sexta-feira, 9 de outubro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 10

Hoje é dia de tratar desta forma de medicina que está embutida na vida cotidiana. Quero apresentar João Quaresma, uma pessoa especial, que faleceu há pouco tempo:
JOÃO QUARESMA
O velho João Quaresma tem na base de 108 anos, isso é o que se diz por aqui. É o mais velho dos antigos que pisam na terra e que ainda não foram por ela tragados. Homem muito especial, como era de se esperar de alguém que ultrapassou o século. Conheci-o há muito e impressionou-me sua memória e lucidez. Até hoje, sai do Rio Grande, onde mora, até Palmeiras a pé. Mantém vivo seu passo, do mesmo jeito que o olhar. Homem forte, como também era de se esperar de alguém que viveu mais do que todos os seus amigos e parentes. Já idoso em uma quinta-feira resolveu subir em uma mangueira a colher frutas. De baixo lhe gritaram que não fosse porque tratava-se de uma quinta-feira maior, ou seja, véspera da paixão, época muito respeitada pelo sertanejo. João Quaresma lá de cima gritou que todos os dias são do mesmo tamanho, não tem maior nem menor, coisa que é verdade e não é; mas perdeu a atenção, caiu e se machucou muito. Nem por isso deixou, assim que melhorou, de subir em ‘pé de pau’ e continuar falando do tamanho dos dias. Homem sabedor de muitas coisas, como era de se esperar de quem ouviu falar de fatos há muito escondidos da memória das gentes, tem hábitos bem pessoais. João Quaresma não mata nada. Uma vez o Sr. Manuel Quati, chamado de Manézinho, matou uma cobra no caminho de Capão pra Palmeiras, quase chegando, pelo atalho, em Rio Grande. Matar cobra é um hábito. Observo que o povo nem se preocupa em ver se é venenosa, se mansa, calma ou agressiva, à vista do réptil, facões são desembainhados, cacetes surgem do nada e a bagaceira está feita. Tenho uma longa experiência com estes animais que algum dia contarei e aprendi que cada cobra, embora tenha seu jeito serpentiforme de ser, também tem sua maneira única; descobri que a imensa maioria é dócil, doce até. Das histórias macabras que se contam, a grande maioria, não passa de pura fantasia. Voltando a João Quaresma: O seu amigo Manézinho passou aquela noite em sua casa. Mas, quando no dia seguinte João soube que ele havia matado uma cobra nas proximidades de sua casa, abusou-se disso e afirmou que se soubesse antes, ele não teria dormido em sua. Para ele não faz sentido matar. Um dia caminhando no mato caiu-lhe uma cobra sobre o chapéu. O estardalhaço que ao redor fizeram não lhe abalou o passo; curvou-se tranqüilo dando à bichinha sua chance de escapar incólume da aventura. Cascavel, jararaca, jaracuçú, coral, que importa? Onde encontre, conduz a lugar seguro. E não é só cobra. Há algum tempo encontrou uma paca e, para que não corresse risco tomou-a nas mãos ao que o animal assustado meteu-lhe as presas na carne entre o indicador e o polegar. Levou o bicho a lugar protegido e só então se preocupou em tirar o dente da carne. De outra feita deu de cara com um gato do mato em lugar de perigo pro animal. Com agilidade agarrou-o no lombo com ambas as mãos, e suspendeu-o sobre a cabeça, com as patas pra cima. O felino ficou chiando, mas não pôde nada fazer contra seu captor. Longe dali, em local abrigado da intromissão dos cachorros, deixou que se fosse o bicho. Ele não mata nada, nem murinhanha, barata, lacraia. Quem lhe ensinou isso? Ninguém, saiu de sua cachola e penso que de alguma maneira isso tem a ver com sua idade. Homem único, como se esperaria de quem muito viveu, mas esse muito viver pode ter vindo de seu jeito de ser único. Esse indivíduo, soube trilhar em sua vida o caminho que seus próprios pés fizeram. Não se trata de um mero fruto daquilo que se constrói com os hábitos sociais. Saiu dos acostumamentos. A vida para ele deixou de ser a repetição e, mesmo vivendo esse tanto que viveu, ainda curioseia o mundo e segue construindo o seu viver. É isso que nele devemos aprender.

O cara não era demais? Manter sua mente lúcida na idade que tinha, tem a ver com sua enorme capacidade de manter a própria maneira de ser, única.
Aureo Augusto.

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