domingo, 9 de setembro de 2012

O VALE DE OUTROS TEMPOS


Ontem Ditinha foi à consulta. Amo Ditinha. Ela tem lá pelos seus 65 anos, é uma lutadora como poucas. Troncuda, redonda, baixinha. Brinco com ela dizendo que faz parte do time de basquete do Capão, que é a bola. Ela ri a mais não poder. Seu marido trabalhava no terreno que um pequeno grupo de amigos comprou e que depois se tornou a comunidade (e agora o Instituto) Lothlorien. Ele era um servo da gleba, como nos tempos medievais. Lembramo-nos daquela época e ela recordou como as relações trabalhistas eram absolutamente injustas com o patrão do qual compramos a terra. Como tudo era difícil e, repito, injusto.

Hoje, em Salvador, caso alguém veja uma moeda de 5 centavos no chão, talvez não se dê ao trabalho de pegar. No Vale do Capão, quando aqui cheguei há praticamente 30 anos, o equivalente a esta moeda era um valor nada desprezível. A vida era bem dura. E aproveitamos a consulta (que era coisa de pequena monta) para relembrar as inúmeras aventuras que partilhamos. Ela foi lembrando-se de quando foi me buscar para o parto de uma senhora sumamente irritadiça que parecia no parir estar em guerra com algo. Então passamos a recordar os detalhes daquele acontecimento. Depois a vez em que eu estava transferindo o gás de um botijão grande para um pequeno (usado na iluminação já que não tínhamos eletricidade) e ela chegou em casa tão desesperada pedindo socorro que trazia uma sandália na mão e outra no pé, coisa que me deixou assustado, pois vendo ela balançando a sandália sobre a cabeça, aos gritos, quase saio correndo pensando que ia me bater. Correra de sua casa para a minha porque seu cunhado havia morrido. Larguei tudo e sai correndo por dentro dos matos na rota mais curta e lá encontrei o sujeito, não morto, mas desmaiado após dor atroz. Ela lembrou que o seu estado era terrível. Mas que graças ao tratamento recuperou-se para morrer no garimpo em acidente.

Depois nos lembramos dos partos de sua filha, Reizinha, nada fáceis! Recordamos as várias vezes que me atalhou na estrada, chegando eu de viagem, cansado e sonolento, para dar socorro a este ou aquele. E das molequeiras que eu fazia com Etevaldo, seu marido, um homem bom e tranquilo, muito tímido que ria silenciosamente com as minhas brincadeiras. Ele era tão tranquilo que ao ser picado por uma cobra cabeça de capanga terminou o serviço que fazia na roça para só então buscar socorro, coisa que lhe custou a vida. Ficou Ditinha só com a multidão de filhos... Mas superou e hoje ri do passado (e do presente)!

Era uma época em que se morria muito, bem mais que hoje, de mazelas comezinhas, de picadas de cobras, de mortais acidentes. Filhas e filhos descendo, anjos, às sepulturas porque ventos, ou frios, ou fomes, ou estupores... E Ditinha com seus olhos miúdos, tratando de ver os meus, me falou de sua admiração com o fato de que as pessoas de hoje já não são tão felizes como aquelas dantes, como ela outrora e agora.

Rimos também daqueles que insistem em comparar o passado com o presente e lamentam as mudanças pelas quais passou o Vale. Cresceu, facilitou-se a vida, carros e motos alargaram os caminhos antes trilhados por pés descalços e sandálias velhas. Televisões e lâmpadas substituem conversas na obscuridade prévia ao sono e guardam estrelas esquecidas. Sim, o mundo mudou e por isso boas recordações de fatos que em seus momentos foram tão dolorosos. Hoje, só porque o hoje é agora no conforto, rimos do passado duro. Os desafios de outrora eram outros, agora novas demandas e amanhã outras. Que haja vida para tantos desafios!
Recebam um abraço antigo de Aureo Augusto em 7/9/12.