quarta-feira, 25 de junho de 2014

ANDAR NA ROMARIA E FORA DELA

Quando se aproxima a data da festa da Lapa, começa a arrumação do povo para a romaria. Hoje a maior parte vai de ônibus especialmente fretado para isso. Juntam o dinheiro e procuram os motoristas que já criaram um esquema muito bem arrumado para o transporte dos fiéis (têm até carteirinha de chefes de romaria). Há algum tempo eram caminhões com as pessoas amontoadas na carroceria, parando aqui e ali para comer, descomer e dormir. Mais antigamente ainda era bem mais pitoresco e cansativo. O povo do Vale do Capão se preparava com cuidado, porque a viagem duraria mais de um mês. Saíam a pé, homens, mulheres e crianças, com suas coisas na cabeça ou no lombo de animais e caminhavam léguas e léguas até chegar ao seu destino. Era uma verdadeira epopeia, que não deixava a dever ao Caminho de Santiago do qual tanto se fala.

Embora exaustiva, acredito que esta caminhada representava para eles um momento onde eram esquecidos todos os aspectos opressivos do cotidiano. A gente aqui era pobre, muito pobre. Quem garimpava recebia o ‘saco’ (uma espécie de cesta muito básica) do sócio e partia para a serra para cavoucar a terra em busca de cascalho promissor. Depois o trabalho cansativo de manusear o calumbé e as peneiras até, se a sorte e a intuição resultassem, vir o brilhante reluzir. As mulheres ficavam cuidando da terra e da criançada. Uma vida dura! Quando decaiu a lavra e o café deixou de trazer rendimentos seguros restou à maioria dos homens partir para São Paulo, de onde mandavam dinheiro para o sustento da família, ou desapareciam para sempre sem dar notícias. Vai daí que mais de um mês experimentando o nomadismo deveria representar um descanso; um interregno de sonho, onde tudo pode ser bem aproveitado aos sentidos porque nada será para sempre. Nenhuma rotina!

Descanso caminhando! Sair da rotina era algo maravilhoso, mas as pessoas daquela época talvez não notassem o quanto era benéfico o fato de ter que caminhar aquela jornada.
Observo que em lugares do interior as pessoas fortes, lutadoras, como todas as demais, adoecem, mas não tanto. Mas quando chega a idade e param, quando deixam os exercícios obrigados da labuta, logo se enchem de achaques. Aqueles que, por diversas situações, não podem parar, adoecem menos. Ficando claro que tudo demais é sobra. Ou seja, alguns se esfalfam tanto no trabalho que terminam adoecendo por isso.

O ser humano, se não foi feito para trabalhar em excesso, com certeza não o foi também para ficar parado. E somos uma gente construída para caminhar, e muito. E isso começou com nossos mais remotos antepassados. Foi um sucesso quando cientistas descobriram pegadas de Australopitecus afarensis, na região chamada Corno da África. As marcas eram evidências de que aquele ser caminhava ereto. Como nós. Aliás, não paramos mais. Tanto é assim que logo seus descendentes, os H. erectus e H. habilis, se dispersaram por toda a África, Europa e Ásia e, em seu devido tempo o H. sapiens alcançou a América povoando-a do estreito de Bering à Terra do Fogo. E tudo isso a pé.

Em certa medida gostamos de desculpas, proteção e conforto. Porém desculpas frequentemente são formas de impedir que vivamos de verdade a verdade que é viver. Proteção, coisa tão útil para o nosso crescimento e mesmo para a manutenção da nossa vida, quando em excesso nos será prejudicial. Conforto, quem não o quer? Demais, porém, é um dos mais poderosos venenos. Portanto, caminhemos como fizeram nossos antepassados.

Recebam um abraço caminheiro de Aureo Augusto.


4 comentários:

  1. Dr.Áureo, minha avó fazia esse percurso todos os anos a pé. Saíam de Irecê. Ela faleceu com aproximadamente 100 anos. Não tinha nenhum problema de saúde.

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  2. Veja só que belo testemunho!
    grato, Lídia.

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  3. Frequentemente eu me perguntava sobre o porquê de tantos costumes originados de tradições
    que já perderam o sentido. Você me aparece com uma resposta básica!
    A romaria, por exemplo, era uma singular para se sair da rotina exaustiva da luta pela sobrevivência.
    Pesquisemos assim, sem os extremismos de "ou é preto ou é branco", ou luz ou trevas", e tudo
    entra nos eixos. A Natureza, sempre mais sábia que nós, não dá ponto sem nó!
    Infelizmente, não estou caminhando quanto deveria, mas já caminhei tanto que,
    envio um abraço 'de passagem'. Rerrerré!

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  4. "singular oportunidade". Ô tecladinho traioeiro!

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