Quase todos os dias, antes ou no final do expediente, tenho ido visitar um homem jovem (35 anos) que está morrendo aos poucos com um câncer devastador que lhe causa grandes incômodos. Já está desenganado. O médico em Salvador foi muito claro ao lhe revelar que não há mais possibilidades de recuperar-se do grave trânsito pelo qual está passando. Hoje quando estava conversando com ele chegaram alguns representantes de uma corrente cristã evangélica. Dois homens, um pastor e um cantor, e uma mulher, vieram dar-lhe conforto espiritual.
O pastor falou muito insistindo que ele pode se salvar na dependência de sua fé. Algumas vezes disse que estava também nas mãos de Deus e que este, no final decidiria. Em dado momento exaltou-se e olhou para a esposa do moribundo e apontando-lhe com o indicador disse que ela tinha em sua família um “espírito hereditário de doença”. Naquele momento dentro do quarto se instalou um clima bem estranho, havia uma exaltação de emoções, uma energia, uma vibração bem forte, porém francamente (a meu ver) associada ao estado do próprio pastor, que repercutia na chorosa esposa. Por fim ele foi bem claro ao dizer que dentro de mais alguns dias não mais haveria um doente naquela casa.
O oráculo foi claro. Também acho que dentro de mais alguns dias não haverá mais um doente naquela casa. Ou Deus vai agir e o cara vai estar curado, ou Deus vai agir e o cara já não estará entre nós.
A questão é que percebo um clima no qual Deus vai salvar o sujeito. Fico me perguntando o que é salvar. Será que salvar é alcançar um estado (que já vi em outras pessoas em estado terminal) onde haja uma paz redentora no confronto final com a morte? Ou será que salvar é apenas e unicamente a recuperação total do corpo físico? Lembrei-me de um dos ensaios de Montaigne no qual ele lamenta que muitas pessoas só acreditam em Deus na medida em que este age de acordo com o desejo de quem diz crer. A pessoa afirma com todas as letras: Deus é grande, pois eu lhe pedi tal coisa e ele me concedeu. Montaigne pergunta: E se ele não tivesse concedido, deixaria de ser grande?
Fiquei pensando na certeza do pastor, que contou diversos milagres que testemunhou e que ocorreram graças ao poder de Deus, que por sua vez interveio por obra das suas orações. Não sou dado à descrença, conquanto não seja uma pessoa de fé. Porém olhei a cena com certa estranheza.
O quarto, o homem pálido, macilento, esquálido e triste, os filhos pequenos atônitos, o irmão alheio, a esposa contrita e sofrida (será viúva pela segunda vez – a menos que a intervenção tenha como resultado o seu desejo), os religiosos tomados por uma fé, diria, medieval, e eu, olhando e ao mesmo tempo participando com o coração contrito. Eu estava contrito, pois procurei encontrar aquele Mistério que nos une a todos no sofrimento, ou seja, no ato (como diria Ralph Blum) de estar submetido às contingências da Terra, deste mundo.
Saíram todos e por fim eu e a esposa do rapaz enfermo.
Olhamos o céu do entardecer e alertei-a para o dourado que a luz assinalava em casa coisa, realçado pelo céu plúmbeo agourando chuva. Ela sorriu triste e me falou de esperança e de redenção.
Saí caminhando pela vila e logo a palpitante vida me fez notar que o mundo está estranhamente girando apesar de que naquela casa, o Universo parou à espera de um milagre – mas não podemos nós os seres humanos determinar egocêntricamente que milagre é este que acontecerá. Esperemos.
Recebam um abraço pensativo de Aureo Augusto.
Aureo,
ResponderExcluirParabéns pelos seus textos que trazem todas as belezas e angústias do povo do Vale. Espero conhecê-lo no fim do ano, quando passarei alguns dias aí no vale do capão.
E a chuva, chegou?
Murilo
Olá Murilo, vou ficar esperando vc no final do ano. A chuva chegou em abundância logo após o São João. Agora estamos todos encharcados e enregelados (pq o frio veio de cortar) até os ossos e consequente e paradoxalmente felizes!
ResponderExcluirabraço
Lendo agora este humano e belo texto fiquei curiosa em saber de fato qual foi a providencia divina. Se a paz chegou a esta família. Se pela cura espiritual ou fisica. bj
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