sexta-feira, 13 de novembro de 2009

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 12

TURNER E A AUTOPOIESE
Já comentei em outro momento da beleza e fragilidade das pinturas de Turner, o extraordinário pintor inglês que lidava menos com tintas do que com luz. Hoje quero, ainda usando o mesmo pintor, comentar a capacidade de regeneração do nosso corpo.
As pinturas não têm a capacidade de se regenerar, ou se defender. Turner desconhecia o poder do mofo sobre os quadros e existem registros de que em seu ateliê, o bolor grassava sobre as tintas e mesmo sobre os quadros. Aqueles que ele mais gostava, guardava-os em um porão escuro, ambiente ideal para o desenvolvimento de fungos. E os objetos não tinham e não têm nenhuma defesa contra as intempéries. É por isso que adoro usar madeiras retorcidas e atacadas pelos elementos para construir objetos, molduras e mesmo quadros. As madeiras, uma vez que deixam de ser parte de um organismo vivo tornam-se inertes, incapazes de reagir à ação dos elementos, ficando repletas de buracos e distorções quase sempre muito bonitas. As máquinas tampouco reagem. Elas não se adaptam ao mundo, não dialogam com o Universo.
Uma vez viajava pelo deserto de Atacama e tomei uma estrada que ia da cidade de San Pedro de Atacama, no Chile, para Salta, na Argentina. Para alcançar meu destino teria que cruzar a cordilheira. A certa altura o carro parou porque, como me ensinaram os nativos, ‘apunou’. Ele não se adaptou ao ar rarefeito acima de 2500m. No entanto meu organismo não apunou. O ser humano inventará um sistema em que sensores captem as alterações do ar para que carros não apunem, porém sempre será uma externalidade. O meu corpo adapta-se intrinsecamente, uma máquina não se adapta, ela é adaptada, ou preparada a se adaptar por um ser humano, ou seja, um elemento externo à máquina. Se uma máquina for atacada por fungos, seu destino é embolorar, sem resistência, até perder a capacidade de funcionar. Já o ser humano funciona de maneira diferente. Há nele um sistema intrínseco de defesa, que analisa o que o mundo lhe oferece, interage, decide como atuar e reage. Trata-se do conjunto formado pelos sistemas imunológico, nervoso e glandular, que está sujeito a falhas, apesar de sua perfeição, mas que 24 horas por dia nos protege. Outrossim, ao contrário das máquinas, estamos em permanente interação construtiva com o ambiente. Crescemos, trocamos elementos, e, quando feridos, o corpo por si só inicia um processo de recuperação, reconstruindo as partes perdidas, dependendo de sua extensão. O corpo se cria a si mesmo todo o tempo, e isso é autopoiese, palavra que, tão técnica que é, tem a mesma raiz de poesia. Hipócrates, chamado pai da Medicina, dizia, cerca de 400 anos antes de Jesus nascer, que se abrirmos com machados uma clareira no meio do bosque, este por si só se recompõe, desde que o deixemos por conta própria. Para ele, havia algo, a Fisis (natureza), uma espécie de energia que recompunha os organismos. E na verdade, vemos isso na mata. As plantações abandonadas logo são tomadas pelo bosque. Aristóteles chamou a isso de Enteléquia (ou aquilo que se cria a si mesmo). Reconheciam na floresta um super organismo, e em nosso corpo um organismo, e como tal dotado dessa capacidade de, se o deixarmos em paz (ou seja parando de agredi-lo), ele se recupera por si só.
Sorte que não somos como as pinturas maravilhosas de Turner, pois, poeticamente, somos criadores de nós mesmos.
Aureo Augusto, 26/7/06.

2 comentários:

  1. Aureo, parabéns pelo blog!
    É muito bom!
    Gosto de vir aqui e ler essas coisas belas, e pela forma que escreve, parece que estou lhe ouvindo dar uma palestra,ou em uma conversa despretenciosa ao pé do fogo; e me lembro do tempo em que eu era criança, e voce contava histórias, assim mesmo... com metáforas e aprendizados tantos.
    Palavras de alguém que viveu muito.

    Abraços,

    Maricota

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  2. OH! Maricota, realmente vc me trouxe memórias mto agradáveis de ttas coisas que fizemos. Aquelas histórias, as brincadeiras. Foi um tempo mto bom, que seguramente deve ser uma espécie de alicerce, não para viver no passado e sim para construir nossa vida agora. Aqueles momentos me dão força, nutrição para o meu agora tão rico em alegrias.
    Grato por suas palavras e pelas memórias.
    Um abraço,
    Aureo Augusto

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