmo aplasta o sentido de solidariedade que a celebração inspira (ou inspiraria).
Por outro lado tem o encontro com a família. Minha família, em que pesem os naturais problemas comuns às famílias, quando se encontra é realmente uma delícia. Temos um senso de humor e tanto. Rimos muito de nós mesmos. Emociono-me agora vendo na imaginação meus pais já muito idosos (87 e 89 anos – ela é mais velha e dizemos que tirou o velho de casa quando era um garoto inocente – o que a faz rir), felizes com os filhos e netos em uma molequeira sã se esgoelando com piadas tantas vezes repetidas, mas sempre com sabor renovado. Um garoto vizinho da casa de meus pais quis participar porque um dia viu a alegria daquele momento. Ex-esposas de meus irmãos não perdem também. Outros vizinhos acabam participando. Ali, naquele momento de ternura exuberante, a família extensa (no caso muito extensa, já que inclui vizinhos) irmanada pelo desejo do encontro feliz, o patriarca e a matriarquinha (porque minha mãe é bem mirrada), despojam-se da imagem comum, aquele estereótipo de pessoas dominadoras, e são o álibi, para a celebração. É verdade que Jesus é um exemplo e seu exemplo deve ser lembrado. Mas é minha mãe e meu pai, meus irmãos adoráveis, meus filhos que amo como se meu coração houvesse sido construído de matéria que os vivifica, meus sobrinhos maravilhosos (incluo aqui os filhos do Miklos, vizinho de meus pais e amigo/irmão de longa data), enfim, é essa coisa absurda, louca, difícil, impossível, indispensável: família.
É natal, ufa! Não dá pra não chorar!
Em 20 de dezembro de 2009, desejo para todos vocês um natal maravilhosamente ambíguo.
Aureo Augusto

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 17

NOSSA!!! A semana passou e o pique de trabalho foi tanto que nem notei. Não consegui postar nada desde a sexta-feira passada. Mas hoje, nova sexta, mais um artigo. Este escrevi há bastante tempo, em um inverno rigoroso:
CORES, FORMAS, SABORES!
No Vale do Capão umas laranjas douradas – chupa-las pelo prazer da cor!
Os alimentos não apenas entram pela boca, mas também pelos olhos. Observem as crianças quando a elas apresentamos comidas saborosas. Seus olhos se enchem, inferem sabores, antegozam o repasto. Sempre me admiro do quase nunca com que a ciência tem consideração pelo superficial. As cores e a beleza são uma coisa superficial e, por isso, com freqüência são pouco apreciados pelos estudiosos, salvo a exceção de um ou outro cientista/poeta.
Não é por acaso que amamos as cores, os sabores e as formas. Ora, se o que interessa em um alimento é apenas o seu teor nutricional, as árvores deveriam ser todas iguais e trazer pílulas nutritivas. Não haveria necessidade da ampla gama de gostos que atende, diga-se, a todos os gostos. Dizia Lorenz, o estudioso da diversidade (a respeito das paradas nupciais) que “à natureza lhe agrada a variedade”. Aliás, esse tema da variedade merece uma consideração mais aprofundada, mas deixemo-lo para outra oportunidade. Entre as tradições médicas antigas, uma ligada a Teophrastus Felipus Aureolus Bombastus, cognominado Paracelso, nos ensina que há uma correlação entre a forma e cor dos alimentos e a sua utilidade para nós. Diziam seus seguidores (ainda dizem, pois que, todavia, há deles entre nós) que se uma fruta tivesse a forma de um coração, seguramente seria útil no tratamento das enfermidades cardíacas, por exemplo. Esta observação intuitiva, naturalmente será negada pela ciência. É tentador negar o que parece fantasia; porém às vezes a verdade se disfarça de fantasia. O mundo reveste-se entre nós de uma racionalidade (superficial, registre-se), porém que flerta sem notar com o mágico. Se não consideramos os mistérios do mundo como o que eles em realidade são, um mistério, perdemos muito de nossa grandeza. A decantada frase de Hamlet, “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga a nossa vã filosofia”, é tão repetida e mal utilizada quanto acertada. Há uma certa arrogância em considerar verdade apenas o que a ciência considera como fato. Mesmo quando aparenta humildade, como S. Pinker quando afirma em seu “Como a Mente Funciona” que a mente humana tem seus limites (e é verdade), mas que o ser humano não pode acessar a compreensão ansiada por aqueles que crêem, por exemplo, na espiritualidade, sendo isso apenas fantasia incompreensível pela mesma mente incompetente. No fundo ele está dizendo que não há mistério, há apenas o fato de que somos uma mente fruto de um corpo dotado de funções cibernéticas. O que pode até ser verdade, mas é verdadeiramente ignóbil não admitir outras possibilidades.
Mas, a despeito do que digamos ou não, as laranjas do Vale, têm a cor alaranjada (ao contrário da maioria das que compramos que estão mais para verdes ou amarelas), e com sua cor, tão solar, nos ajuda a suportar os rigores do frio, chuvoso e ventoso inverno daqui. Sabemos, que a vitamina C, a citrina, o cálcio entre outros elementos presentes em seu suco e polpa, nos fortalece contra os resfriados e gripes tão comuns nesta época. Claro que sempre podemos dizer que o que ocorre não é por causa da cor, mas o fato é que na natureza não há desconexão entre os fatos. E existem outros exemplos, como o das nozes (e outras amêndoas) tradicionalmente consideradas como boas para o cérebro, porque se parecem com aquele órgão. Hoje sabemos que nelas encontramos gorduras essenciais, por alguns conhecidas como vitamina B15 (ácido Aracdônico, ac. Linoléico e ac. Linolênico), sem as quais não se forma uma estrutura das células que compõem o sistema neurológico, denominada bainha de mielina, que tem importante papel na velocidade com que o impulso nervoso é conduzido pela célula.
E, cuidando para não transformar isso em verdade absoluta, vocês não acham que é muito interessante e misterioso?
Aureo Augusto em 2 de Julho de 2006

sábado, 12 de dezembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 16

Acabou que ontem não consegui postar pq tive que fazer uma viagem para participar de um encontro do Instituto Chapada, onde os diversos municípios que fazem parte da empreitada mostraram seus resultados. O esforço dos educadores e políticos locais para superar as enormes dificuldades que enfrenta a educação me emocionaram em diversos momentos. Um dia volto a falar sobre isso.
Há um aspecto oculto da medicina que merece consideração. O conhecimento de si. Veja o que pensei uma vez sobre isso:
CONHECER(-SE)
Não é fácil, e não necessariamente por falta de disposição moral, assumir a proposta socrática de conhecer-se como base para a vida. Como função vital. Estudar a si mesmo do jeito que Montaigne queria. O principal desta não facilidade é o fato de que falta-nos, falta-me, percuciência. Falta competência. Percebo isso quando leio comentários a filmes, a livros, a obras de teatro e outras formas de arte, quando releio livros... É impressionante o quanto deixo escapar, o quanto não vejo. Dito melhor, o que não vi na leitura anterior.
Uma boa parte da população mundial não se interessa por conhecer a si mesmo. Penso, por exemplo, na infinidade de pessoas que, habitando os países muçulmanos satisfazem-se apenas com tocar o chão com a testa cinco vezes por dia e lançar diatribes contra o Ocidente, como se apenas a ambição (que não é pouca) dos países ocidentais fosse a causa de seus males, esquecendo-se dos séculos de estagnação que lhes atingiu pela incompetência em superar os impasses a que levou o poderoso imperialismo árabe, da implícita e mesmo ímpia desigualdade social que sempre os caracterizou, além da ganância de dinheiro e poder dos seus próprios dirigentes (os ayatolás que dominam o Irã rapidamente se fizeram os mais ricos) enquanto ao povo em geral só resta apresentar-se como voluntário para o exército dos homens-bomba. Também me lembro dos palestinos, cujo maior inimigo nominal, Israel, lhes causa menos estrago do que a corrupção e a ação de uma minoria fanática a serviço (freqüentemente inconsciente) de interesses o mais das vezes internacionalistas pan arábicos ou pan muçulmanos, que pouco se interessa pela questão das pessoas que residem na Palestina. Tais interesses nominalmente voltados para salvar as almas muçulmanas, o mais das vezes rezam a cartilha do jogo do poder e da satisfação de processos inconscientes traumáticos, pouco ou nada vinculados à questão árabe, palestina, muçulmana, humana... Penso também nos milhares de cristãos que se crêem compelidos por uma força demoníaca para o mal e que, portanto, necessitam de pastores ululantes e padres sussurrantes capazes de conjurar o mal que, um pensar cuidadoso sobre o si mesmo traria um efeito, no mínimo, gerador de autonomia. Talvez tivesse razão Voltaire ao considerar que a religião caso não existisse teria que ser inventada, pois que tem o forte papel de servir de freio para determinadas ações perniciosas. Sim, talvez tenha razão, mas, Nietzsche também não se enganou ao considera-la uma crueldade. Quantos se martirizam por ela? Quantos desviam seu caminho por ela? Embora tantos nela encontrem conforto, o que é bom e louvável, outros apenas aprofundam os conflitos, como vimos na Irlanda do Norte (católicos contra protestantes), no Paquistão e outros países da Ásia, onde cristãos são massacrados por muçulmanos, no Iraque onde sunitas e xiitas se matam mutuamente etc. Religião, economia e política, salvações que se tornam maquinações do mal... Creio que devido a nossa incompetência de conhecer a si mesmo, tornando-nos alvos fáceis de manipulações. Claro que o mundo não é feito apenas da minha, ou da nossa, subjetividade. No entanto, solipsismos à parte, o fato é que o não entendimento do que somos em si é causa de grande mal.
Os irlandeses estão longe daqui, bem como os conflitos no Oriente Médio. O Vale do Capão, local onde resido, descansa uterino sob a chuva suave e o gorjeio das aves matinais. Mas em sua devida escala aqui se repete o que no mundo transborda. Cá, como lá, vamos vivendo nossas limitações. O desejo de ser aceito, no mínimo, bem como o desejo de ser mais do que se é, em plano intermediário, além da vontade de ter o poder sobre os demais, mandar, dominar estão pautados, lado a lado, com a vontade de viver em paz, estar em harmonia com os demais e com o ambiente. Alguns moradores me impressionam pela sua capacidade de elaborar um sistema de valores baseados em sentimentos e raciocínios cuidadosos, mesmo que não tenham tido a oportunidade da alfabetização. Pessoas como o velho Anísio ou Maninho (Luís Quati). Outro dia, em meio a uma conversa na pizzaria de Daniel (La Piedra), pensei alto que esta coisa de ir a restaurantes é muito antiga. Araci, senhora sofrida e vivida neste vale, mãe e avó, de repente, do nada, me perguntou:
- E Deus, Aureo, existe desde quando?
Surpreso fiquei, confesso, com a pergunta. Ela queria saber. E saber é algo maravilhoso. Claro que já havia aprendido no catecismo e nas missas que Deus é eterno. No entanto, o que é e como é esta eternidade. Melhor seria um filósofo e educador para conversar com ela. Na falta, comentei para ela que dentro desta linha de pensamento que inclui a existência de Deus e sua eternidade, há cerca de 20 dias Deus existia. Claro. Há mil anos também. Há um milhão de anos idem. Para onde quer que viajemos no passado e no futuro ali Ele estará. Disso a conversa derivou para a própria existência humana e a possibilidade de uma alma e de que também seja ela eterna. Os olhos dela brilhavam e mesmo, em dados momentos marejaram, com as descobertas de uma conversa! Ao terminar o papo, ocorria um clima entre nós de descoberta da nossa amplitude. A, por assim dizer, literatura que havia sido experimentada na conversação, nos trouxe a sensação de que há e somos algo maior do que nossos pequenos e grandes egoísmos. E de que podemos conduzir-nos de melhor forma do que o fazemos no dia a dia, na medida em que mais vezes nos portemos com a consciência desta consciência. Que nos pode levar para além da política politiqueira, da religião sectarista, da economia voltada para o mero ‘levar sempre a melhor’. Sem negar política, economia ou religião, como elementos reais e componentes históricos inegáveis da vida e saúde humanas.
Recebam um abraço, Aureo Augusto.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O PÉ DE IMBURUÇU E OS ENTERROS

Cada coisa tem sua história e esta história em muito (mais do que aparenta) a define.
Aqui no meio da praça principal do nosso povoado há um pé de imburuçú. Uma árvore bonita de tronco grosso e copa exuberante, que hoje, percebe-se envelhecida. Sua copa é podada cuidadosamente porque há poucos anos o tronco, oco, rachou durante uma ventania. Acostumei-me a sua presença e não gostei quando ao calçarem a praça os pedreiros levaram os paralelepípedos até a casca das raízes. Poderiam ter-lhe dado um espaço, um pouco mais de terra. Mas não foi isso que a prejudicou, creio, porque as raízes profundas não foram abaladas.
Apesar das podas a árvore é uma coisa tão presente que quase não se nota. No entanto, como tudo o demais tem uma história. E esta história remete àquele que a plantou.
Foi um homem chamado Rubi. Quando o fez manifestou aos vizinhos o seu desejo de que ao morrer o seu caixão fosse confeccionado sob seus galhos. Quem me contou a história foi S. Chiquinho de Dona, pai de Nivaldo, e ele acrescentou que à morte de Rubi, a planta já havia alcançado um bom tamanho e os vizinhos cumpriram-lhe o desejo, e arrumaram seu último leito sob a árvore que plantou.
Naquela época e mesmo muito tempo depois que aqui resido o comum era o povo daqui mesmo cuidar do caixão do defunto. De quando em vez algum prefeito oferecia o caixão, mas em geral eram vagabundos. Teve um cara aqui que no enterro, o caixão era de tão má confecção que os membros do morto começaram a sair pelas rachaduras onde os pregos cederam. Caro custou para levar o corpo à sepultura. Difícil foi controlar o riso. Hoje, com o progresso todo mundo é enterrado nuns caixões bem legais, com vidrinho e tudo. Todo mundo chega na sala com o cenho franzido e o olhar contrito, vai até o vidrinho e olha. Depois vai para um canto e por algum tempo mantém um silêncio sepulcral. As pessoas se entreolham e esperam que outro entre e olhe o vidrinho em um voyeurismo macabro. Depois todos se metem uma conversação a princípio um tanto triste, semeada de memórias do morto, mas logo vão se animando ocorrendo às vezes redondas gargalhadas. À noite é fogueira, comida e cachaça até que o amanhecer traz a dor atroz e os gritos das mulheres na hora que o enterro sai de casa. Não sei o que se passa lá na hora de o caixão baixar à terra porque nunca vou a este finalmente. No máximo freqüento o velório. E aqui já fui a muitos, mais até do que gostaria.
Para fechar mais uma informação: Conta-se que Rubi maltratou a uma mulher que era prostituta. Esta o amaldiçoou com tal veemência que após algum tempo desenvolveu uma ferida no pé e outra no nariz o qual, com o tempo, ficou completamente destruído, ficando um buraco no lugar. O homem morreu desta afecção.
Há pouco falei da língua de algumas pessoas, mas seguramente a língua desta mulher, esta sim que era danada.

Um abraço bem gostoso para todos vocês,
Aureo Augusto

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

FOFOCA

Não sei se fofoca tem mais no campo do que na cidade grande. Pode ser que em lugares pequenos apareça mais porque o contato é mais fácil e freqüente. Aqui no Capão conhecemos uns aos outros com certa assiduidade. As notícias correm com uma facilidade enorme. O povo ri um pouco de mim quando vêm a minha surpresa frente a alguma novidade que só o é para mim, pois todos já sabiam desde há muito. Mais por avoamento do que por desinteresse, nem sempre estou a par das últimas novidades comadreiras.
Penso que a fofoca é apenas o excesso da curiosidade sadia que levou à humanidade ao grau de progresso em que se encontra. Poderíamos ter optado por uma vida de chimpanzés. Quisemos inquirir, investigar e, principalmente, comentar com os demais sobre o que descobrimos. Tem algumas pessoas aqui no Capão que são boas para a inquirição, para a investigação e para comentar o fruto de suas pesquisas. Ademais, põem um pouco de colorido, como um artista, cria hipérboles para atrair a atenção. Determinadas pessoas, ademais, não são mentirosas, apenas quando não têm mais o que contar, inventam algumas verdades, como já me disseram.
Aqui encontramos os dois tipos básicos de fofoca, aquela simples e ingênua, quando se fala da vida de outrem, como para passar o tempo ou nutrir a conversação. Não é um exercício inócuo, é, se pensamos bem, maléfico. Mas é sumamente comum (e não apenas aqui). Também há aquela fofoca profissional, na qual o portador ou portadora faz-se de inocente e mostra-se apenas interessado em penalizar-se com a situação. Diz assim: “Coitado de tal pessoa, que situação terrível”. Todos ao redor param. Há um suspense palpável. As perguntas chovem. Mas o profissional jamais deixa que a notícia escorra da boca como água na serra depois da chuva das águas. “Você não sabia?” – pergunta inocentemente. “Ele foi preso em Palmeiras, por engano”. Na medida das perguntas, triste com o infortúnio do outro, o profissional da fofoca vai desvelando toda uma vida. Assim se descobre que o preso foi injustiçado, mas também, “com aquela mania de...” e então é que descobrimos que o cara é interesseiro ou amigo das coisas alheias etc. etc. etc. Tem que ter três etc. No final todos ficam sabendo que o cara mereceu e bem merecida aquela cadeia. Mas não foi o fofoqueiro quem afirmou. Aliás, ele afirma sempre peremptoriamente que não se interessa na vida dos outros, só comentou porque ficou muito constrangido e preocupado com o fato.
É por causa de gente assim muito bem intencionada, que D. Luzia, mãe de Lili, recitou para mim em dezembro/08 a seguinte quadra, aprendida antigamente:
Não tenho medo da cobra verde
Nem dos dentes da lacraia
Tenho mais medo da língua do povo
Corta mais do que navalha.

Recebam um abração bem legal.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 15

VITA, VIVA!
O Dr. David Servan-Schreiber, psiquiatra e neurofisiólogo francês trabalhando nos Estados Unidos, jovem de 30 anos e já com trabalhos reconhecidos pelos seus colegas e, portanto, sendo financiado para suas pesquisas, em plena glória científica, descobriu que tinha um tumor no cérebro e a morte era uma das possibilidades a se levar em conta quanto aos seu futuro próximo.
Sua experiência com a doença o levou a publicar um interessante livro que no Brasil foi publicado pela Fontanar, com o título: ‘Anticâncer, Prevenir e vencer usando nossa defesas naturais’. O livro merecer ser lido e me foi indicado por uma mulher, também um sucesso acadêmico, que se descobriu com a doença. Leia este livro, tendo ou não câncer. Leia-o como um incentivo para viver para além da mera subsistência ou da sobrevivência. Na página 36 ele comenta como, de posse da notícia alarmante, e após a confusão e o desespero inicial e mesmo sem perder o medo e a dor da notícia ele observa sua companheira:
“Algumas semanas depois de receber o diagnostico de câncer no cérebro, tive o sentimento estranho de que tinham acabado de retirar as lentes cinzentas que velavam minha vista. Um domingo à tarde, eu olhava Anna no pequeno cômodo ensolarado de nossa minúscula casa. Ela estava sentada no chão, ao lado de uma mesa baixa, tentando traduzir poemas do francês para o inglês, com ar concentrado e calmo. Pela primeira vez eu a via como ela era, sem me perguntar se eu devia ou não preferi-la em vez de uma outra. Eu via simplesmente sua mecha de cabelo caindo graciosamente quando ela inclinava a cabeça sobre o livro, a delicadeza de seus dedos segurando tão levemente a caneta. Estava surpreso por nunca ter notado q eu ponto as imperceptíveis contrações de seu queixo, quando ela tinha dificuldade para encontrar a palavra que procurava, podiam ser comovedoras. Tinha a impressão de vê-la de repente tal como ela era de fato, liberada de minhas questões e minhas dúvidas. sua presença se tornava inacreditavelmente enternecedora. O simples fato de poder partilhar aquele instante surgia como um privilégio imenso”.
Pouco depois o autor comenta a carta de um senador americano pouco depois de ter recebido um diagnóstico de câncer. O senador comenta que muitas das rusgas e atritos da vida cotidiana, bem como os valores relacionados com a conta bancária, com o cargo incensado pelos bajuladores etc. perderam completamente o sentido. Outras coisas também poderiam ter se desvalorizado à sua visão, no entanto, ao revés do desespero esperado “descubro um prazer novo em cosas que me pareciam antigamente corriqueiras”. Para o senador, almoçar com um amigo ou alisar o gato, se tornaram coisas maravilhosas. Descobriu que “pela primeira vez saboreio a vida”.
Servan-Schreiber arremata dizendo que todos ficamos tristes com a proximidade da morte, porém, “o mais triste não seria, no momento de deixar a vida, não ter nenhum motivo para ficar triste?”. Não ter vivido, não estar presente na vida que se vive...
Quis no dia de hoje escrever este texto para lembrar a cada um de nós e a mim mesmo, o quanto é delicioso dispormos da possibilidade de gozar a vida. Sem necessidade de coisas maiores, de glamour. Gozar aquilo que temos, o sorriso da pessoa que está ao nosso lado, o prazer de uma conversa profunda ou fútil com os companheiros no trabalho, a alegria atenta de poder ter contribuído com a vida ou a saúde de outrem, pôr do sol, nascer, flores ridiculamente pequenas inacreditavelmente elaboradas, besourinhos, sei lá, a lista é infinita. Que não esperemos a iminência da morte para descobrir as delícias da vida.
Em 4/12/09 recebam meu abraço,
Aureo Augusto.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

MALUCO

Tem um cara azucrinando o espírito do povo desde há três dias. É um rapaz que veio morar aqui há algum tempo. Forte, fala mansa, olhar um tanto mortiço. Veio ao posto e foi acompanhado por um bom tempo por nós, pois era portador de uma doença infecciosa de tratamento difícil. Sempre afável, só não era bom para horário. Tinha uma esposa e um filho lindo. À época tomei conhecimento de que usava medicação controlada para uma doença mental – penso que o olhar vinha da medicação – mas não me preocupava, pois estava perfeitamente controlado.
O tempo passou e a família em questão desistiu de viver no Vale. Aqui não é tão fácil para artesãos. No período turístico vem muita gente, mas fora dele não tem muito a quem vender. E, também, a concorrência tem sido intensa entre eles. Conquanto fujam daquilo a que chamam sociedade de consumo, nela vivem e consomem. A lei da oferta e da procura também funciona para os autodenominados ‘alternativos’. Por outro lado em muitos períodos faz frio e chove a mais do que o suportável para quem se acostumou às cálidas praias do nosso nordeste. A nudez característica dos litorais é o mais das vezes mais confortável que o obrigar-se às roupas pesadas da montanha. O fato é que ele e seus parentes se foram.
Agora retorna, transtornado e violento. Persegue as mulheres, diz que vai mata-las. Sua esposa, segundo divulga-se o deixou por que não mais o agüentou. Infelizmente além da verdade de que ele não está nada bem, e estar muito agressivo, há a outra verdade que vem dos medos, do prazer mórbido da notícia ruim. Comenta-se que ele foi expulso de Lençóis porque mutilou uma menina por lá e a população o expulsou. Ora, se ali tivesse cometido o crime, teria sido preso. Em Lençóis tem polícia. O povo não o expulsaria, a polícia o guardaria na cadeia. Aí, um conta que ele correu atrás desta ou daquela mulher. Contaram-me. Mas quem mo disse ouviu de alguém que ouviu de alguém. O que será que ocorreu mesmo? Os loucos sofrem a loucura e as histórias.
Porém ele entrou no posto, se trancou no banheiro e tomou um banho com a ducha higiênica, deixou um bodum tremendo lá dentro. Sua conduta foi ostensivamente agressiva. Não notei nada, porque estava atendendo, mas depois vi a confusão. Ontem quando saí do posto ele se aproximou e sua conduta era bem desafiadora. Sou muito medroso, mas também sei fingir (às vezes a ira passa por cima do medo e aí parece, aos incautos, que sou corajoso) e, mais do que isso, minha larga experiência de medo me fez aprender a lidar com o sentimento. Dialogo legal com ele. De modo que olhei-o nos olhos e comentei que havia sumido. Comentou com a voz desproporcionalmente alta que estava “no pedaço” e queria dinheiro. Fui bem taxativo na resposta negativa. Mudou o tom. Hoje, quando cheguei tentou novamente e foi mais específico exigindo R$100,00. A claridade da minha resposta, “não dou dinheiro a quem não trabalha”, também fê-lo mudar o tom. Ficou mais amigável e disse que queria um dinheiro para ir embora, embora as gatas daqui o atraíam. “Tô com uma gata agora que é um negócio”. Quanta aflição em seu ser! O sorriso não esconde a dor, os movimentos e a postura grandiloqüente não esconde a menosvalia. Há dor neste mundo, e não apenas naqueles lugares onde as guerras mordem a gente, mas também (e em muita medida tão forte) em recônditas paragens dos corações.
Agora soube que a polícia vem busca-lo. Resolveu-se. Resolveu-se?

Recebam um forte abraço, Aureo Augusto

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 14

CONHECER(-SE)
Não é fácil, e não necessariamente por falta de disposição moral, assumir a proposta socrática de conhecer-se como base para a vida. Como função vital. Estudar a si mesmo do jeito que Montaigne queria. O principal desta não facilidade é o fato de que falta-nos, falta-me, percuciência. Falta competência. Percebo isso quando leio comentários a filmes, a livros, a obras de teatro e outras formas de arte, quando releio livros... É impressionante o quanto deixo escapar, o quanto não vejo.
Uma boa parte da população mundial não se interessa por conhecer a si mesmo. Penso, por exemplo, na infinidade de pessoas que, habitando os países muçulmanos satisfazem-se apenas com tocar o chão com a testa cinco vezes por dia e lançar diatribes contra o Ocidente, como se apenas a ambição (que não é pouca) dos países ocidentais fosse a causa de seus males, esquecendo-se dos séculos de estagnação que lhes atingiu pela incompetência em superar os impasses a que levou o poderoso imperialismo árabe, da implícita e mesmo ímpia desigualdade social que sempre os caracterizou, além da ganância de dinheiro e poder dos seus próprios dirigentes (os ayatolás que dominam o Irã rapidamente se fizeram os mais ricos) enquanto ao povo em geral só resta apresentar-se como voluntário para o exército dos homens-bomba. Também me lembro dos palestinos, cujo maior inimigo nominal, Israel, lhes causa menos estrago do que a corrupção e a ação de uma minoria fanática a serviço (freqüentemente inconsciente) de interesses o mais das vezes internacionalistas pan arábicos ou pan muçulmanos, que pouco se interessa pela questão das pessoas que residem na Palestina. Tais interesses nominalmente voltados para salvar as almas muçulmanas, o mais das vezes rezam a cartilha do jogo do poder e da satisfação de processos inconscientes traumáticos, pouco ou nada vinculados à questão árabe, palestina, muçulmana, humana... Penso também nos milhares de cristãos que se crêem compelidos por uma força demoníaca para o mal e que, portanto carecem de pastores ululantes e padres sussurrantes capazes de conjurar o mal que, um pensar cuidadoso sobre o si mesmo traria um efeito, no mínimo, gerador de autonomia. Talvez tivesse razão Voltaire ao considerar que a religião caso não existisse teria que ser inventada, pois que tem o forte papel de servir de freio para determinadas ações perniciosas. Sim, talvez tenha razão, mas, Nietzsche também não se enganou ao considera-la uma crueldade. Quantos se martirizam por ela? Quantos desviam seu caminho por ela? Embora tantos nela encontrem conforto, o que é bom e louvável, outros apenas aprofundam os conflitos, como vimos na Irlanda do Norte (católicos contra protestantes), no Paquistão e outros países da Ásia, onde cristãos são massacrados por muçulmanos, no Iraque onde sunitas e xiitas se matam mutuamente etc. Religião, economia e política, salvações que se tornam maquinações do mal... Creio que devido a nossa incompetência de conhecer a si mesmo, tornando-nos alvos fáceis de manipulações. Claro que o mundo não é feito apenas da minha, ou da nossa, subjetividade. No entanto, solipsismos à parte, o fato é que o não entendimento do que somos em si é causa de grande mal.
Os irlandeses estão longe daqui, bem como os conflitos no Oriente Médio. O Vale do Capão, local onde resido, descansa uterino sob a chuva suave e o gorjeio das aves matinais. Mas em sua devida escala aqui se repete o que no mundo transborda. Cá, como lá, vamos vivendo nossas limitações. O desejo de ser aceito, no mínimo, bem como o desejo de ser mais do que se é, em plano intermediário, além da vontade de ter o poder sobre os demais, mandar, dominar estão pautados, lado a lado, com a vontade de viver em paz, estar em harmonia com os demais e com o ambiente. Alguns moradores me impressionam pela sua capacidade de elaborar um sistema de valores baseados em sentimentos e raciocínios cuidadosos, mesmo que não tenham tido a oportunidade a uma alfabetização. Pessoas como o velho Anísio ou Maninho (Luís Quati). Outro dia, em meio a uma conversa na pizzaria de Daniel (La Piedra), pensei alto que esta coisa de ir a restaurantes é muito antiga. Araci, senhora sofrida e vivida neste vale, mãe e avó, de repente, do nada, me perguntou:
- E Deus, Aureo, existe desde quando?
Surpreso fiquei, confesso, com a pergunta. Ela queria saber. E saber é algo maravilhoso. Claro que já havia aprendido no catecismo e nas missas que Deus é eterno. No entanto, o que é e como é esta eternidade. Melhor seria um filósofo e educador para conversar com ela. Na falta, comentei para ela que dentro desta linha de pensamento que inclui a existência de Deus e sua eternidade, há cerca de 20 dias Deus existia. Claro. Há mil anos também. Há um milhão de anos idem. Para onde quer que viajemos no passado e no futuro ali Ele estará. Disso a conversa derivou para a própria existência humana e a possibilidade de uma alma e de que também seja ela eterna. Os olhos dela brilhavam e mesmo, em dados momentos marejaram, com as descobertas de uma conversa! Ao terminar o papo, ocorria um clima entre nós de descoberta da nossa amplitude. A, por assim dizer, literatura que havia sido experimentada na conversação, nos trouxe a sensação de que há e somos algo maior do que nossos pequenos e grandes egoísmos. E de que podemos conduzir-nos de melhor forma do que o fazemos no dia a dia, na medida em que mais vezes nos portemos com a consciência desta consciência. Que nos pode levar para além da política politiqueira, da religião sectarista, da economia voltada para o mero ‘levar sempre a melhor’. Sem negar política, economia ou religião, como elementos reais e componentes históricos inegáveis da vida e saúde humanas.
Recebam um forte abraço,
Aureo Augusto

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

NÃO SENTIR DOR É UMA MARAVILHA

Não sentir dor é uma coisa maravilhosa!
Ultimamente tenho tido problemas na coluna. Além de já tê-la de longa data meio requenguela, há alguns meses, uma sucessão de eventos, que vão desde a mera bobeira de pegar pesos na posição errada até bancos que quebraram quando sentei, complicou o funcionamento da minha coluna. Vai daí que as dores têm participado de meu dia-a-dia, dificultando movimentos, colando-se a cada uma das minhas tarefas, sublinhando os momentos dos dias. Faço quiropraxia com Ian, um cara gigantesco, mas um doce, cujo cotovelo pode ser um dos mais poderosos instrumentos de tortura terapêutica que já existiu na face da Terra. Quando saiu das sessões parece que não tenho peso sobre os ombros. É uma delícia. Também após as aulas de Pilates a sensação é muito boa!
Aliás, vale um parêntesis: Imaginem vocês que o Vale do Capão, conquanto seja um lugarejo de nada nesta imensidão quase erma que é a Chapada, com cerca de 1500 almas vivendo aqui, oferece a seus moradores coisas insuspeitas. Ademais da beleza inacreditável, dos eventos meteorológicos inesperados, como céus e postas de sol de surpresa surpreendente naqueles invernos frígidos, ou os mesmos céus completamente azuis em primaveras ventosas, cachoeiras rompendo o silêncio das serras como dentes brancos risonhos nas chuvas dezembrinas... Bom, não vai dar para dizer tudo! Pois é, como se não bastasse a beleza natural ainda somos brindados com uma escola de circo, dois grupos de capoeira, coral, reizado, drama (um fenômeno cultural tradicional aqui no Vale), Pilates, Quiropraxia etc. E esse ‘etc. ’ não é pouca coisa. Embora para mim, o melhor de tudo mesmo é receber um abraço de Beli, uma gozação de Lili e Luís, conversar com Salvador, Luís Quati, Dozinho, Gilsinho, Dalva, Beli e tantos outros antigos daqui... Mas voltando à dor:
Muito devargazinho meu organismo vem se descolando da mazela nas costas. Acompanho a melhora no uso do cataplasma de argila, do gelo, das mãos enormes de Ian, dos movimentos no Pilates. Aos poucos os movimentos começam a aerear-se do sofrimento. Hoje saí para caminhar pela manhã e contatei com a não-dor. Uau! Indiscutivelmente nada como o contraste! Não estou livre do desconforto, mas só a melhora me diz de um mundo de horizontes dourados.
Quando era jovem padecia de dores abdominais, diarréias e desconfortos muito desagradáveis. Era atroz. Porém com o naturismo minha vida mudou radicalmente. Hoje, muitas vezes estou fazendo qualquer coisa, nadando ou roçando, cuidando de doentes... O que seja. De repente me dou conta de que não mais sinto aquelas dores. Livrei-me delas há mais de 30 anos e ainda não me acostumei, no sentido de que ainda me surpreende esta extraordinária liberdade que é estar sadio.
Em 26 de novembro de 2009 recebam um abraço sadio de Aureo Augusto.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

DROGAS

DROGA
Vejam que coisa: Têm chegado alguns jovens aqui no Vale do Capão com uma característica. São viciados em drogas e os pais despacham para cá com a idéia de que, como aqui é um lugar tranqüilo, eles estarão em certa medida protegidos. Também afastam o problema para bem longe deles. Longe dos pais, perto de quem não tem nada a ver com a história. Esta turma fica aqui sem fazer nada a não ser fumar maconha e estimular os adolescentes locais a fazer o mesmo. Assim, não só não melhoram de seus vícios como aumentam a incidência dos mesmos aqui no Capão. Incomodam os vizinhos e contribuem para que os filhos daqui percam seus rumos. E isso é unir o inútil ao desagradável.
Há algum tempo os donos de uma casa de materiais de construção foram acordados no meio da noite por um jovem desesperado. Sonolentos perguntaram o que desejava. O rapaz pedia uma lata de cola, pois precisava consertar algo. Mas era no meio da noite. Teriam que ir abrir a loja e seguramente tal conserto não era tão urgente assim. Para aquele viciado em cheirar cola, era. Não atenderam ao pedido e, depois, retiraram das prateleiras toda a cola que tinham. Felizmente este rapaz não suportou o Vale. Foi embora. Aliás, esta é uma sorte que temos: Conquanto tenhamos uma vida rica em atividades (circo, capoeira, teatro, pilates, dança etc.), nunca é tão cheia quanto na cidade grande; ademais, faz frio, chove mais do que em outros lugares, e, por fim, muitos acabam contraindo enfermidades por falta de cuidados de higiene, o que os leva a buscar o litoral, quente, ensolarado, com facilidade de transporte e muitas “baladas”.
Nós não temos aqui uma incidência de viciados como nas cidades grandes. Mas temos usuários. Alguns jovens nativos me causam uma certa tristeza quando os vejo. Há aqueles que de quando em vez fumam maconha, aliás, esta erva chegou no Capão muito antes da sua descoberta pelos citadinos de outras paragens. Sabe-se que alguns dos idosos de quando em vez a utilizavam. Porém existem alguns rapazes (e moças, porém bem menos) que estão se afastando de trabalho e escola, permanecendo naquela modorra aflita e incapacitante. Coloquei há pouco a palavra aflita porque, embora aparentem total tranqüilidade com o que fazem – manifestam até um certo orgulho por sua pseudo-opção, como se fizessem parte de uma elite – todos são muito tensos como verifico nas vezes em que fazem consulta no posto. Há uma insatisfação impregnada em seus corpos. Eles não querem trabalhar seguindo o exemplo dos seus pais, até porque viram os mais velhos labutarem tenazmente por exígua recompensa. A vida do camponês não é nem um pouco romântica. Seus pais laboraram arduamente e sempre com grande dificuldade, daí os jovens não se entusiasmam muito em seguir-lhes o rumo. Porém nem sempre encontram uma alternativa realista à fantasia de viver como “os de fora” sustentados pelos pais.
Temos exemplos, como Lili, um jovem empreendedor que produz de tudo em sua horta e pomar, já tem quitanda e caminhão. Isso conseguido com luta e uma visão de economia superior a de seus pais. Nininho é outro que começou como guia, estudou, foi presidente da associação dos moradores onde se destacou e hoje é vereador (um dos poucos coerentes). A tristeza é que nem todos os jovens percebem que o caminho escolhido por estes dois (e outros) é mais seguro do que a fantasia de viver no país dos Lotófagos (na Ilíada Ulisses chega neste país onde quem come uma certa folha esquece de tudo).
O álcool ainda permanece sendo a grande droga dos lugares pequenos, mas segundo informações obtidas nos inúmeros contatos que tenho com pessoas de outras cidadezinhas das redondezas, maconha, cola e mesmo cocaína e crack estão avançando. Há um lugarejo na estrada para Irecê onde a incidência é chocante. Como não temos um policiamento adequado os traficantes ficam mais livres para agir. Se nas grandes cidades já é difícil o controle, imagine no sertão.
Por isso sou tão insistente defensor da instalação de uma sub-delegacia de polícia no Vale do Capão. Claro que não penso que polícia resolve o problema. Afinal, o problema não é de polícia. Passa por inúmeras questões que vão desde a criação dos pais, relacionamento pais/filhos, expectativas sociais, problemas pessoais, dificuldades no próprio processo de crescimento somato-psíquico, necessidade de transcendência etc. etc. etc. É muita coisa. Mas a polícia pode coibir certas condutas como a que descrevo agora:
Um cara bateu em uma porta de uma pessoa nativa, foi atendido por uma criança e pediu fósforo. A garota entrou e trouxe o fósforo, o cara acendeu um baseado e em seguida ofereceu-o à criança. Por sorte a mãe chegou na hora e fez um escândalo. Às vezes falta um mínimo de bom senso.
Talvez este texto traga a idéia de que as drogas invadiram o vale. Invadiram. Mas não significa que a cada passo você encontra alguém usando-as. Não é assim. Não se trata de que a vida está ficando intratável ou impossível. Porém, aqueles que temos bom senso, estamos preocupados.
Recebam um abraço,
Aureo Augusto.

sábado, 21 de novembro de 2009

AMBIÇÃO

Escutei a chuva roçando o telhado à noite e despertei para o mato curvo, ostentando grossas gotas em suas pontas. Há tempos perguntei-me, em uma poesia, porque os garimpeiros saíam a revolver as serras, engrunar-se na terra, se o orvalho brilha como diamante à luz matinal. E é! Vero como luz, como pedras preciosas, pérolas, peças lapidadas por mãos invisíveis, diáfanas. Nós, humanos, somos seres ambiciosos e não vejo muito de demais neste fato. Pode ser em parte por isso que conseguimos sobreviver, continuar no tempo, enquanto outras espécies são agora memórias fosseis nas pedras silurianas, devonianas ou cambrianas. Quiçá nossa ambição tenha feito com que o presente seja repleto de confortos (às vezes excessivos). Digito e a letra brinca de existir na tela, impressionando meus olhos, impressionando-me a tecnologia. Ambição.
Ambiciono crescer ou ter em mais o que agora em menos sou ou tenho. Isso faz parte em parte do dom de ser gente humana e olhar os horizontes não como paredes, não como limites. Somos também o dom de ambicionar ir além.
Ambiciono o dom de estar presente em cada momento e comunicar-me com as situações, fatos, pessoas e coisas em assiduidade total. Ambiciono ter o olhar que penetre além de fótons, que alcance almas em diálogos. Ambiciono penetrar percucientemente o encontro de tal modo que um e um, mais que dois, sejam esse um que é o normal da verdade de que não há separatividade no final das contas existenciais. Ambiciono que esta seja uma trilha habitual onde não aconteça a habituação mecanizadora das relações. Ambiciono viver. Diria: Viver pleno, mas isto é redundância.
E que este ambicionar esteja revestido da lição que me deu o garimpeiro quando me disse que ao ir para a lavra cumpre querer, desejar, porém, sem querer ou desejar. Sabedoria daquela gente zen que lavra a si nas buscas mosteiriticas diuturnas, sabedoria de trapenses secularmente dedicados ao som do silêncio, sabedoria de um sujeito eiro e vezeiro nas trilhas ermas das serras deslavadas desta Chapada Diamantina. Ambiciono, portanto, não ambicionar. Ambicionando.
Quem sabe um dia possa ser eu um mestre da ambição. Tanto que dela não me sirva senão daquela forma negativa.
Diz uma história que Sidarta Gautama, o Buda, estando a meditar, dormiu. Ao despertar aborreceu-se porque dormindo perdeu a atenção. Deixou de estar com o ser posto no ato. Olvidou o existir. Claro que a história é falsa, porque sendo iluminado o Buda, não aborreceria de si. Não teria essa sisudez insensata. Mas a história não pretende ser a verdade e sim contá-la na mentira, que este é o dom das lendas. Sabemos. Ambiciono aquela atenção de Sidarta, mesmo que em mim algo me aquilata como muito menos que Buda, muito distante daquela competência plácida desta gente que soube visitar aquele lugar onde as fronteiras deixam de fazer sentido.
Perdido é o estado de todos nós quando desatencionamos de nós e do todo e este é o estado comum, lugar comum. Mas como me disse o garimpeiro, atento, sem atenção. Ou dito de outra maneira (como já em outro lugar coloquei) sem tensão.
A chuva brincou no dia de hoje com não apenas telhados ou folhas, colou-se dócil e fácil ao solo plástico e os caminhos ficaram uma coisa enquiabada. Às vezes olho os caminhos e sinto paz. É como se nada mais houvesse a ambicionar. A ambição que é a vida – que todo vivo quer viver – jaz em silêncio, enquanto o olhar descortina a paisagem luminosa, ainda que a noite chegue.
Em 18/11/09, Aureo Augusto.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 13

Tenho estado sumamente atarefado aqui nesse bucólico lugar, que a maior parte das pessoas acha que é o lugar do repouso e da tranquilidade. Na verdade é, para quem não mora aqui. Mesmo assim, cheio de afazeres, tenho a grata satisfação de poder, no caminho de casa deliciar-me com a paisagem, tomar banho de rio, conversar com meus vizinhos... Bem, hoje não é dia de Medicina no blog, mas estarei viajando amanhã, até o final de semana, por isso coloco o texto deste período, desta vez comento a longevidade de um artista que gosto muito, o velho Hokusai:
HOKUSAI E A VELHICE
Paul Johnson (in Os Criadores) transcreve uma carta do célebre artista japonês do século XIX, Hokusai Katsushika:
“Desenho formas e objetos desde os seis anos... Aos 50, havia produzido um número infinito de desenhos. Mas não estou satisfeito com o que fiz antes dos 70... aos 73 comecei a entender a verdadeira forma da natureza dos pássaros, peixes e plantas. Aos 80 havia progredido muito. Aos 90 começarei a chegar à raiz de tudo. Aos 100, terei chegado a um estado superior de arte... aos 110, cada ponto e linha terão vida”.
Hokusai nos informa do que é envelhecer, uma vez que viver é arte, como o é a pintura. Vimos em uma crônica anterior que Turner não se preocupava muito com a conservação de seus trabalhos, o que os fez se deteriorar rapidamente. Isomorficamente, ou seja, da mesma maneira, tratamos o nosso corpo, a nossa vida. Freqüentemente olvidamos o futuro e esquecemos de comer, dormir, rir, pensar, não pensar, sentir e nos exercitar satisfatoriamente. Hokusai conseguiu chegar à idade em que alcançaria a raiz de tudo, pois morreu aos 99 anos de idade. Sua vida foi bastante sofrida, mas uma combinação de genética, dedicação ao que gostava de fazer, alguma excentricidade, forte desejo de aprender coisas novas, atividade etc. deram-lhe uma velhice admirável.
Hokusai nos leva a pensar que em muito somos o que de nós fazemos. Conheço pessoas que têm excelente genética, porém a desperdiça. Já outros, não tão abençoados pelo conjunto de genes que herdaram, usam o que têm com primor e, portanto, alcançam uma vida mais longa e prazenteira do que se esperaria para eles. Costumo pensar que as pessoas são como as portas. Se estas são feitas de jacarandá, tendem a durar muito, mesmo que não tão bem tratadas. Quando construídas com uma madeira menos forte, como o pinho, não necessariamente se deteriorarão rapidamente. O diferencial é o cuidado.
Agradeço aos cientistas que nos informam do valor dos nutrientes para o nosso presente e futuro, bem como àqueles que ensinam que devemos nos exercitar tanto para manter o funcionamento presente quanto para o próximo momento. Estão certos e não podem ser esquecidos. Mas aqui quero aproveitar o exemplo do mestre japonês para trazer outros aspectos.
Sua arte foi produto da capacidade de aprender a técnica ocidental combinando-a com as tradições de seu país. Ele não teve preconceito quanto a progresso e tecnologia, usando-os a favor de seus objetivos artísticos. Além disso, subordinava muito de sua produção ao mercado, isto é, costumava produzir aquilo que as pessoas naquele momento queriam (ou o que o governo permitia, nos muitos momentos em que viveu sob regimes controladores), sem, contudo, deixar de imprimir sua marca pessoal ao que fazia e, o principal, queria qualidade, e ele era o principal motor de sua excelência. Mas do que qualquer outra pessoa buscava fazer o melhor. Não como uma neurose e sim como um prazer. Avaliava um trabalho com os olhos complacentes de quem sabe que poderia fazer melhor, mas apenas depois de haver feito aquele trabalho. O que fazemos hoje, da forma como sabemos fazer agora é o que nos prepara para no futuro construir coisas melhores. É esta compreensão que nos dá uma sensação de paz. Nos confere um relaxamento no produzir e o torna uma forma de epicurismo que é a fruição da existência. E já que menciono esta filosofia fecho com as palavras de Epicuro:
“Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade”.
O velho Hokusai não se preocupava com a morte.
Escrito em 25/7/06.
Recebam um abraço carinhoso de Aureo Augusto

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 12

TURNER E A AUTOPOIESE
Já comentei em outro momento da beleza e fragilidade das pinturas de Turner, o extraordinário pintor inglês que lidava menos com tintas do que com luz. Hoje quero, ainda usando o mesmo pintor, comentar a capacidade de regeneração do nosso corpo.
As pinturas não têm a capacidade de se regenerar, ou se defender. Turner desconhecia o poder do mofo sobre os quadros e existem registros de que em seu ateliê, o bolor grassava sobre as tintas e mesmo sobre os quadros. Aqueles que ele mais gostava, guardava-os em um porão escuro, ambiente ideal para o desenvolvimento de fungos. E os objetos não tinham e não têm nenhuma defesa contra as intempéries. É por isso que adoro usar madeiras retorcidas e atacadas pelos elementos para construir objetos, molduras e mesmo quadros. As madeiras, uma vez que deixam de ser parte de um organismo vivo tornam-se inertes, incapazes de reagir à ação dos elementos, ficando repletas de buracos e distorções quase sempre muito bonitas. As máquinas tampouco reagem. Elas não se adaptam ao mundo, não dialogam com o Universo.
Uma vez viajava pelo deserto de Atacama e tomei uma estrada que ia da cidade de San Pedro de Atacama, no Chile, para Salta, na Argentina. Para alcançar meu destino teria que cruzar a cordilheira. A certa altura o carro parou porque, como me ensinaram os nativos, ‘apunou’. Ele não se adaptou ao ar rarefeito acima de 2500m. No entanto meu organismo não apunou. O ser humano inventará um sistema em que sensores captem as alterações do ar para que carros não apunem, porém sempre será uma externalidade. O meu corpo adapta-se intrinsecamente, uma máquina não se adapta, ela é adaptada, ou preparada a se adaptar por um ser humano, ou seja, um elemento externo à máquina. Se uma máquina for atacada por fungos, seu destino é embolorar, sem resistência, até perder a capacidade de funcionar. Já o ser humano funciona de maneira diferente. Há nele um sistema intrínseco de defesa, que analisa o que o mundo lhe oferece, interage, decide como atuar e reage. Trata-se do conjunto formado pelos sistemas imunológico, nervoso e glandular, que está sujeito a falhas, apesar de sua perfeição, mas que 24 horas por dia nos protege. Outrossim, ao contrário das máquinas, estamos em permanente interação construtiva com o ambiente. Crescemos, trocamos elementos, e, quando feridos, o corpo por si só inicia um processo de recuperação, reconstruindo as partes perdidas, dependendo de sua extensão. O corpo se cria a si mesmo todo o tempo, e isso é autopoiese, palavra que, tão técnica que é, tem a mesma raiz de poesia. Hipócrates, chamado pai da Medicina, dizia, cerca de 400 anos antes de Jesus nascer, que se abrirmos com machados uma clareira no meio do bosque, este por si só se recompõe, desde que o deixemos por conta própria. Para ele, havia algo, a Fisis (natureza), uma espécie de energia que recompunha os organismos. E na verdade, vemos isso na mata. As plantações abandonadas logo são tomadas pelo bosque. Aristóteles chamou a isso de Enteléquia (ou aquilo que se cria a si mesmo). Reconheciam na floresta um super organismo, e em nosso corpo um organismo, e como tal dotado dessa capacidade de, se o deixarmos em paz (ou seja parando de agredi-lo), ele se recupera por si só.
Sorte que não somos como as pinturas maravilhosas de Turner, pois, poeticamente, somos criadores de nós mesmos.
Aureo Augusto, 26/7/06.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

MUITA COISA

Algo me diz que estou com coisas demais na cabeça. Esse negócio de trabalhar em um lugar muito legal, como o PSF (posto de saúde da família), está me gerando uma quantidade de tarefas grande e de repente percebo-me algo sobrecarregado. Vejam o que aconteceu há pouco no posto:
Na reunião da equipe Neide, uma das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), me disse que há necessidade de fazer visita domiciliar a dois idosos que apresentam um quadro de hipertensão (pressão alta). Expliquei que está difícil neste momento cumprir esta deliciosa obrigação por causa da sobrecarga. Como as medicações que eles usam está para acabar, e na impossibilidade de vê-los, combinamos que desta vez apenas renovo as receitas do casal para que não parem de usar os remédios e assim que possa os visito. Isso Rozeli (ACS) me cobrou visita para outro idoso e nem deixei Marlene (ACS) cobrar minha ida a uma outra idosa acamada em sua área, pois já falei logo que ontem fui com Gleiton (o enfermeiro) ter com ela e já orientamos a família quanto ao que fazer. Então, terminada a reunião, Neide de imediato trouxe a minha sala as fichas dos dois idosos, entregou-me nas mãos e falou que só estava me esperando para seguir suas tarefas. Naquele momento estava fechando uma frase do relatório da reunião no computador. Alguns minutos depois atendi a uma senhora com uma dor na perna. Terminada a consulta saí e chamei a senhora cuja ficha Neide tinha colocado em minha mesa junto com a do marido. Então outra pessoa que estava na sala de espera me disse que ela tinha chegado primeiro até do que aquela senhora que eu havia atendido, e que ela não se importou dada a idade da mulher. Então a atendi. Quando saí chamei novamente as pessoas que apenas deveria fazer a ficha. Como todos perceberam meu erro começaram a rir, as ACS, Marilza, a enfermeira, e ao se dar conta do que acontecia, até o povo na sala de espera. Só então me contaram o que se passava. Neste momento no posto todos se esqueceram de seus achaques ou de seus trabalhos (no caso dos funcionários) e todos juntos nos pusemos a rir gostosamente. Naturalmente que ninguém reputou meu equívoco ao fato de estar com muita coisa na cabeça e sim aos meus cabelos canosos (para os mais jovens, canoso é o cabelo branco no linguajar de antigamente). O episódio pelo menos serviu para divertir às pessoas que sofrem e que vem aqui nos visitar, o que, em muita medida é também uma cura.
Mas o fato é que não posso me permitir estar fora de mim. Não é difícil ausentar-se de si, ainda mais para um tipo um muito esquizóide como eu, mas estar dentro deste corpo e aqui neste delicioso lugar é muito bom, em nenhum momento devo desperdiçar esta oportunidade.
Recebam um abração, Aureo Augusto em 12/11/09.

MEL DO BOM

Olhem que notícia legal:
No I Congresso Nordestino de Apicultura e Meliponicultura e Feira Cadeia Apícola o Vale do Capão brilhou, pois a nossa Associação Flor Nativa que congrega os produtores locais levou primeiro lugar como o MELHOR MEL DO NORDESTE. Sentiram o drama? Embora eu não seja apicultor estou cheio de orgulho com os meus vizinhos. O mel do Capão já tem o título de orgânico e sempre ganha prêmios em congressos.
Este reconhecimento é muito bom, pois quem trabalha fica feliz com isso.
Viva!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O MURO DE BERLIN E NÓS

Já contei isso em outra parte, mas é bom lembrar. Um dia estava em casa quando chegou Dozinho esbaforido. Quando o atendi me disse que estava preocupado com as notícias que a rádio estava trazendo com insistência, mas que ele não entendia nada.
- Sabe o que é Dr. Aureo? Estão falando toda hora que caiu um tal de um muro. E falam nisso demais como se fosse uma coisa muito importante. O que é esse muro?
Demorei algum tempo para entender o que se passava. Fiz algumas perguntas e de repente caiu a ficha. Exclamei:
- O muro de Berlim! Caiu o muro de Berlim!
Duro foi explicar ao meu amigo o que era este muro, e qual a importância sócio-histórica. Naquele dia, tive também que explicar a Landinha, que à época trabalhava para mim, cuidando da casa. Contei-lhe sobre a II Guerra e nazismo, e que a Alemanha fora dividida em duas, ficando uma parte sob o domínio da Rússia comunista enquanto a outra tinha sido dividida entre as potências vencedoras do ocidente. Cuidei de usar uma terminologia o mais simples possível. No dia seguinte tendo que ir à rua (a vila onde se aglomeram as casas aqui no Vale) encontrei-a, de pé na sala, assistida por uma platéia de parentes e vizinhos, explicando para todos, a Alemanha dividida e a queda do muro. Ela não percebeu minha presença e, portanto pude escutar parte da conversa. Ali descobri como surgem as lendas. Como um homem forte passa a ser Hercules ou um governante se transforma em um Deus. Como um bando de guerreiros maltrapilhos é transformado em um grupo de seres divinizados. Ela transformou o que eu tinha falado (sem faltar com a verdade) em uma outra coisa, bem mais interessante, diga-se. Adorei!
Mas o muro caiu e hoje se comemora esta data. Uma libertação! Que caiam outros muros! Principalmente, que caia o muro que construímos quando assumimos a posição de que existem culpados para os nossos males. Sim, culpados bem que existem. Porém, sempre que deixamos toda a imputabilidade pelas nossas mazelas recair sobre outrem, deixamos de assumir nossos erros e defeitos. Fugimos de nossas responsabilidades. Culpamos os comunistas, os ricos, os latifundiários, os capitalistas, os donos de empresas, os Estados Unidos, os políticos, os muçulmanos (e estes aos cristãos), os colonizadores, e, assim, não olhamos para nós mesmos. Não vemos que no dia-a-dia roubamos o tempo dos demais quando nos atrasamos para os encontros marcados, esgarçamos a trama social quando subornamos o guarda rodoviário que nos flagrou em erro, quando fazemos pequenas trapaças e roubos no supermercado, quando destratamos pessoas porque estão em condições econômicas e sociais menos favorecidas, quando nos deixamos levar pelo populismo de certos políticos, quando não votamos com responsabilidade... A lista é longa. O leitor seguramente lembra de outros itens.
A principal liberdade é, em realidade, a capacidade de assumir a responsabilidade pela própria vida.
Um abraço bem gostoso para todos,
Aureo Augusto, em 9/11/09.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 11

TURNER E A VELHICE
Tenho um livro de Michael Bockmühl sobre o pintor inglês J.M.W. Turner. O subtítulo do livro é “o mundo da luz e da cor”. E esta frase define Turner, que pode ser considerado um precursor do impressionismo, movimento artístico que resultou em obras de beleza ímpar, centradas na observação e reprodução dos jogos de luz impressionando as coisas. Como também aprecio labutar com os pincéis, levo horas bebendo a luz presente nas ilustrações do livro. Turner foi um dos pintores mais extraordinários, não só pela sua enorme produção quanto pela qualidade e liberdade desta produção. Há pouco, lendo o livro de Paul Johnson, Os Criadores, descobri que as obras do grande pintor estão se deteriorando rapidamente. O processo de envelhecimento começou desde que foram pintadas. Johnson nos informa que poucas delas ainda conservam seu brilho e frescor (dia que ‘The Temeraire’ como uma das que estão bem preservadas, o que me deu conforto ao coração já que é das minhas prediletas). Cita palavras de Ruskin, grande crítico, que comentou que Turner pintava “para deleite imediato” e que “não pensava no futuro”. E desde este momento podemos fazer um paralelo conosco e o nosso procedimento quando tratamos do corpo.
A maior parte de nós lida com o corpo como Turner lidava com a pintura, para deleite imediato. Lembro-me que certa feita fiz um quadro, uma aquarela. Cerca de cinco anos depois, de passagem pelo Rio de Janeiro, coincidiu de passar pela casa da pessoa que comprou o quadro e consternado percebi que a rósea pele do retrato agora era de uma anêmica palidez. Foi aquela experiência que me fez interessar por ter mais cuidado no uso das tintas. A partir daí procurei saber a durabilidade dos pigmentos e também a usar para aquarela papel livre de ácidos, pois estas substâncias reduzem a vida das cores com o passar do tempo. Turner não estava nem aí, como se diz hodiernamente. E, como ele, pelo prazer imediato prejudicamos o nosso futuro. É gostoso ficar se enchendo de sanduíches diante da televisão, ou, deixar-se levar pelo hábito de comer todos os dias as mesmas e restritas comidas. De cada um desses costumes vêm os males do sedentarismo (problemas cardiocirculatórios e obesidade) e deficiências nutricionais. Como resultado disso, deterioramos mais rapidamente, ou seja, somos presas fáceis de radicais livres e outros fatores de envelhecimento. Não cometer certas loucuras durante a adolescência e o início da vida adulta é também não cuidar do futuro, pois que carecemos de atitudes não alinhadas como forma de experimentar para encontrar o equilíbrio quanto ao que somos, ou seja, assim como não devemos sacrificar o futuro pelo gozo do presente, também não devemos sacrificar o presente pelo futuro. Devemos viver, todo o tempo, e não apenas sobreviver. Viver o presente (com vistas ao futuro) e não viver o futuro (perdendo de vista o presente).
A velhice não é a melhor idade. As limitações que nos são impostas pelo desgaste, fruto do tempo, não são necessariamente agradáveis. Mas, se tomamos alguns cuidados em tempo hábil, tais limitações tendem a ser menos imperativas e, assim podemos aproveitar certas vantagens que a velhice nos oferece, como a possibilidade de exercer a vida sob a ótica da experiência de quem viveu. Borges, o escritor argentino, em uma entrevista comentava que durante sua vida sempre fizera mais ou menos as mesmas coisas, lia os mesmos livros e escrevia do mesmo jeito desde que era muito jovem, porém a criança e o jovem, registrou, não sabem o que não podem fazer e o que podem. Para que alguém saiba dos próprios limites, precisa experimentar a vida. E conhecer os próprios limites é um grande dom.
Aureo Augusto, em 25/7/06.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

FINADOS E VIVOS

Josemar me contou, e Dozinho confirmou com inúmeros exemplos que antigamente aqui no Vale do Capão, em dia santo ninguém trabalhava. Dozinho contou que tal pessoa, parente de tal outra, filho de fulana, avô de cicrana, disse rindo que apesar de ser dia de São Bartolomeu ia cuidar “de eu”. Lá se foi pra roça com a enxada e nisso puxou pra si uma jararaca que lhe pôs termo à vida. Josemar, cujo pai afirmava com todas as letras não acreditar em nada dessas coisas de superstição, e que nisso segue bem trilhado o caminho do pai, logo rispostou que o cara ia ser picado de cobra naquele dia fosse o tal dia de Bartolomeu ou Sebastião, ou de ninguém. Dozinho não discutiu, nem eu. E pensei que bem que Jó tem razão. Até comentei com ele que nessas coisas tudo o que acontece valida a crença. Lembrei das mulheres que antigamente após o parto ficavam de resguardo e o tal podia durar um mês, a mulher na cama. Pelo demasiado tempo de imobilidade, podia desenvolver um coágulo nas veias da parte posterior do joelho (trombo), o qual assim que levantasse se deslocava e entupindo alguma artéria no coração, pulmão, cérebro ou outro órgão de importância, dando o maior problema. Mas aí, quem ia dizer que a culpa era do excesso de resguardo? Todo mundo logo dizia que foi porque demorou pouco.
Isso conversávamos porque era dia de finados e o Capão cheio de gente em visita, muito trabalho para a gente daqui. Claro que o povo foi visitar seus mortos, deixar-lhes flores, ajeitar aqui e ali uma cruz ou tampa que se abalou com a chuva recente e forte... Mas as visitas não puderam ser daquelas demoradas. É que embora mereçam consideração os defuntos, os vivos carecem de satisfação das suas necessidades. O trabalho esperava a todos e foi satisfeito, bem como os bolsos no final do mês.
O mesmo Josemar, juntamente com seu filho, faz um trabalho que é deveras lindo e em alguma medida tem a ver com a morte. Eles vão ao rio e recolhem os paus de enchente (as madeiras que o rio traz quando cresce muito) e escava velhos troncos há muito enterrados na areia e no lodo. Com esta madeira (canjerana, pau d’arco, louro do bom, jacarandá etc.) que ficou dezenas de anos sob a água, em parte corroída pelo intemperismo, eles fazem móveis muito bonitos, rústicos e cuidados, que eu (e muitos visitantes) admiro. É um trabalho árduo e dele resulta que aqueles troncos mortos adquirem uma nova vida. Ontem mesmo fui ver suas últimas produções e estou de namoro com um sofazinho lindo de ver que gostaria que todo mundo visse (alguém vai dizer pra eu botar aqui no blog uma foto; meu sobrinho, Thiago, já me explicou como – pergunte seu eu aprendi). Acho que vou ter aquele sofá em minha casa...
Também gosto de trabalhar material que aparenta não servir para nada. Gosto de transformar o feio ou estragado em algo que cause prazer estético ou que represente utilidade. Uma vez olhando uma moldura que havia feito para um quadro pensava comigo que a madeira que usei poderia estar no lixo, ou em algum fogão, mas que limpando ali, lixando acolá, pintando, adaptando, o fato foi que ficou uma coisa bem bonita. Enquanto reconhecia a beleza pensava em quanto dos meus defeitos eu havia transformado em coisa boa ou bela. Tive doença incômoda que me fez trilhar caminhos de saúde que acabaram por colaborar com muitas pessoas; minha irascibilidade é uma agressiva forma de produzir muito, para o bem; minhas enormes procrastinação e preguiça são instrumentos de criação de coisas bem legais quando as uso com sabedoria. Sou um pedaço de madeira bem corroído e esbodegado, mas bem que consegui transformar tais coisas em alguma arte. Gosto de pensar-me assim. Infelizmente sou lento no proceder, poderia ter a obra de arte que é minha vida bem mais, digamos, pronta, mas enfim, até agora até que as coisas estão se saindo bem legais!
Sem mais e com um abraço, Aureo Augusto.
PS: Agora me digam se não é uma maravilha ter vizinhos como os meus: Abri a porta e tropecei em uma caixa com tomates cultivados organicamente. Lindos de deliciosos. Não sei quem os trouxe. Mas sou grato.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 11

DEVO MORRER
Devo morrer. Mais uma vez chegou um momento destas transformações tais que a pessoa que por isso passa, passa por uma morte! De quando em vez isso acontece, por isso deixamos de ser crianças e depois abandonamos o corpo da adolescência e por aí vai. Às vezes a mudança é mais profunda, pois não se revela na alteração dos corpos. Trata-se da descoberta e compreensão da necessidade de superação de determinados padrões de comportamento ditados pelo bom senso em dado período, tornados neuróticos (que é o mesmo que dizer: anacrônicos) com a passagem do tempo.
Mas, também devo acrescentar que aquilo que se tornou neurótico, portanto um peso, é aquilo a que estou acostumado. Se por um lado experimento o alívio por haver deixado para trás algo que desde há muito me causava incômodo, me custava muita energia manter, de outra maneira é também algo que configurava uma rotina de identificação. Olho-me no espelho e descubro-me outro. Desacostumado deste outro, estranhado entristeço. Vem a mim uma xenofobia de mim, ou melhor, deste eu que é novo, estranho, estrangeiro na terra daquilo que eu sou. Pior, aqueles que me conhecem pensam que eu sou o eu ao qual se acostumaram. Acreditam que ainda serei o mesmo no qual sempre depositaram suas esperanças de carinho, de brigas, de birras, de irascibilidade, de infantilidade, de jogos de dominação etc. Que não nos enganemos: No outro quando o encontramos esperamos aquilo que cremos seja o melhor para nós, ainda que esta crença tenha o silêncio das coisas do inconsciente. Existem algumas pessoas das quais esperamos sempre uma guerra. É horrível quando nos decepcionam. D’outras preferimos esperar um eterno ombro amigo. É horrível quando nos decepcionam. Há aquelas de onde nos nutrimos de pirraças discretas, e aquel'outras donde haurimos jogos de sedução, fingidas recompensas, falsas complementações, fugazes amores irrealizáveis, inigualáveis, porém inexistentes promessas de futuros adoráveis... Quando o outro muda e não nos avisa caímos no vazio do inesperado. Por isso aviso: Estou mudando!
Soma-se aos meus impedimentos que atrapalham meu processo de mudança, minha tão cara procrastinação, meu adorável tradicionalismo, minha companheira de tantas horas solitárias, a preguiça e meu amado conservadorismo. Minha diligência nas tarefas cotidianas me ajuda no esconder de mim o caminho da saída deste emaranhado de rotinas psíquicas que me foram tão úteis, mas que agora se mostram um estorvo. Também, minha habitual cegueira revela-se um forte apoio na manutenção do fardo mofado que devo abandonar. Soma-se aos meus próprios impedimentos o fato de que meus amigos, parentes, a gente que amo e também a que detesto, segue olhando para mim como se a morte não rondasse os meus passos, como se a transformação fosse apenas uma miragem no horizonte. Por isso aviso, mudei!
Um eu que era o eu a que se acostumaram descobriu certas coisas de si e existem certas coisas que uma vez descobertas tornam-se incômodas (como a roupa nova do rei) e, pior, impossíveis. Tem determinados aspectos de si que só se mantêm enquanto inconscientes, uma vez descobertos tornam-se insustentáveis, por isso não posso sequer mais dizer que estou mudando, daí repito: Mudei!
Por isso, vocês que me conhecem, não me tratem como se eu fosse aquela pessoa que conheceram e não esperem de mim as mesmas respostas. E, se os aviso, devo dizer que apenas sigo o conselho da escritora americana Lillian Hellman, falecida em 1984, que disse: “As pessoas mudam e, geralmente se esquecem de comunicar a mudança aos outros”.

Isso, queridos, é mto forte qdo resolvemos cuidar de nossa saúde de uma forma profunda. Cuidar mesmo é mudar!
Aureo Augusto.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

AYRÃ SEM MEDO

Ayrã chegou no posto e procurou a avó, Marilza, auxiliar de enfermagem, e perguntou se eu estava atendendo. Com a resposta positiva ele novamente perguntou se ela poderia “encaixar” ele entre as consultas. Escutei as risadas lá fora, com a pergunta dele. Logo ele estava sentado a minha frente, dizendo que não precisava a presença da avó na consulta apesar de contar apenas 8 anos. Conversamos animadamente e depois negociamos o tratamento. Ele não gosta de tomar remédios porque não lhe agrada o sabor, mas o mesmo acontece com os chás ou xaropes. Vai daí que tivemos que descobrir quais são as folhas cujo sabor eram mais aceitáveis – escolhemos hortelã e pitanga – depois consegui acrescentar limão. Entre mel e rapadura, optou pela última e por fim foi a discussão quanto à quantidade de gotas de extrato de própoles. Definimos por 9 – ele não quis 10 de jeito nenhum. Para mim foi muito divertida a consulta e depois, a negociação; no final saiu com a orientação do chá e do gargarejo, feliz porque pôde discutir comigo de igual para igual.
Admiram-me estas crianças de hoje em dia, com seu destempero, sua falta de medo ao lidar com o adulto. No caso de Ayrã ainda temos o fato de que sua avó, que o ama muito, trabalha no posto, local que visita com freqüência. Porém, ficou surpreso com os pequenos que aqui chegam. Com a claridade com que me olham, nos olhos, perguntam, informam... A filha de Ivone, com 11 meses, fez uma que quase me fez cair o queixo sobre a mesa: Estava a mãe descrevendo os problemas pelos quais trouxera a criança. Fui perguntando para entender, mas em dado momento entrou por detalhes da própria vida, sua relação com os pais e até do espaço físico de sua casa. Até certo ponto incentivei isso porque encontrei que tinha a ver com os problemas da criança. Em dado momento dispus-me a interromper para retornar ao fio, mas em um átimo, peguei a lapiseira e fiz um pequeno esboço do rosto da criancinha que me olhava com muita ternura. Não demorei nem um minuto, bem menos, portanto, não era uma coisa muito bem feita. Então fiz outras perguntas à mãe e seguimos a conversa quando a menina apontou para o desenho e disse em alto e bom som o próprio nome: Ana. Como fazia quando olhava no espelho. Ficamos a mãe e eu parados sem acreditar. Então ela olhando pra mim e sorrindo repetiu: Ana.
Outro dia uma criança de 5 meses foi trazida pela mãe. Quando me aproximei com o estetoscópio ela rapidamente pegou o aparelho de minha mão. Eu já estava com a parte superior no ouvido e ela pegou apenas aquela parte circular que encosta-se à área a ser auscultada. Imaginei que fosse brincar, levar à boca, coisas deste tipo. Não. Ela pegou o aparelho e colocou-o sobre o próprio tórax. Então auscultei e pedi para colocar em outro lugar, e em outro, e por aí foi. Quando fui passar às costas ela me entregou para que eu pudesse fazer.
Observo também que elas, as crianças já não se sentem mais tão ameaçadas com os estranhos. Não são todas e nem sempre, porém com freqüência. Admiro-me. Alguém dirá que tem a ver com a televisão que onipresenciou-se em nossas vidas. A influência ocorre inegável. Mas e quando aqui não tinha luz elétrica? Logo que aqui cheguei as crianças eram muito retraídas, mas em pouco tempo a mudança manifestou-se e logo tinha uns pequerruchos se mostrando. O mundo está mudando e não é só no clima.
Agora me lembrei de uma criança lá de Salvador. Tinha seis anos e eu estava no consultório lendo quando bateu à porta. Abri e aquela bolinha terna perguntou-me: Você é o médico que não dá injeção? Disse que não, então ela perguntou: Você quer ser meu médico? A menina havia escutado em uma casa próxima sua mãe conversando com minha irmã sobre coisas de medicina natural. Nem pensou duas vezes. A boa notícia é que não mais precisou tomar injeção.
Um abraço, Aureo Augusto.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

UM DIA/CHUVA MUITO LEGAL!

A chuva antes de ontem foi muito legal! Saí de casa apreciando as cachoeiras rugindo nas serras ao redor. Muitas tanto na Serra do Candombá, no ocaso, quanto na Serra da Larguinha a leste, que dão a forma de telha a este vale. A cachoeira do Batista fazia uma festa boa de se ver. Os rios e córregos já estavam engrossados, mas passei tranqüilo pelas pontes e pontilhões. Poucas horas depois que cheguei no posto é que soube que na minha cola a água subiu no pontilhão da estivinha perto de minha casa, na ponte da Laribel e na ponte de Maninho. Uma mulher pra trazer a filha febril à consulta teve que carrega-la com a água nos joelhos. Ela me contou a aventura. Importa que a criança ficou bem.
Aí deu meio-dia e fui almoçar. Notei na ponte dos Brancos que a água roçava furiosa o fundo da ponte, como se o concreto atrapalhasse seu assanho e isso a deixasse agoniada. Pensei que se subisse mais ia ser difícil voltar ao posto. Nas outras pontes a água já havia cansado de sair do leito, de modo que não tive problema. Apenas no pontilhão perto de casa que não pude passar de carro, mas adorei sentir o frio da água até os joelhos. Deixei o carro na frente da casa de Genésio. Comi tranqüilo e descomi também. Voltei. Quando cheguei na ponte dos Brancos a água havia passado por cima, mas bem pouco. Deu pra passar com o carro tranqüilo (e as crianças amaram ver o barco diferente – imaginaram suas imaginações, estou certo). No trabalho vim a saber que depois que passei a água engrossou o suficiente para que as crianças se divertissem mais com o povo tendo que voltar do que com novos modelos de embarcações. Mas, à hora de retornar ao lar, as águas já haviam baixado e passei feliz desviando, isso sim, dos estragos que o agueiro fez na estrada.
Não foi um dia muito legal?
Recebam um abraço bem forte,
Aureo Augusto

sábado, 24 de outubro de 2009

II ENCONTRO DE PSF - O DIA SEGUINTE

Foi um pique! Nem tive condições de colocar, como de hábito, o texto de Medicina Oculta no Cotidiano das sextas-feiras. Mas o resultado compensou! Acabamos o II Encontro de Profissionais de PSF do Vale do Capão. Aprendemos uma tonelada de coisas. Agora será o tempo de assimilação das novidades e incorporação destas ao cotidiano do posto. A cabeça está a mil! A equipe do posto vibrou com cada palestra. É muito legal participar de uma equipe onde do coordenador (que é o enfermeiro) a auxiliar de serviços gerais trocam olhares significativos quando escutam o palestrante lançar novas que representam desafios. Muito legal!
Para os outros grupos presentes também foi um evento significativo, pois todos mostraram interesse e alegria com o aprendido.
A turma da Escola Técnica de Saúde da Bahia, o pessoal da DIRES 27, os profissionais da SESAB e do Ministério da Saúde que vieram palestrar todos mostraram disposição, vontade, vinculação a causa da saúde pública. Além disso, competência. Outros palestrantes foram profissionais da área da saúde que toparam vir aqui falar sem receber nada, gastando do próprio bolso seu transporte e nos brindaram com seus conhecimentos. Somos muito gratos.
Já estou antegozando a reunião da equipe do posto. Toda quinta-feira nos reunimos por uma hora. Esta próxima reunião vai estar desfalcada porque o enfermeiro e as ACS (Agentes Comunitárias de Saúde) estarão em um curso de formação permanente, mas quem fica estará bem excitado com as novas. Não apenas os conhecimentos técnicos, mas também com o que descobrimos de programas governamentais dos quais podemos participar. Vai ser uma onda!
Chovem a noite toda. Agora o vale sorri brilhante lavadinho sob uma garoa singela que canta no telhado. Estou gripado, com a coluna doendo, uma tosse danada e, feliz.
Um beijão,
Aureo Augusto

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A LIÇÃO DO POETA BRONCO

Vejam as surpresas da vida: Aqui no Vale tem um rapaz (já não tão rapaz) que é motoboy. Ele é um sujeito meio troncudo, rude, não no trato, mas por natureza. É difícil entender o que fala, pois mais pra dentro diz as coisas. A gente ao redor fica no esforço de entender e em geral capta por pedaços o seu pensamento. Outro dia usei de seus serviços e quando passamos por perto de umas flores que aqui chamam de açucenas (não é, com certeza). Então ele parou e me disse que quando está agoniado, nervoso, tenso, pára a moto e recolhe uma daquelas flores e fica aspirando o perfume. Em pouco tempo está calmo. O jeito de ele falar era tão poético, tão lindo que me causou uma sensação muito legal. Olhava para aquele gorila e não acreditava que havia tido a sensibilidade de descobrir aquela terapêutica. Na verdade minha surpresa revela um preconceito. Só porque o cara é meio bronco não significa que seja insensível. Aprendi. Aprendo todo dia. Isso é bom, saber que podemos aprender todo dia. Hoje tenho 56 anos no couro (como se diz) e tenho a sensação que agora estou mais capacitado a aprender do que quando era mais jovem. É que depois dos 40 parece que metade da necessidade de estar certo foi embora. Evaporou. Desapareceu. Também lá se foi aquele imperativo de salvar o mundo. É, que onipotência!
Agora olho o mundo se descortinando a minha frente e não me surpreendo quando a ira enrubesce minha face à visão da injustiça, da negligência, da inoperância, da incompetência, da desonestidade... A lista não é pequena. Mas a par da ira, com ela e de braços dados, vem uma coisa que me diz de fazer o que for possível. Xingar quando necessário e calar de outro momento. Arregaçar as mangas e trabalhar com intensidade e prazer, mas hoje já não estou tão atado ao resultado.
Um dia Cybele me viu acordar com cenho franzido. Perguntou por quê. Expliquei que havia acordado com determinadas preocupações. Ela disse que eu já tinha vivido muito, mais de 50 anos, já tinha feito de tudo, ajudado tantos, laborado outro tanto e que agora deveria ficar mais bebendo da doçura do mundo (a primeira doçura é o sorriso dela). Deveria ficar mais tranqüilo e não querer resolver tudo. Tomei na ponta da letra (e não na ponta da faca). Passaram-se uns dias e um amigo de São Paulo telefonou para ela e em dado momento perguntou por mim. Ela respondeu que eu agora estava bem, que tudo o que ela falava eu respondia que tinha mais de 50 anos e que não dava mais para muito esforço ou preocupação. Eles riram muito por lá pelo telefone, e eu cá com meus botões, pois em muito (mas infelizmente não em tudo) tem verdade nesta fala.
Depois de certa idade, embora tenhamos menos tempo para viver, o tempo parece que se estica.
Em 21 de outubro de 2009, receba um abraço carinhoso.
Aureo Augusto

terça-feira, 20 de outubro de 2009

ENCONTRO DE SAÚDE NO VALE

Estamos aqui no Posto de Saúde da Família (PSF-Vale do Capão) no corre-corre porque logo mais nos dias 22 e 23 teremos o II Encontro de Profissionais de PSF do Vale do Capão. Já estamos no segundo encontro! Foi uma idéia que surgiu no seio da equipe. Uma grande novidade, um posto de saúde promover um encontro de saúde. Um dos maiores motivos é que temos muitas dúvidas quanto a condutas de um posto e mais ainda de um posto que faz parte da Estratégia de Saúde da Família, um sistema muito interessante, mas que, embora exista em profusão no Brasil, a realidade é que nós, médicos, enfermeiros, atendentes etc. ainda estamos precisando aprender um bocado sobre isso. Como não podemos convidar profissionais para nos ensinar, fica mais viável convidar profissionais para ensinar a 50 pessoas que trabalham em PSF. Não é uma boa idéia? Por outro lado teremos a oportunidade de partilhar com os colegas nossas experiências, dúvidas, soluções, dificuldades enfim, tudo!
Vejam o programa:
Dia 22 de outubro de 2009, quinta-feira:
8h: Distribuição de pastas e credenciais.
9h: Abertura: Apresentação e Boas Vindas.
Fala das Autoridades.
Palestra: Humanizar o Atendimento por Maria Caputo (Diretoria de Gestão da Educação e do Trabalho na Saúde-SESAB).
12h: Almoço.
12:30h: Espaço para práticas de relaxamento e massagem. Aqui você, participante, poderá receber massagem de relaxamento, Reike, ou outras práticas por profissional residente no Vale do Capão. Inscreva-se, pois as vagas são limitadas.
14h: Apresentação - Como Estamos Cuidando das Pessoas com Hipertensão em nossa Área de Atuação pela Equipe do PSF-Vale do Capão.
15h: Stress e Qualidade de Vida, por Dr. Sérgio Carneiro (LAC-Seabra).
16h: Merenda.
16:30h: Fitoterapia, Plantas Medicinais e SUS, por Dra. Mayara Silva(SESAB/UFBa).
17:30h:O SUS é uma escola - o Curso Técnico dos ACS, uma Proposta de Inclusão, por Dra. Tércia Lima(Escola de Formação Técnica em Saúde-Ba).
19h: Jantar.
Dia 23 de outubro de 2009, sexta-feira:
7:30h: Prática de Tai-chi-chuan. Conheça esta antiga arte chinesa composta de movimentos harmônicos que, além da beleza, contribui para um melhor funcionamento do físico e tranquiliza o mental (nos jardins da pousada).
9h: Debate - Lidando com o Cliente Difícil. 15 minutos de introdução por Dr. Aureo Augusto (PSF-Vale do Capão, Palmeiras) e em seguida debate com todos os participantes. O mote é a pergunta: Como você age ou reage ao cliente difícil?
10h: Dermatologia Sanitária pela Dra. Shirlei Moreira (Ministério da Saúde).
12h: Almoço.
12:30h: Espaço para práticas de relaxamento de massagem. Inscreva-se.
14h: Uma Medicina para Escravos, por Dr. Aureo Augusto.
15h: Epilepsia, o Atendimento Pensando na Pessoa pela Dra. Vera Lúcia Rocha (Ministério da Saúde).
16h: Merenda.
16:30h: A Política Estadual da Atenção Básica em Saúde para o Estado da Bahia, por Dr. Ricardo Heinzelmann (SESAB)*.
17:30h: A Síndrome Metabólica, por Dr. Manoel Alfonso (Clínica Santa Bárbara-Seabra).
19h: Jantar.
*O Dr. Ricardo Heinzelmann não poderá participar e virá outra pessoa da equipe substituilo.
Não é um programa bem legal? Claro que nem pensamos em esgotar tudo em um ou dois encontros. Mas teremos muitos outros. Assim pretendemos.
Devo dizer que a nossa equipe é muito legal. Todos muito animados e dispostos a contribuir efetivamente para melhorar a saúde dos residentes em nossa área de atuação. Para mim tem sido uma alegria trabalhar com esta turma.
Recebam um abraço,
Aureo Augusto

sábado, 17 de outubro de 2009

CARINHO

Não sei como é pra vocês estas coisas, mas elas me tocam. Esta coisa do cuidado, do ter carinho e fazer um afago delicado. Ontem, após um dia de trabalho intenso, atendendo em Conceição dos Gatos e no Rio Grande, chegamos Gleiton, o enfermeiro, e eu, ao posto de saúde, que já estava fechado por causa da hora. Quando vínhamos chegando cruzamos com Beli que de longe acenou para que eu fosse em sua casa. Respondi-lhe que iria daí a pouco, mas antes que se realizasse o daí a pouco ela veio ao posto com um pacote cuidadosamente embrulhado em papel laminado. Disse que haviam preparado para o almoço, mas lembraram de mim. O povo sabe que sou guloso. Tenho cuidado com a qualidade do que como, mas ainda tenho um longo caminho a percorrer no que respeita à quantidade. Beli sabe disso e sabe que uma comida bem gostosa é uma alegria para mim. Ela não sabia, mas como em Conceição havia tido muita gente a consultar, cheguei tarde em Palmeiras (onde nestes dias almoço) e, como havia que fazer um programa no rádio, ir na Secretaria de Saúde fazer algumas diligências, entre outras coisas, acabei não almoçando. Por sorte em Conceição dos Gatos o povo, que é muito hospitaleiro, sempre tem merendas. Havia um aipim delicioso que comi fartamente. Mas, à hora que chegava de volta ao Vale, a fome batia na porta do estômago e solicitava-me com vigor. O pacotinho era uma comida de forno, naturalmente natural e vegetariana, muito deliciosa que saboreei com prazer (após oferecer um pedaço a Gleiton que aceitou – às vezes sou até um cara decente para estas coisas!).
O que me leva a pensar é constatar que ela na hora do almoço, por algo, lembrou de mim, assim do nada, ou talvez porque quando levou a comida à boca e sentindo-lhe o sabor ocorreu-lhe minha gulodice. Também no dia anterior, dia de N. S. Aparecida, que no Vale do Capão é festejada com hinos e comidas e que se associa ao dia das crianças e, portanto, há farta distribuição de comidas de aniversário, eu havia estado atarefado fotografando a festa muito bela de Beli. Aliás, registro que a festa foi tão maravilhosa quanto a de Cosme. Como sempre a distribuição farta de petiscos foi o forte. A família toda, Beli, seu marido, as belas filhas e o filho, algumas vizinhas mais chegadas, unidos naquela celebração, indo e vindo, distribuindo e rindo embora toda a turma cansada porque foram vários dias nos preparativos. O fato foi que no ritmo de fotografar terminei por não comer nada. Beli, Eldinha (a filha mais velha) e Derme, o marido, ficaram tristes quando descobriram que não comi. Correram à cozinha, olvidaram o cansaço, preparam suco de manga para mim e para Cybele e bastante pipoca. Comi até me fartar, mas parece que ficou na cabeça da dona da casa que eu não tinha comido a empanada tão saborosa. O seu jeito de ter cuidado seguramente assenhoreou-se de sua memória e ontem tive a felicidade, de em um momento de muita fome, comer algo com o sabor dado pelo dom da cozinheira, pelo amor da lembrança e pelo tempero da fome. Tenho do que me queixar?
Em 14/10/09

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 10

ERRO ACERTADO.
Você já se viu em uma situação onde sabe do que se passa, mas sabe que qualquer ato resultará em problemas? Uma vez eu estava no mar em meio às ondas. Fui apanhado enquanto mergulhava e jogado contra as pedras tratei de me esquivar e consegui, porém saí com um corte no pé. Enquanto o mar me jogava de um lado para outro eu ia desviando das pancadas, mas, como era muita a agitação das águas, de quando em quando não conseguia me desviar e recebia um golpe; como a situação não oferecia maiores perigos, eu era jovem e em certa medida aventureiro, foi até divertido. Mas o corte no pé me fez sair da brincadeira. A mesma coisa na estrada aqui do Capão. Tem momentos em que paro o carro e olho a buraqueira sem saber para onde ir. E para onde quer que vá o resultado é cair em algum buraco. A vida de quando em quando faz isso conosco.
Isso não quer dizer que na vida existam armadilhas preparadas tão habilmente que não há como escapar. O significado disso, é que nós mesmos construímos as situações de tal maneira que chega um momento em que o que quer que façamos irá resultar em algum corte no pé, ou tropeço em algum buraco. Nunca somos meras vítimas das circunstâncias. Se assim percebemos, o buraco é o guia para o carro encontrar a estrada mais leve, o corte no pé é o momento em que refletimos cuidadosamente sobre todas as atitudes que tomamos e que levaram àquela situação específica. O erro nos ajuda a acertar. Porém se não percebemos a nossa participação criativa no processo, nos encontraremos de novo em um momento idêntico.
O passado é imutável. Mesmo que agora você perceba os inúmeros pequenos ou grandes erros que você cometeu, o encadeamento das coisas resultará em um constrangimento atual ou futuro. A percepção poderá contribuir para que a situação fique mais aliviada, mas não o liberará completamente. Este mundo é concreto. Uma vez que a matéria se move, ela seguirá. Essa é a beleza da matéria.
Por isso, na tempestade, só nos resta, uma vez conhecida em parte ou no todo, a seqüência de atitudes que levaram a estar ali, sob a borrasca, só nos resta, dizia, agir conforme aquilo que temos por correto e, esperar.
Aureo Augusto.

domingo, 11 de outubro de 2009

PIPAS E PÁSSAROS

Quando acordei e abri a porta de casa assustei uma mamãe sabiá que alimentava seu filho no ninho construído acima da coluna da varanda da casa. Isso me fez lembrar um texto que escrevi em 2006 que quero compartilhar com vocês:

Hoje pela manhã, enquanto o sol aparecia por trás da Serra da Larguinha fui para a varanda terminar de ler o livro de Khaled Husseini, O Caçador de Pipas. Precisava termina-lo sob pena de não conseguir fazer mais nada. Ontem mesmo comecei a lê-lo, mas fui obrigado a interromper, pois tive uma reunião na rua, aonde cheguei ligeiramente atrasado, coisa que abomino, porque não conseguia parar a leitura. Quando retornei pra casa estava com algumas preocupações na cabeça e por isso o livro havia saído do meu foco de interesse. Infelizmente, após o almoço, quando fui descomer, com diz algumas pessoas do povo, peguei o livro novamente. Com isso tudo o que tinha que fazer ou resolver ficou em suspenso. Não consegui desgrudar mais até que Cybele chegou e, como sempre faço, interrompi o que fazia para dar-me o prazer de assisti-la. Olhar e ouvir. Acariciar e ser acariciado. Fomos dormir e fiz isso quase obrigado porque ainda faltavam umas dez páginas para terminar. Concluí hoje pela manhã, sentindo a frescura do ar em minha pele. O final é perfeito. O livro não é perfeito, tem alguns pequenos furos, e algo que me pareceu erros de tradução, mas é ótimo. Tomara você resolva lê-lo.
Mas ao iniciar esta crônica queria dizer que os pássaros voltaram. Sim, aqui em casa, sobre cada coluna da varanda há um ninho vazio que de vez em quando são ocupados por sabiás. As aves ficam um pouco assustadas com a presença humana e fogem quando abrimos a porta; mas isso apenas no início, depois se acostumam e ficam olhando atentos a nossa movimentação, mas não fogem. Depois vêem os filhotes, os ensaios de vôo e por fim abandonam o ninho até o próximo período. E, como sempre, estas loucas garrinchas escolhem os lugares mais inconvenientes para se estabelecer. Um casal delas escolheu desta vez o espaço que há entre dois livros de arte compridos e o volume de Van Loon sobre história da arte que está entre os primeiros. O último livro é grosso e baixo e sobre ele as garrinchas fizeram seu lar. Agora estou com receio de pegar os livros de arte para ler. Pelo menos até que o ninho seja abandonado.
Eu e os passarinhos nos damos bem, mesmo quando fico com raiva deles porque me estropiam a horta e os morangos. É uma bela amizade, destas em que um aceita o outro apesar dos seus defeitos. Também, apesar de bela, não se pode dizer que haja grande confiança entre nós. Eles não se aproximam muito, mas sabem que em minha casa há certa segurança e eu não confio em que não vão me atacar a horta. Mas mesmo assim nos gostamos. Isso basta.
Em 7/11/06.
Recebam o meu abraço agora em 2009

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 10

Hoje é dia de tratar desta forma de medicina que está embutida na vida cotidiana. Quero apresentar João Quaresma, uma pessoa especial, que faleceu há pouco tempo:
JOÃO QUARESMA
O velho João Quaresma tem na base de 108 anos, isso é o que se diz por aqui. É o mais velho dos antigos que pisam na terra e que ainda não foram por ela tragados. Homem muito especial, como era de se esperar de alguém que ultrapassou o século. Conheci-o há muito e impressionou-me sua memória e lucidez. Até hoje, sai do Rio Grande, onde mora, até Palmeiras a pé. Mantém vivo seu passo, do mesmo jeito que o olhar. Homem forte, como também era de se esperar de alguém que viveu mais do que todos os seus amigos e parentes. Já idoso em uma quinta-feira resolveu subir em uma mangueira a colher frutas. De baixo lhe gritaram que não fosse porque tratava-se de uma quinta-feira maior, ou seja, véspera da paixão, época muito respeitada pelo sertanejo. João Quaresma lá de cima gritou que todos os dias são do mesmo tamanho, não tem maior nem menor, coisa que é verdade e não é; mas perdeu a atenção, caiu e se machucou muito. Nem por isso deixou, assim que melhorou, de subir em ‘pé de pau’ e continuar falando do tamanho dos dias. Homem sabedor de muitas coisas, como era de se esperar de quem ouviu falar de fatos há muito escondidos da memória das gentes, tem hábitos bem pessoais. João Quaresma não mata nada. Uma vez o Sr. Manuel Quati, chamado de Manézinho, matou uma cobra no caminho de Capão pra Palmeiras, quase chegando, pelo atalho, em Rio Grande. Matar cobra é um hábito. Observo que o povo nem se preocupa em ver se é venenosa, se mansa, calma ou agressiva, à vista do réptil, facões são desembainhados, cacetes surgem do nada e a bagaceira está feita. Tenho uma longa experiência com estes animais que algum dia contarei e aprendi que cada cobra, embora tenha seu jeito serpentiforme de ser, também tem sua maneira única; descobri que a imensa maioria é dócil, doce até. Das histórias macabras que se contam, a grande maioria, não passa de pura fantasia. Voltando a João Quaresma: O seu amigo Manézinho passou aquela noite em sua casa. Mas, quando no dia seguinte João soube que ele havia matado uma cobra nas proximidades de sua casa, abusou-se disso e afirmou que se soubesse antes, ele não teria dormido em sua. Para ele não faz sentido matar. Um dia caminhando no mato caiu-lhe uma cobra sobre o chapéu. O estardalhaço que ao redor fizeram não lhe abalou o passo; curvou-se tranqüilo dando à bichinha sua chance de escapar incólume da aventura. Cascavel, jararaca, jaracuçú, coral, que importa? Onde encontre, conduz a lugar seguro. E não é só cobra. Há algum tempo encontrou uma paca e, para que não corresse risco tomou-a nas mãos ao que o animal assustado meteu-lhe as presas na carne entre o indicador e o polegar. Levou o bicho a lugar protegido e só então se preocupou em tirar o dente da carne. De outra feita deu de cara com um gato do mato em lugar de perigo pro animal. Com agilidade agarrou-o no lombo com ambas as mãos, e suspendeu-o sobre a cabeça, com as patas pra cima. O felino ficou chiando, mas não pôde nada fazer contra seu captor. Longe dali, em local abrigado da intromissão dos cachorros, deixou que se fosse o bicho. Ele não mata nada, nem murinhanha, barata, lacraia. Quem lhe ensinou isso? Ninguém, saiu de sua cachola e penso que de alguma maneira isso tem a ver com sua idade. Homem único, como se esperaria de quem muito viveu, mas esse muito viver pode ter vindo de seu jeito de ser único. Esse indivíduo, soube trilhar em sua vida o caminho que seus próprios pés fizeram. Não se trata de um mero fruto daquilo que se constrói com os hábitos sociais. Saiu dos acostumamentos. A vida para ele deixou de ser a repetição e, mesmo vivendo esse tanto que viveu, ainda curioseia o mundo e segue construindo o seu viver. É isso que nele devemos aprender.

O cara não era demais? Manter sua mente lúcida na idade que tinha, tem a ver com sua enorme capacidade de manter a própria maneira de ser, única.
Aureo Augusto.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

OS TIGRES E OS MORANGOS DO MONGE

O sol vertical transforma em pó qualquer dos muitos caminhos deste Vale. A onipresença da poeira é tristeza para as donas de casa, mas, não nego, gosto de ver o pó levantar à passagem de pés ou rodas. Havia um sujeito, um monge zen, que vivia muito longe daqui do Vale do Capão, era da China. Não sei bem porque me vem esta história quando estou pensando neste calorzão que se dá neste momento em que o mundo pede chuva, mas, enfim, vamos lá: O tal monge, caminhando em um bosque, deu de cara com um tigre. Considerando que ainda não era o momento de abandonar o veículo corpóreo (ainda não se iluminara), deitou a correr e nessa caiu em um despenhadeiro. Por sorte e agilidade conseguiu segurar-se em uma raiz e não se arrebentou lá embaixo. O tigre que o perseguia ficou lá em cima olhando triste pela perda do almoço. Mas a raiz foi aos poucos cedendo e logo o monge cairia. Para ele isso não era grande problema, talvez escapasse, um pouco estropiado, porém livre da fera.
Porém, para seu desespero descobriu que outro tigre o espreitava embaixo do despenhadeiro. Naquele momento, quando a situação estava neste trânsito terrível notou que ao alcance da mão havia um pé de morango carregadinho. Não pensou duas vezes e começou a saborear as deliciosas frutas. Coisa de monge zen...
Pensando bem, o fato é que o cara estava em uma situação na qual o usufruto do morango não representava melhora nem piora. Já que vou morrer que morra feliz! Lembro de uma mulher aqui do Vale do Capão, Landinha, que, viúva, sustentava a filharada com muito trabalho. Sabia eu das suas agruras de labuta diuturna. Um dia surpreso (?) encontrei-a no forró quinzenal daqui do Capão. Pensei que ela, com tantos problemas, ali estava se divertindo como se a vida só lhe houvesse dado grandes alegrias. Depois vi que minha surpresa era um despropósito, pois aqueles momentos de diversão tinham o papel de amenizar-lhe os cansaços. Não fosse à dança e acrescentaria mais uma desalegria a sua vida dura. Aliás, a realidade é que no trabalho sempre estava contente. Ria e brincava muito, embora, registre-se, sem deixar de lado a responsabilidade. Landinha nem nunca ouviu falar nessa coisa de zen, mas algo disso ela aprendeu. Landinha estava entre dois tigres, mas saboreava o morango.
Nem sempre é fácil. Alguém poderá até dizer que os problemas da minha amiga eram não tão grandes. Coisa nenhuma! Eu sei que ela tinha uma vida que poucos agüentariam. Por merecimento hoje está bem melhor, casada com um sujeito gente boa, que, por acaso, atraiu-se por ela justo pelo sorriso de lado a lado e pela alegria marota. Deixasse ela de lado o forró e mourejaria sem brilho até o presente.
De monge falta-me quase tudo; não tenho esta competência para a disciplina rigorosa, preces, meditações, posturas e coisas que tais, mas devo reconhecer que aquele lá dos tigres sabia das coisas. O desafio é, guardadas as proporções, incluir aquela competência em nossa vida cotidiana.

Para mim é um prazer poder partilhar com você estes pensamentos; receba um abraço,
Aureo Augusto