terça-feira, 3 de novembro de 2009

FINADOS E VIVOS

Josemar me contou, e Dozinho confirmou com inúmeros exemplos que antigamente aqui no Vale do Capão, em dia santo ninguém trabalhava. Dozinho contou que tal pessoa, parente de tal outra, filho de fulana, avô de cicrana, disse rindo que apesar de ser dia de São Bartolomeu ia cuidar “de eu”. Lá se foi pra roça com a enxada e nisso puxou pra si uma jararaca que lhe pôs termo à vida. Josemar, cujo pai afirmava com todas as letras não acreditar em nada dessas coisas de superstição, e que nisso segue bem trilhado o caminho do pai, logo rispostou que o cara ia ser picado de cobra naquele dia fosse o tal dia de Bartolomeu ou Sebastião, ou de ninguém. Dozinho não discutiu, nem eu. E pensei que bem que Jó tem razão. Até comentei com ele que nessas coisas tudo o que acontece valida a crença. Lembrei das mulheres que antigamente após o parto ficavam de resguardo e o tal podia durar um mês, a mulher na cama. Pelo demasiado tempo de imobilidade, podia desenvolver um coágulo nas veias da parte posterior do joelho (trombo), o qual assim que levantasse se deslocava e entupindo alguma artéria no coração, pulmão, cérebro ou outro órgão de importância, dando o maior problema. Mas aí, quem ia dizer que a culpa era do excesso de resguardo? Todo mundo logo dizia que foi porque demorou pouco.
Isso conversávamos porque era dia de finados e o Capão cheio de gente em visita, muito trabalho para a gente daqui. Claro que o povo foi visitar seus mortos, deixar-lhes flores, ajeitar aqui e ali uma cruz ou tampa que se abalou com a chuva recente e forte... Mas as visitas não puderam ser daquelas demoradas. É que embora mereçam consideração os defuntos, os vivos carecem de satisfação das suas necessidades. O trabalho esperava a todos e foi satisfeito, bem como os bolsos no final do mês.
O mesmo Josemar, juntamente com seu filho, faz um trabalho que é deveras lindo e em alguma medida tem a ver com a morte. Eles vão ao rio e recolhem os paus de enchente (as madeiras que o rio traz quando cresce muito) e escava velhos troncos há muito enterrados na areia e no lodo. Com esta madeira (canjerana, pau d’arco, louro do bom, jacarandá etc.) que ficou dezenas de anos sob a água, em parte corroída pelo intemperismo, eles fazem móveis muito bonitos, rústicos e cuidados, que eu (e muitos visitantes) admiro. É um trabalho árduo e dele resulta que aqueles troncos mortos adquirem uma nova vida. Ontem mesmo fui ver suas últimas produções e estou de namoro com um sofazinho lindo de ver que gostaria que todo mundo visse (alguém vai dizer pra eu botar aqui no blog uma foto; meu sobrinho, Thiago, já me explicou como – pergunte seu eu aprendi). Acho que vou ter aquele sofá em minha casa...
Também gosto de trabalhar material que aparenta não servir para nada. Gosto de transformar o feio ou estragado em algo que cause prazer estético ou que represente utilidade. Uma vez olhando uma moldura que havia feito para um quadro pensava comigo que a madeira que usei poderia estar no lixo, ou em algum fogão, mas que limpando ali, lixando acolá, pintando, adaptando, o fato foi que ficou uma coisa bem bonita. Enquanto reconhecia a beleza pensava em quanto dos meus defeitos eu havia transformado em coisa boa ou bela. Tive doença incômoda que me fez trilhar caminhos de saúde que acabaram por colaborar com muitas pessoas; minha irascibilidade é uma agressiva forma de produzir muito, para o bem; minhas enormes procrastinação e preguiça são instrumentos de criação de coisas bem legais quando as uso com sabedoria. Sou um pedaço de madeira bem corroído e esbodegado, mas bem que consegui transformar tais coisas em alguma arte. Gosto de pensar-me assim. Infelizmente sou lento no proceder, poderia ter a obra de arte que é minha vida bem mais, digamos, pronta, mas enfim, até agora até que as coisas estão se saindo bem legais!
Sem mais e com um abraço, Aureo Augusto.
PS: Agora me digam se não é uma maravilha ter vizinhos como os meus: Abri a porta e tropecei em uma caixa com tomates cultivados organicamente. Lindos de deliciosos. Não sei quem os trouxe. Mas sou grato.

2 comentários:

  1. Bom dia, Dr. Áureo

    Como de praxe, cá estou eu a ler o seu blog....e dando boas risadas. Este, apesar do tema ser sério pois envolve vida, morte, perdas, é muito engraçado pois estes causos são bem típico no meio também.

    E a forma leve, bem redigida que você escreve, só faz nos dar o prazer de ler e querer passar adiante. E olhe que eu vou passando adiante os seus causos mas eu sempre digo o autor..rs rs.

    Um grande abraço!

    P.S - tb tenho amigos assim. Voltamos de Cações ontem, apinhados de bananas, aimpins, mamões além de muito carinho e acolhimento.

    Como o senhor mesmo escreveu, eu no mar e o senhor nas montanhas...........

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  2. 'Tá vendo como é o povo do interior (mesmo qdo este interior é no litoral)?
    Somos felizes pq temos esta oportunidade.
    Um abraço,
    Aureo Augusto

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