O que me impressiona nela são os olhos de louca. Talvez seja melhor dizer: Olhos alucinados. Hummm... Ainda não é o ideal...
Quando era menino passava um seriado na televisão – Os Intocáveis – e o artista principal tinha este olhar. É uma coisa entre viva, interessada, curiosa, mas não dá para ficar por aí porque é preciso acrescentar um tanto de desvairio. Esta mulher à qual me refiro é assim. Não é possível, parece-me, confiar nela. Não quanto a sua bondade, e sim quanto ao que irá fazer no momento seguinte. Talvez se vá ou abandone aquele compromisso que fechou como imprescindível e inadiável.
Morou aqui no Vale do Capão por um bom tempo, com os filhos e o ex-marido e também com o pai do novo filho que aqui concebeu, o qual, ao seu tempo, ou melhor, antes mesmo do tempo, foi excluído, porque não era uma pessoa “para se ficar com ela”. Perguntei-me àquela ocasião: Mas se não era para ficar com ela, por que um filho com ela? Bom, não fiz a pergunta, de que adiantaria? Afinal ali já estava (está) o filho. Pariu e depois seguiu seu não destino. Foi para a sua terra de origem.
Hoje retornou com a bela criança nos braços, veio de visita, mas o neném está com um pequeno problema de saúde e por isso trouxe-a para uma consulta. Conversamos um pouco, como sempre faço com todos, exceto naqueles dias em que as urgências, as costuras, os cortes, febres ou dores atrozes que surgem como que do nada, intrometendo-se no ritmo comum do ambulatório, me impedem de continuar o atendimento do jeito que me apraz e ao qual me acostumei.
Ela me disse que estava morando na mesma aldeia em que nascera. Seus filhos iam à escola e estava comendo muito bem porque seus pais, por serem hortelãos, lhe garantiam frutas e verduras de qualidade à mesa. Considerei que devia estar feliz porque tinha a oportunidade de viver em um lugar sereno e com alimentação saudável. Ela retrucou que sim, era muito bom, porém estava impressionada com o fato de que lá na Europa os camponeses estarem rapidamente se afastando dos costumes tradicionais e ficando ofuscados pela tecnologia. Todos têm computadores e automóveis e não sabem como usa-los. Até aí achei bem parecido com o Capão. Não, aqui nem todos têm computadores, e os que não têm e se interessam (sempre jovens) sabem usa-los muito bem. Mas a febre de motocicletas e carros é grande. A profusão e barbeiros é impressionante. Houve um dia em que fui chamado a atender uma pessoa que passava mal na rua. Era um modorrento domingo e havia acabado de almoçar. Mandaram me buscar. O motorista é um sujeito nervoso nos modos, que fala muito rápido de modo que tenho dificuldade de entende-lo. Sempre fico sorrindo com cara de palerma, quando ele conversa comigo, fingindo que estou entendendo e prestando muita atenção a suas expressões. Na conversa, se fica sério faço o mesmo; quando ri, rio também. Quando peço para repetir alguma coisa, e isso ocorre quando me vem alguma dúvida quanto a se devo rir, pôr-me sério ou chorar, ele repete com prazer, mas do mesmo modo, ou talvez um pouco mais rápido; mas aí já consigo discernir qual a resposta e adapto o rosto ao momento dialogal. É um jogo muito interessante! Pois bem, foi ele que veio buscar-me. Não sei onde aprendeu a dirigir, mas falava e manejava o carro com uma velocidade apavorante. Ao chegar na casa da enferma, depois de atende-la pedi para ir ao banheiro, onde vomitei tudo o que tinha comido como seqüela dos sustos pelos quais havia passado na estrada.
A mulher de olhos alucinados não notou que o Capão tem este quê de Europa. Sorrio de mim para comigo mesmo quando penso isso! Mas ela comentava também que lá, em sua terra, falta esta efervescência que caracteriza o Vale do Capão. Aqui, dizia, se queremos estar tranqüilos é muito fácil, basta não sair de casa, ou caminhar para os muitos lugares ermos, solitários, distantes do ruído embora perto, ‘logo ali’ como se diz por aqui. Porém se dá vontade de encontrar pessoas e conversar sobre assuntos que extrapolam, ou mesmo, estranham, as faldas da serra, não é difícil. Tem o circo, teatro, dança do ventre, cinema, tem muitas coisas para se ver ou fazer. Lá, em sua terra, nada mais que silêncio. Um silêncio povoado de olhares dizendo qual o comportamento adequado. Olhares os há lá e cá, indubitavelmente, disse, porém talvez porque ali onde nasceu, ninguém dos moradores de outras terras aparecem e estão demasiado dentro dos próprios costumes, de tal maneira que qualquer outra coisa que não o dia a dia parece muito mais estranho do que é em realidade. Mesmo com a televisão! Isso sem contar o fato de que aqui, no Brasil, na Bahia, e no Vale do Capão, as pessoas são muito mais abertas e receptivas. Foi o que disse, embora não com estas palavras idênticas.
Lembro que quando aqui cheguei causou-me viva impressão a receptividade das pessoas. Sei que o povo do campo tende a ser hospitaleiro, porém reservado. Aqui o olhar inquiria não tanto o que criticar e sim, muito, o que aprender. Penso que aquela mulher não é muito certa da cabeça, mas reconheço que em muitas coisas sua fala testemunhava fatos que acompanhei e sei.
Em 22 de agosto de 2010, recebam um abração, Aureo Augusto.
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