sábado, 22 de dezembro de 2012

UM DIA MUITO ESTRANHO


Hoje foi um dia muito estranho! 22 de dezembro, sábado, meu desejo de ir a Salvador, comprar os presentes do natal e depois partilhar este período com meus familiares, especialmente minha mãe, uma mulher muito especial, contando agora 92 anos. A festa de natal é o momento em que nos reunimos todos e, por sermos uma família inclusiva, vizinhos, amigos, gente que nem conhecemos direito quer participar do amigo secreto como se fosse parente nato. Rimos a mais não poder, gozamos a cara um do outro, e assim nos alimentamos dessa coisa de ser família, reconhecendo os grandes defeitos, mas também saboreando a deliciosa realidade.

Saí de casa às 5h. Mais tarde do que o previsto, mas tivera que trabalhar na noite anterior, em um texto e também atendendo um jovem acidentado com moto. Ao sair dirigindo estava com o coração apertado. Normalmente quando viajo fico leve e contente. Dessa vez tinha o coração apertado e procurei justificativas para isto, tendo encontrado muitas, mas nenhuma de prova clara. Quando estava nos Campos, área logo depois da subida, na saída do Vale do Capão, tive que parar. As nuvens estavam com formas bem estranhas. Gigantescas aves, algumas desenhadas apenas como asas abertas, outras com cabeças e rabos bem delineados, feitas de nuvens se deslocavam no céu, saindo do norte e rumando para o noroeste. Eram imensas e voavam tranquilas. Em seguida, uma nuvem de cor dourada, parecendo vagamente uma ave de rapina, mergulhava sobre uma área que conhecemos como Boqueirão. Estas nuvens não se demoravam muito, tampouco se transformavam, em geral simplesmente se dissolviam, de modo que as gigantescas aves eram substituídas por outras. Depois apareceram riscos delicados (também feitos de nuvens filiformes) parecendo desenhos de montanhas, que duraram cerca de um minuto. Por fim voltaram as aves, desta vez se deslocando do oeste para o norte. Atrasei pelo menos uma hora da viagem observando este movimento nos céus.  Durante o processo lembrei-me que poderia fotografar, mas infelizmente não ficaram boas, até porque só tirei as fotos nos momentos menos marcantes. Quando tudo terminou segui viagem, com o coração menos angustiado. Tive a sensação de que as aves eram uma mensagem de caráter positivo.

Após bom tempo sem nenhuma intercorrência, comecei a ter a sensação da proximidade da morte. Foi forte. Senti-a rondando. Minha mente resolveu divagar na busca do por que desta sensação. Associei a minha mãe, afinal ela já está bem velhinha e sempre fala que só está aguardando o momento final. Meus olhos marejaram ao pensar na despedida. Pouco depois, a uns dois quilômetros da localidade de Amparo/Zuca, encontrei um acidente. Havia um grande caminhão afundado na lama ao lado da pista, como se tivesse o motorista perdido o controle. No afã de ajudar parei o carro e encontrei um homem que olhava outro que afundava na lama indo na direção da cabine do caminhão. Aliás, esta era a única parte reconhecível. Todo o resto havia se transformado em uma massa retorcida. O homem me explicou que o motorista estava dentro da cabine, mas aparentemente não estava mal. Indicou-me mais adiante um carro de passeio e informou que havia alguém preso nas ferragens. Corri preocupado. No caminho havia um homem deitado dobre o lado direito, como se dormisse placidamente. Algumas pessoas olhavam sem nada fazer, pareceram-me aparvalhadas. Um me disse para não toca-lo porque havia que esperar a polícia. Não obedeci. Mas constatei que estava morto. Os olhares me perguntavam e respondi: “Este está morto, tem algum outro?”. Havia transcorrido um ou dois minutos do acidente e havia aquele cheiro estranho de óleo, poeira e sangue. Apontaram-me o carro e corri até lá. Havia alguns homens sujos de sangue, andando a esmo (depois descobri que eram os ocupantes do veículo de passeio que não haviam sido feridos ou mortos) e outros, curiosos. Estranhei o aparvalhamento das pessoas. Estavam estranhamente calmas, como se ali nada de terrível estivesse passando. Aproximei-me do carro. Nele, todo o lado esquerdo estava arrancado; e o motorista pendia inclinado para fora do carro, em uma posição bem desconfortável. Ambos os braços mostravam sinais de múltiplas fraturas, a perna esquerda expunha-se em postas de carne sanguinolenta, o sangue escorria para o chão em gotejamento contínuo. Havia também sinais de que havia recebido forte golpe na cabeça que sangrava. O sangue também escorria pelo nariz e o homem, um sujeito enorme, bem forte e acima do peso, arfava com dificuldade enquanto agonizava.

Pedi ajuda para retira-lo do carro, mas os amigos que escaparam com vida foram bastante claros em suas afirmações de que havia que esperar o SAMU. Haviam pedido a um motorista que avisasse mais adiante. Eu não entendi nada. Disse que aquele homem estava morrendo, mas que talvez pudesse ser salvo, mas deveríamos tira-lo dali, eles recusaram ajuda. Debalde tentei afastar os restos retorcidos do carro que impediam a liberação do homem. Após cerca de quinze minutos de luta solitária chegou um motoqueiro que começou a gritar e ordenar. Conseguiu um pedaço de pau e arrombou uma das portas do lado direito do carro (que eu havia tentado abrir em vão), e tentou afastar o banco para liberar o homem. Então percebi que a morte havia cobrado sua fatura. Disse a ele que agora não adiantaria mais nada, mas ele não acreditou, continuou tentando salvar o morto. Fui saindo devagar uma mulher me interpelou: “Ele morreu?”. Respondi: “Acaba de falecer”. Ela correu para o carro, onde estavam seus familiares que não haviam ainda saltado e pegou uma máquina fotográfica e começou a registrar o acontecido, como suas primeiras fotos do passeio turístico natalino.

Achei tudo muito estranho, surreal. Conscientizei-me de que ali o ar era denso como se os movimentos fossem tolhidos por uma coisas espessa.

Ao chegar a Salvador, fui fazer as compras costumeiras, afinal meu amigo secreto espera seu presente, apesar do demais; sinto-me cansado e estranho. Amanhã acordo para outro dia.

Recebam um abraço pré-natalino surreal em 22/12/12.

6 comentários:

  1. A desumanização tem andado forte, mas precisamos acreditar na "rehumanização", pois o amor é ainda mais forte! Feliz Natal pra todos!!!

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  2. Pois é Paulo. Em outra oportunidade parei para cuidar de um atropelado perto de Feira de Santana e ninguém queria me ajudar. O cara era mto pesado e só consegui um grupo para me ajudar a coloca-lo em uma caminhonete depois que a polícia chegou e obrigou. E, no hospital, a polícia me tratou como se eu fosse um criminoso, apesar de o atropelador estar ali, reconhecendo tudo. Coisas estranhas!
    Seja como for, re-humanizemo-nos! Feliz Natal para todos nós.
    Abração.

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  3. Querido Aureo. Roberto Crema sempre reafirma que estamos diante de uma grande patologia que chama-se Normose. Onde tudo é normal. É normal acidentar-se e esperar o SAMU pois não devemos tocar. É normal ficar indiferente ao que se passa aos nossos olhos. As pessoas estão deixando de se indignar com os fatos e isto é sério. Tudo isto passa a ser normal e deixamos de perceber a natureza humana. o que faz parte do SER. E as normas do não tocar, do esperar, da impotência e incapacidade para vem se instalando. Graças a Deus ainda existem pessoas como você que ficam indignada com os fatos. Continuemos indignados e agindo com naturalidade e fora da normalidade. Um beijo e Feliz Natal.!

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  4. Eu não tenho experiência em acidentes de estrada, não sei como é e como era o comportamento das pessoas. Nas cidades sempre tem mais gente e, mesmo com a aglomeração de curiosos e observadores, a solidariedade não fica tão ausente.
    Realmente sua descrição lembra mais um texto do Stephen King.
    O problema da globalização, com a consequente banalização de informação, parece trazer este resultado conjugado: A transformação dos humanos em "zumbis".
    "Xô coisa ruim, te arrenego!".
    Abraço ainda humano.

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  5. Parece que aqueles filmes de zumbi (que nunca assisto pq não gosto de filme de terror) são uma boa metáfora.
    grato pelo abraço ainda humano.

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  6. Que texto tenso, doutor. E esperar o Samu pra que? Quando a morte galopa mais rápido?

    Chocante, a mulher querer tirar fotos. Ela sim, é a mais pura representante da zumbilândia.

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