terça-feira, 29 de dezembro de 2009

RESPIRAR 2010

Fui cuidadosamente ensinado no hábito de esquecer de respirar. Aconteça o que acontecer prenda a respiração. Encha o pulmão e espere, inerte, inerme, pelo pior. Procuro em meus pais a origem deste ensinamento e não encontro. Na verdade eles também foram educados na dor de afastar-se. Foram adestrados no hábito de abandonar a rede que nos conforma no mundo. Mas quem é que nos educa? De onde vem a regra insana que regra a vida de todos nós? Como fomos nos padronizando na desabituação do encontro? Não sei bem. Sei que temos uma história e ela marcou nossos corpos, nosso sistema físico, nosso jeito de se emocionar e pensar. Sei que não somos seres criados apenas no momento do encontro de gametas. Nestas células já havia o registro de muitos tempos e ademais existimos em um campo de existência. Somos, em muito, e muito mais do que notamos, frutos do tanto que a humanidade experimentou, de campos verdejantes a esconderijos úmidos e fumacentos, de adoráveis rios e mares a naufrágios, invasões sufocantes e lutas atrozes. Duas células com metade de genomas se encontram: Não são duas células, são uma montanha de histórias. Talvez por isso, e porque nossa história não é um conto de paz, que somos ensinados a prender a respiração.
Disto resulta que nem sempre conseguimos usufruir o que de bom o mundo nos dá. Esperamos o pior. Talvez porque o pior veio muitas vezes. Muito mais vezes do que esperávamos que viesse um conforto, um afago, uma ternura.
Às vezes (quase sempre) me pergunto se é assim mesmo. Será que veio sempre o pior, ou será que o mais das vezes não vemos o melhor? Uma mulher veio para a consulta. Ela mora em outra comunidade aqui de Palmeiras e tem uma longa e amarga história para contar. Há muita dor. Mas também na entrevista descobri que tem um marido que é um santo, homem bom, cuidador e dador, com o qual ela sempre conta. Também um filho que é muito inteligente e premiador com suas conquistas na escola. Ela ganha em alegria com ele e suas notas. Ganharia, dito melhor, se soubesse dar a devida atenção. Também tem um lar, uma casa bem legal, feita de tijolos com telhas e não palha. A roça é pequena, mas “dá pro gasto”. Consegui uma longa lista de bondades... Pergunto-me, perguntei-lhe, se já não era hora de olhar um pouco mais para o lado luminoso.
Hoje, logo depois que visitei esses pensamentos e que, portanto, respirei com cuidado e atenção, ia para casa e encontrei três passos-pretos em animada conversação bem no meio da pista. Parei o carro e aguardei que terminassem. O negro de suas penas, bicos e olhos, era tão forte que quase azul. Percebi que a discussão enveredou por um assunto não tão pacífico. Um deles foi alijado do grupo e saiu um tanto irritado. Os dois outros também não estavam muito satisfeitos com o assunto. Por fim ficou apenas um que se achava o dono da rua e caro custou para que se afastasse para dar passagem ao carro. Logo depois encontrei a borboleta gigante de asas azuis. Como ia bem devagar ela ficou arrodeando o carro e dançando em frente ao pára-brisa. Segui meu destino e ela o dela, após o encontro inspirador.
Que no ano de 2010 todos nós consigamos ver o mundo com os olhos de quem vê o negativo e suas soluções. Que possamos divisar também, sem dificuldade, a bondade que o mundo nos dá e a bondade que somos e fazemos.
Recebam um abraço carinhoso,
Aureo Augusto em 29/12/09.

domingo, 20 de dezembro de 2009

É NATAL, UFA!

Já se sente no ar o clima de Natal. Mesmo aqui nas lonjuras do Capão. Antigamente por aqui não havia esta coisa de presentes. O Natal era só uma celebração religiosa. Hoje, com o avanço avassalador da comunicação a celebração é comercial a todo vapor. O Natal para mim sempre foi algo um tanto ambíguo e continua sendo. De pequeno, gostava mesmo era de São João, com seus brilhos de fogos e fogueiras. Mas meu pai, no meio da noite em dezembro, colocava em nossos sapatos aos pés da cama um presente. Lembro-me de caminhões coloridos, de um jipe de plástico... Dionísio, meu irmão mais velho, batizado Dionísio Aurélio, em homenagem aos dois avós, respectivamente paterno e materno e de um herdou o dom para as coisas manuais e a criatividade; do outro a magrem. Este meu irmão construía carrinhos de papel e papelão, televisões com caixas de fósforos e antenas de chicletes e alfinetes que eram uma alegria para mim e para meu irmão menor (na idade, não no corpo). Também, atento, nos acordava assim que meu pai deixava os presentes e passávamos parte da noite gozando da alegria daquele regalo natalino. Não era como hoje, muitos presentes. Era um só e a alegria não tinha tamanho. Mesmo assim, o São João era “a festa”. E ainda é.
O Natal continua sendo uma coisa ambígua. Detesto a correria para os presentes. No ano passado viajei a Salvador para a festa e saí da estrada para o shopping. A confraternização primeira foi com os vendedores, alguns muito cansados da jornada extorsiva, as filas, a tensão das pessoas comprando de um jeito que em alguma medida me parecia uma espécie de drogadicção e/ou condenação de todo um grupo social. E eu no meio. Não gosto dessa parte, embora goste muito de dar presentes. E receber! Não me agrada esta coisa obrigatória que esconde e mesmo aplasta o sentido de solidariedade que a celebração inspira (ou inspiraria).
Por outro lado tem o encontro com a família. Minha família, em que pesem os naturais problemas comuns às famílias, quando se encontra é realmente uma delícia. Temos um senso de humor e tanto. Rimos muito de nós mesmos. Emociono-me agora vendo na imaginação meus pais já muito idosos (87 e 89 anos – ela é mais velha e dizemos que tirou o velho de casa quando era um garoto inocente – o que a faz rir), felizes com os filhos e netos em uma molequeira sã se esgoelando com piadas tantas vezes repetidas, mas sempre com sabor renovado. Um garoto vizinho da casa de meus pais quis participar porque um dia viu a alegria daquele momento. Ex-esposas de meus irmãos não perdem também. Outros vizinhos acabam participando. Ali, naquele momento de ternura exuberante, a família extensa (no caso muito extensa, já que inclui vizinhos) irmanada pelo desejo do encontro feliz, o patriarca e a matriarquinha (porque minha mãe é bem mirrada), despojam-se da imagem comum, aquele estereótipo de pessoas dominadoras, e são o álibi, para a celebração. É verdade que Jesus é um exemplo e seu exemplo deve ser lembrado. Mas é minha mãe e meu pai, meus irmãos adoráveis, meus filhos que amo como se meu coração houvesse sido construído de matéria que os vivifica, meus sobrinhos maravilhosos (incluo aqui os filhos do Miklos, vizinho de meus pais e amigo/irmão de longa data), enfim, é essa coisa absurda, louca, difícil, impossível, indispensável: família.
É natal, ufa! Não dá pra não chorar!
Em 20 de dezembro de 2009, desejo para todos vocês um natal maravilhosamente ambíguo.
Aureo Augusto

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 17

NOSSA!!! A semana passou e o pique de trabalho foi tanto que nem notei. Não consegui postar nada desde a sexta-feira passada. Mas hoje, nova sexta, mais um artigo. Este escrevi há bastante tempo, em um inverno rigoroso:
CORES, FORMAS, SABORES!
No Vale do Capão umas laranjas douradas – chupa-las pelo prazer da cor!
Os alimentos não apenas entram pela boca, mas também pelos olhos. Observem as crianças quando a elas apresentamos comidas saborosas. Seus olhos se enchem, inferem sabores, antegozam o repasto. Sempre me admiro do quase nunca com que a ciência tem consideração pelo superficial. As cores e a beleza são uma coisa superficial e, por isso, com freqüência são pouco apreciados pelos estudiosos, salvo a exceção de um ou outro cientista/poeta.
Não é por acaso que amamos as cores, os sabores e as formas. Ora, se o que interessa em um alimento é apenas o seu teor nutricional, as árvores deveriam ser todas iguais e trazer pílulas nutritivas. Não haveria necessidade da ampla gama de gostos que atende, diga-se, a todos os gostos. Dizia Lorenz, o estudioso da diversidade (a respeito das paradas nupciais) que “à natureza lhe agrada a variedade”. Aliás, esse tema da variedade merece uma consideração mais aprofundada, mas deixemo-lo para outra oportunidade. Entre as tradições médicas antigas, uma ligada a Teophrastus Felipus Aureolus Bombastus, cognominado Paracelso, nos ensina que há uma correlação entre a forma e cor dos alimentos e a sua utilidade para nós. Diziam seus seguidores (ainda dizem, pois que, todavia, há deles entre nós) que se uma fruta tivesse a forma de um coração, seguramente seria útil no tratamento das enfermidades cardíacas, por exemplo. Esta observação intuitiva, naturalmente será negada pela ciência. É tentador negar o que parece fantasia; porém às vezes a verdade se disfarça de fantasia. O mundo reveste-se entre nós de uma racionalidade (superficial, registre-se), porém que flerta sem notar com o mágico. Se não consideramos os mistérios do mundo como o que eles em realidade são, um mistério, perdemos muito de nossa grandeza. A decantada frase de Hamlet, “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que julga a nossa vã filosofia”, é tão repetida e mal utilizada quanto acertada. Há uma certa arrogância em considerar verdade apenas o que a ciência considera como fato. Mesmo quando aparenta humildade, como S. Pinker quando afirma em seu “Como a Mente Funciona” que a mente humana tem seus limites (e é verdade), mas que o ser humano não pode acessar a compreensão ansiada por aqueles que crêem, por exemplo, na espiritualidade, sendo isso apenas fantasia incompreensível pela mesma mente incompetente. No fundo ele está dizendo que não há mistério, há apenas o fato de que somos uma mente fruto de um corpo dotado de funções cibernéticas. O que pode até ser verdade, mas é verdadeiramente ignóbil não admitir outras possibilidades.
Mas, a despeito do que digamos ou não, as laranjas do Vale, têm a cor alaranjada (ao contrário da maioria das que compramos que estão mais para verdes ou amarelas), e com sua cor, tão solar, nos ajuda a suportar os rigores do frio, chuvoso e ventoso inverno daqui. Sabemos, que a vitamina C, a citrina, o cálcio entre outros elementos presentes em seu suco e polpa, nos fortalece contra os resfriados e gripes tão comuns nesta época. Claro que sempre podemos dizer que o que ocorre não é por causa da cor, mas o fato é que na natureza não há desconexão entre os fatos. E existem outros exemplos, como o das nozes (e outras amêndoas) tradicionalmente consideradas como boas para o cérebro, porque se parecem com aquele órgão. Hoje sabemos que nelas encontramos gorduras essenciais, por alguns conhecidas como vitamina B15 (ácido Aracdônico, ac. Linoléico e ac. Linolênico), sem as quais não se forma uma estrutura das células que compõem o sistema neurológico, denominada bainha de mielina, que tem importante papel na velocidade com que o impulso nervoso é conduzido pela célula.
E, cuidando para não transformar isso em verdade absoluta, vocês não acham que é muito interessante e misterioso?
Aureo Augusto em 2 de Julho de 2006

sábado, 12 de dezembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 16

Acabou que ontem não consegui postar pq tive que fazer uma viagem para participar de um encontro do Instituto Chapada, onde os diversos municípios que fazem parte da empreitada mostraram seus resultados. O esforço dos educadores e políticos locais para superar as enormes dificuldades que enfrenta a educação me emocionaram em diversos momentos. Um dia volto a falar sobre isso.
Há um aspecto oculto da medicina que merece consideração. O conhecimento de si. Veja o que pensei uma vez sobre isso:
CONHECER(-SE)
Não é fácil, e não necessariamente por falta de disposição moral, assumir a proposta socrática de conhecer-se como base para a vida. Como função vital. Estudar a si mesmo do jeito que Montaigne queria. O principal desta não facilidade é o fato de que falta-nos, falta-me, percuciência. Falta competência. Percebo isso quando leio comentários a filmes, a livros, a obras de teatro e outras formas de arte, quando releio livros... É impressionante o quanto deixo escapar, o quanto não vejo. Dito melhor, o que não vi na leitura anterior.
Uma boa parte da população mundial não se interessa por conhecer a si mesmo. Penso, por exemplo, na infinidade de pessoas que, habitando os países muçulmanos satisfazem-se apenas com tocar o chão com a testa cinco vezes por dia e lançar diatribes contra o Ocidente, como se apenas a ambição (que não é pouca) dos países ocidentais fosse a causa de seus males, esquecendo-se dos séculos de estagnação que lhes atingiu pela incompetência em superar os impasses a que levou o poderoso imperialismo árabe, da implícita e mesmo ímpia desigualdade social que sempre os caracterizou, além da ganância de dinheiro e poder dos seus próprios dirigentes (os ayatolás que dominam o Irã rapidamente se fizeram os mais ricos) enquanto ao povo em geral só resta apresentar-se como voluntário para o exército dos homens-bomba. Também me lembro dos palestinos, cujo maior inimigo nominal, Israel, lhes causa menos estrago do que a corrupção e a ação de uma minoria fanática a serviço (freqüentemente inconsciente) de interesses o mais das vezes internacionalistas pan arábicos ou pan muçulmanos, que pouco se interessa pela questão das pessoas que residem na Palestina. Tais interesses nominalmente voltados para salvar as almas muçulmanas, o mais das vezes rezam a cartilha do jogo do poder e da satisfação de processos inconscientes traumáticos, pouco ou nada vinculados à questão árabe, palestina, muçulmana, humana... Penso também nos milhares de cristãos que se crêem compelidos por uma força demoníaca para o mal e que, portanto, necessitam de pastores ululantes e padres sussurrantes capazes de conjurar o mal que, um pensar cuidadoso sobre o si mesmo traria um efeito, no mínimo, gerador de autonomia. Talvez tivesse razão Voltaire ao considerar que a religião caso não existisse teria que ser inventada, pois que tem o forte papel de servir de freio para determinadas ações perniciosas. Sim, talvez tenha razão, mas, Nietzsche também não se enganou ao considera-la uma crueldade. Quantos se martirizam por ela? Quantos desviam seu caminho por ela? Embora tantos nela encontrem conforto, o que é bom e louvável, outros apenas aprofundam os conflitos, como vimos na Irlanda do Norte (católicos contra protestantes), no Paquistão e outros países da Ásia, onde cristãos são massacrados por muçulmanos, no Iraque onde sunitas e xiitas se matam mutuamente etc. Religião, economia e política, salvações que se tornam maquinações do mal... Creio que devido a nossa incompetência de conhecer a si mesmo, tornando-nos alvos fáceis de manipulações. Claro que o mundo não é feito apenas da minha, ou da nossa, subjetividade. No entanto, solipsismos à parte, o fato é que o não entendimento do que somos em si é causa de grande mal.
Os irlandeses estão longe daqui, bem como os conflitos no Oriente Médio. O Vale do Capão, local onde resido, descansa uterino sob a chuva suave e o gorjeio das aves matinais. Mas em sua devida escala aqui se repete o que no mundo transborda. Cá, como lá, vamos vivendo nossas limitações. O desejo de ser aceito, no mínimo, bem como o desejo de ser mais do que se é, em plano intermediário, além da vontade de ter o poder sobre os demais, mandar, dominar estão pautados, lado a lado, com a vontade de viver em paz, estar em harmonia com os demais e com o ambiente. Alguns moradores me impressionam pela sua capacidade de elaborar um sistema de valores baseados em sentimentos e raciocínios cuidadosos, mesmo que não tenham tido a oportunidade da alfabetização. Pessoas como o velho Anísio ou Maninho (Luís Quati). Outro dia, em meio a uma conversa na pizzaria de Daniel (La Piedra), pensei alto que esta coisa de ir a restaurantes é muito antiga. Araci, senhora sofrida e vivida neste vale, mãe e avó, de repente, do nada, me perguntou:
- E Deus, Aureo, existe desde quando?
Surpreso fiquei, confesso, com a pergunta. Ela queria saber. E saber é algo maravilhoso. Claro que já havia aprendido no catecismo e nas missas que Deus é eterno. No entanto, o que é e como é esta eternidade. Melhor seria um filósofo e educador para conversar com ela. Na falta, comentei para ela que dentro desta linha de pensamento que inclui a existência de Deus e sua eternidade, há cerca de 20 dias Deus existia. Claro. Há mil anos também. Há um milhão de anos idem. Para onde quer que viajemos no passado e no futuro ali Ele estará. Disso a conversa derivou para a própria existência humana e a possibilidade de uma alma e de que também seja ela eterna. Os olhos dela brilhavam e mesmo, em dados momentos marejaram, com as descobertas de uma conversa! Ao terminar o papo, ocorria um clima entre nós de descoberta da nossa amplitude. A, por assim dizer, literatura que havia sido experimentada na conversação, nos trouxe a sensação de que há e somos algo maior do que nossos pequenos e grandes egoísmos. E de que podemos conduzir-nos de melhor forma do que o fazemos no dia a dia, na medida em que mais vezes nos portemos com a consciência desta consciência. Que nos pode levar para além da política politiqueira, da religião sectarista, da economia voltada para o mero ‘levar sempre a melhor’. Sem negar política, economia ou religião, como elementos reais e componentes históricos inegáveis da vida e saúde humanas.
Recebam um abraço, Aureo Augusto.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O PÉ DE IMBURUÇU E OS ENTERROS

Cada coisa tem sua história e esta história em muito (mais do que aparenta) a define.
Aqui no meio da praça principal do nosso povoado há um pé de imburuçú. Uma árvore bonita de tronco grosso e copa exuberante, que hoje, percebe-se envelhecida. Sua copa é podada cuidadosamente porque há poucos anos o tronco, oco, rachou durante uma ventania. Acostumei-me a sua presença e não gostei quando ao calçarem a praça os pedreiros levaram os paralelepípedos até a casca das raízes. Poderiam ter-lhe dado um espaço, um pouco mais de terra. Mas não foi isso que a prejudicou, creio, porque as raízes profundas não foram abaladas.
Apesar das podas a árvore é uma coisa tão presente que quase não se nota. No entanto, como tudo o demais tem uma história. E esta história remete àquele que a plantou.
Foi um homem chamado Rubi. Quando o fez manifestou aos vizinhos o seu desejo de que ao morrer o seu caixão fosse confeccionado sob seus galhos. Quem me contou a história foi S. Chiquinho de Dona, pai de Nivaldo, e ele acrescentou que à morte de Rubi, a planta já havia alcançado um bom tamanho e os vizinhos cumpriram-lhe o desejo, e arrumaram seu último leito sob a árvore que plantou.
Naquela época e mesmo muito tempo depois que aqui resido o comum era o povo daqui mesmo cuidar do caixão do defunto. De quando em vez algum prefeito oferecia o caixão, mas em geral eram vagabundos. Teve um cara aqui que no enterro, o caixão era de tão má confecção que os membros do morto começaram a sair pelas rachaduras onde os pregos cederam. Caro custou para levar o corpo à sepultura. Difícil foi controlar o riso. Hoje, com o progresso todo mundo é enterrado nuns caixões bem legais, com vidrinho e tudo. Todo mundo chega na sala com o cenho franzido e o olhar contrito, vai até o vidrinho e olha. Depois vai para um canto e por algum tempo mantém um silêncio sepulcral. As pessoas se entreolham e esperam que outro entre e olhe o vidrinho em um voyeurismo macabro. Depois todos se metem uma conversação a princípio um tanto triste, semeada de memórias do morto, mas logo vão se animando ocorrendo às vezes redondas gargalhadas. À noite é fogueira, comida e cachaça até que o amanhecer traz a dor atroz e os gritos das mulheres na hora que o enterro sai de casa. Não sei o que se passa lá na hora de o caixão baixar à terra porque nunca vou a este finalmente. No máximo freqüento o velório. E aqui já fui a muitos, mais até do que gostaria.
Para fechar mais uma informação: Conta-se que Rubi maltratou a uma mulher que era prostituta. Esta o amaldiçoou com tal veemência que após algum tempo desenvolveu uma ferida no pé e outra no nariz o qual, com o tempo, ficou completamente destruído, ficando um buraco no lugar. O homem morreu desta afecção.
Há pouco falei da língua de algumas pessoas, mas seguramente a língua desta mulher, esta sim que era danada.

Um abraço bem gostoso para todos vocês,
Aureo Augusto

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

FOFOCA

Não sei se fofoca tem mais no campo do que na cidade grande. Pode ser que em lugares pequenos apareça mais porque o contato é mais fácil e freqüente. Aqui no Capão conhecemos uns aos outros com certa assiduidade. As notícias correm com uma facilidade enorme. O povo ri um pouco de mim quando vêm a minha surpresa frente a alguma novidade que só o é para mim, pois todos já sabiam desde há muito. Mais por avoamento do que por desinteresse, nem sempre estou a par das últimas novidades comadreiras.
Penso que a fofoca é apenas o excesso da curiosidade sadia que levou à humanidade ao grau de progresso em que se encontra. Poderíamos ter optado por uma vida de chimpanzés. Quisemos inquirir, investigar e, principalmente, comentar com os demais sobre o que descobrimos. Tem algumas pessoas aqui no Capão que são boas para a inquirição, para a investigação e para comentar o fruto de suas pesquisas. Ademais, põem um pouco de colorido, como um artista, cria hipérboles para atrair a atenção. Determinadas pessoas, ademais, não são mentirosas, apenas quando não têm mais o que contar, inventam algumas verdades, como já me disseram.
Aqui encontramos os dois tipos básicos de fofoca, aquela simples e ingênua, quando se fala da vida de outrem, como para passar o tempo ou nutrir a conversação. Não é um exercício inócuo, é, se pensamos bem, maléfico. Mas é sumamente comum (e não apenas aqui). Também há aquela fofoca profissional, na qual o portador ou portadora faz-se de inocente e mostra-se apenas interessado em penalizar-se com a situação. Diz assim: “Coitado de tal pessoa, que situação terrível”. Todos ao redor param. Há um suspense palpável. As perguntas chovem. Mas o profissional jamais deixa que a notícia escorra da boca como água na serra depois da chuva das águas. “Você não sabia?” – pergunta inocentemente. “Ele foi preso em Palmeiras, por engano”. Na medida das perguntas, triste com o infortúnio do outro, o profissional da fofoca vai desvelando toda uma vida. Assim se descobre que o preso foi injustiçado, mas também, “com aquela mania de...” e então é que descobrimos que o cara é interesseiro ou amigo das coisas alheias etc. etc. etc. Tem que ter três etc. No final todos ficam sabendo que o cara mereceu e bem merecida aquela cadeia. Mas não foi o fofoqueiro quem afirmou. Aliás, ele afirma sempre peremptoriamente que não se interessa na vida dos outros, só comentou porque ficou muito constrangido e preocupado com o fato.
É por causa de gente assim muito bem intencionada, que D. Luzia, mãe de Lili, recitou para mim em dezembro/08 a seguinte quadra, aprendida antigamente:
Não tenho medo da cobra verde
Nem dos dentes da lacraia
Tenho mais medo da língua do povo
Corta mais do que navalha.

Recebam um abração bem legal.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 15

VITA, VIVA!
O Dr. David Servan-Schreiber, psiquiatra e neurofisiólogo francês trabalhando nos Estados Unidos, jovem de 30 anos e já com trabalhos reconhecidos pelos seus colegas e, portanto, sendo financiado para suas pesquisas, em plena glória científica, descobriu que tinha um tumor no cérebro e a morte era uma das possibilidades a se levar em conta quanto aos seu futuro próximo.
Sua experiência com a doença o levou a publicar um interessante livro que no Brasil foi publicado pela Fontanar, com o título: ‘Anticâncer, Prevenir e vencer usando nossa defesas naturais’. O livro merecer ser lido e me foi indicado por uma mulher, também um sucesso acadêmico, que se descobriu com a doença. Leia este livro, tendo ou não câncer. Leia-o como um incentivo para viver para além da mera subsistência ou da sobrevivência. Na página 36 ele comenta como, de posse da notícia alarmante, e após a confusão e o desespero inicial e mesmo sem perder o medo e a dor da notícia ele observa sua companheira:
“Algumas semanas depois de receber o diagnostico de câncer no cérebro, tive o sentimento estranho de que tinham acabado de retirar as lentes cinzentas que velavam minha vista. Um domingo à tarde, eu olhava Anna no pequeno cômodo ensolarado de nossa minúscula casa. Ela estava sentada no chão, ao lado de uma mesa baixa, tentando traduzir poemas do francês para o inglês, com ar concentrado e calmo. Pela primeira vez eu a via como ela era, sem me perguntar se eu devia ou não preferi-la em vez de uma outra. Eu via simplesmente sua mecha de cabelo caindo graciosamente quando ela inclinava a cabeça sobre o livro, a delicadeza de seus dedos segurando tão levemente a caneta. Estava surpreso por nunca ter notado q eu ponto as imperceptíveis contrações de seu queixo, quando ela tinha dificuldade para encontrar a palavra que procurava, podiam ser comovedoras. Tinha a impressão de vê-la de repente tal como ela era de fato, liberada de minhas questões e minhas dúvidas. sua presença se tornava inacreditavelmente enternecedora. O simples fato de poder partilhar aquele instante surgia como um privilégio imenso”.
Pouco depois o autor comenta a carta de um senador americano pouco depois de ter recebido um diagnóstico de câncer. O senador comenta que muitas das rusgas e atritos da vida cotidiana, bem como os valores relacionados com a conta bancária, com o cargo incensado pelos bajuladores etc. perderam completamente o sentido. Outras coisas também poderiam ter se desvalorizado à sua visão, no entanto, ao revés do desespero esperado “descubro um prazer novo em cosas que me pareciam antigamente corriqueiras”. Para o senador, almoçar com um amigo ou alisar o gato, se tornaram coisas maravilhosas. Descobriu que “pela primeira vez saboreio a vida”.
Servan-Schreiber arremata dizendo que todos ficamos tristes com a proximidade da morte, porém, “o mais triste não seria, no momento de deixar a vida, não ter nenhum motivo para ficar triste?”. Não ter vivido, não estar presente na vida que se vive...
Quis no dia de hoje escrever este texto para lembrar a cada um de nós e a mim mesmo, o quanto é delicioso dispormos da possibilidade de gozar a vida. Sem necessidade de coisas maiores, de glamour. Gozar aquilo que temos, o sorriso da pessoa que está ao nosso lado, o prazer de uma conversa profunda ou fútil com os companheiros no trabalho, a alegria atenta de poder ter contribuído com a vida ou a saúde de outrem, pôr do sol, nascer, flores ridiculamente pequenas inacreditavelmente elaboradas, besourinhos, sei lá, a lista é infinita. Que não esperemos a iminência da morte para descobrir as delícias da vida.
Em 4/12/09 recebam meu abraço,
Aureo Augusto.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

MALUCO

Tem um cara azucrinando o espírito do povo desde há três dias. É um rapaz que veio morar aqui há algum tempo. Forte, fala mansa, olhar um tanto mortiço. Veio ao posto e foi acompanhado por um bom tempo por nós, pois era portador de uma doença infecciosa de tratamento difícil. Sempre afável, só não era bom para horário. Tinha uma esposa e um filho lindo. À época tomei conhecimento de que usava medicação controlada para uma doença mental – penso que o olhar vinha da medicação – mas não me preocupava, pois estava perfeitamente controlado.
O tempo passou e a família em questão desistiu de viver no Vale. Aqui não é tão fácil para artesãos. No período turístico vem muita gente, mas fora dele não tem muito a quem vender. E, também, a concorrência tem sido intensa entre eles. Conquanto fujam daquilo a que chamam sociedade de consumo, nela vivem e consomem. A lei da oferta e da procura também funciona para os autodenominados ‘alternativos’. Por outro lado em muitos períodos faz frio e chove a mais do que o suportável para quem se acostumou às cálidas praias do nosso nordeste. A nudez característica dos litorais é o mais das vezes mais confortável que o obrigar-se às roupas pesadas da montanha. O fato é que ele e seus parentes se foram.
Agora retorna, transtornado e violento. Persegue as mulheres, diz que vai mata-las. Sua esposa, segundo divulga-se o deixou por que não mais o agüentou. Infelizmente além da verdade de que ele não está nada bem, e estar muito agressivo, há a outra verdade que vem dos medos, do prazer mórbido da notícia ruim. Comenta-se que ele foi expulso de Lençóis porque mutilou uma menina por lá e a população o expulsou. Ora, se ali tivesse cometido o crime, teria sido preso. Em Lençóis tem polícia. O povo não o expulsaria, a polícia o guardaria na cadeia. Aí, um conta que ele correu atrás desta ou daquela mulher. Contaram-me. Mas quem mo disse ouviu de alguém que ouviu de alguém. O que será que ocorreu mesmo? Os loucos sofrem a loucura e as histórias.
Porém ele entrou no posto, se trancou no banheiro e tomou um banho com a ducha higiênica, deixou um bodum tremendo lá dentro. Sua conduta foi ostensivamente agressiva. Não notei nada, porque estava atendendo, mas depois vi a confusão. Ontem quando saí do posto ele se aproximou e sua conduta era bem desafiadora. Sou muito medroso, mas também sei fingir (às vezes a ira passa por cima do medo e aí parece, aos incautos, que sou corajoso) e, mais do que isso, minha larga experiência de medo me fez aprender a lidar com o sentimento. Dialogo legal com ele. De modo que olhei-o nos olhos e comentei que havia sumido. Comentou com a voz desproporcionalmente alta que estava “no pedaço” e queria dinheiro. Fui bem taxativo na resposta negativa. Mudou o tom. Hoje, quando cheguei tentou novamente e foi mais específico exigindo R$100,00. A claridade da minha resposta, “não dou dinheiro a quem não trabalha”, também fê-lo mudar o tom. Ficou mais amigável e disse que queria um dinheiro para ir embora, embora as gatas daqui o atraíam. “Tô com uma gata agora que é um negócio”. Quanta aflição em seu ser! O sorriso não esconde a dor, os movimentos e a postura grandiloqüente não esconde a menosvalia. Há dor neste mundo, e não apenas naqueles lugares onde as guerras mordem a gente, mas também (e em muita medida tão forte) em recônditas paragens dos corações.
Agora soube que a polícia vem busca-lo. Resolveu-se. Resolveu-se?

Recebam um forte abraço, Aureo Augusto