A LINHA DO
TEMPO NO SER HUMANO
Palestra de abertura do V Encontro de
Profissionais de ESF no
Vale do Capão.
Agrada-me que um evento como este possa manifestar-se com
toda a sua cosmicidade. Gosto de
notar o mundo como uma totalidade multidimensional e entristece-me ver-nos a
nós, seres humanos – eu incluso – atolados em uma psico-materialidade insípida,
limitada pela necessidade fisiológica e pelo gozo superficial, ilusório e pouco
capaz de propiciar estados consistentes de felicidade. Por isso nesta fala,
peço a permissão de caminhar entre as estrelas sem esquecer os pés que me atam
(prazerosamente) ao chão. Ocorre que tive uma experiência de cura há muitos
anos atrás e isso abriu meus olhos para o fato raso de que somos bem mais do
que imaginamos e, embora eu seja bastante capaz de esquecer minha grandeza para
viver nos estreitos limites da minha mediocridade, também às vezes desperto
(graças àquela experiência de cura) para minhas ilimitadas qualidades,
características naturais de todo e qualquer ser humano, que isso fique
registrado.
Abraham Maslow (in Introdução à Psicologia do Ser) nos diz
que podemos escolher viver ou ser aquém de nossas possibilidades, mas
acrescenta que isso nos trará sofrimento. Tenho sofrido exatamente quando me esqueço
de ser o que eu sou amplamente. E lembro que o que eu sou o sou na medida em
que sou com. Com meus
companheiros de raça humana, com a enorme variedade de bichos e plantas de todo
tipo, minerais etc. Sou com e jamais apenas.
Pensemos o humano. Limito-me a esta espécie de ilimitadas
possibilidades, dentro do tempo infinito que nos conforma enquanto objetos
históricos. Proponho que somos uma interação entre vontade e história, como
filhos do tempo, a ele adstritos e para além dele naquilo que queremos. Nós, os
seres humanos, somos filhos de Chronos e por ele somos devorados, mas
perduramos. Perduramos enquanto espécie e enquanto seres criativos e criadores
de cultura. É assim que nos incluímos no tempo.
Vai daí que o tempo ele também é algo que passa por nós
enquanto objeto do mesmo jeito que somos objetos do seu passar. O que é o
tempo?
Podemos entendê-lo como algo objetivo, marcado pelos nossos
relógios cuja precisão vem sendo anunciada no evoluir da técnica. Mas mesmo
este tempo claro e obvio é relativo. Ele não existe a não ser com. O tempo é uma das dimensões
da têmporo-espacialidade em que existimos e depende das relações com os objetos
e seus movimentos. Einstein nos ensinou isso. Lembro que quando um objeto
atinge velocidades próximas à velocidade da luz, o tempo se encolhe. Então o
tempo objetivo é relativo.
Ademais ele jamais pode escapar à nossa observação do seu
caráter subjetivo. O tempo é também um fenômeno humano e faz parte da
subjetividade humana. Vai daí que é um rio o qual, se bem ocupa toda a dimensão
do visível, corre mais rápido ou mais devagar na medida da minha (nossa) calma
ou ansiedade, dos nossos fazeres e compromissos, dos nossos apuros ou
relaxamentos... esta subjetividade também marca a própria fisiologia corporal.
Há quem velho seja, mas mantém-se ativo e mentalmente jovem, criativo,
imaginativo e impressionantemente dotado da chispa do aprender – que
caracteriza o bebê.
Nós falamos em linha do tempo. Mas não percebemos que se trata de uma
curva – e relembro o velho Einstein que também nos ensinou que retas são
improbabilidades físicas, uma vez que o espaço é curvo. Entre os povos celtas
não havia esta linearidade retilínea dos acontecimentos. Para eles o tempo
volta-se sobre si mesmo em um círculo perfeito. Isso pesa em nosso passar no
tempo de nossas pequenas vidas (e é um exemplo que usarei neste momento para
ilustrar uma abordagem do ser humano pautada em sua amplitude). Um círculo que se
revela como uma espiral.
Acompanhando Theda Basso e Aidda Pustilnik (in Corporificando
a Consciência), o evoluir da consciência em nós acompanha estágios que podem
ser definidos em 3 fases básicas e suas subfases:
Fase pré-pessoal
– que vai do nascimento até mais ou menos os 6 a 7 anos, quando a criança
descobre o próprio corpo, desenvolve a sensorialidade, está muito centrada em
si na medida em que precisa disso como meio de sobreviver e de inserir-se no
mundo. Contém as subfases: Sensorial,
Fantasmagórica Emocional e Mente Representativa.
Fase pessoal –
em torno dos 7 anos começamos a adquirir a capacidade de perceber que o mundo
tem leis, regras, aos poucos desenvolvemos a capacidade de raciocinar, de
refletir e depois até de pensar sobre o pensamento. No final desta fase saímos
da postura comum racional de ver as diferenças para buscar as semelhanças e a
integração. Contém as subfases Regras e
Papéis, Mente Reflexiva Formal
(tipifica a mentalidade científica) e Visão
Dialética e Integradora.
Fase trans-pessoal
– quando uma vez que o ego está formado e fortalecido (o que significa
resiliente), podemos adentrar as experiências da contemplação e da
experimentação direta da realidade subjacente às leis do mundo. Contém as subfases Insight Metafísico, Mente Universal/Sutil e Supramente.
Estas fases e suas subfases trazem desafios para a criança,
o adolescente e o adulto. Não apenas desafios mentais e emocionais, mas também
físicos. Algumas doenças físicas acompanham o processo de crescimento da
pessoa. Os medos são pautados em diarreias e as inseguranças podem traduzir-se
na economia da obstipação, viroses da infância podem manifestar a apropriação
do corpo pela consciência durante a infância; dores, febres, dificuldades
respiratórias indicam as conflituosas descobertas e adaptações às vezes
forçadas a um mundo que pode ser hostil – e o é tantas vezes (v. por exemplo,
Georg Grodeck, Estudos Psicanalíticos
Sobre Psicossomática; Melo Filho, Psicossomática
Hoje; Angel Garma, A Psicanálise). Por outro lado algumas
doenças caracterizam ou alinham-se mais com o coletivo da humanidade enquanto
outras modulam-se pelos avanços pessoais (Angela Maria la Sala Batà, Medicina Psico-Espiritual).
Qual o desafio para a Unidade de Saúde da Família (ou a ESF
e para o SUS), quando abordamos a pessoa humana olhando-a como espiral e como
um ser multidimensional?
Uau! Esta é uma pergunta difícil de responder e não
respondo. Aqui, neste encontro temos pessoas bem capacitadas para nos indicar
caminhos. Porém, conquanto reconheça que o assunto é bem mais amplo do que
alcança minha vista, pelo menos percebo que sendo multifacético o desafio,
multifacetada será a resposta à pergunta.
A primeira coisa que me ocorre é que os profissionais de
saúde, todos nós, devemos começar a sair da nossa tão usual mediocridade para
acompanhar a pessoa em sua abrangência. Ou seja, precisamos nos preparar mais
para estes novos tempos, onde as pessoas estão se revelando mais do que meras
comedoras de insumos e eliminadoras de detritos. Como devo receber esta criança
que está olhando o mundo atrás do vidro da pre pessoalidade na subfase x? O que
eu faço (e isso é algo muito frequente no Vale do Capão) com esta moça que
acredita que já alcançou o estágio transpessoal, mas que na verdade está
vivendo um grave equívoco? Explico melhor este detalhe: Muitos acreditam que já
vivenciou a fase pessoal, e que agora está “anulando o ego” e alcançando uma
realização superior, onde experimenta insights que lhes garante o acesso à
comunicação com dimensões (ditas) superiores da existência, quando na verdade
estão vivendo uma fantasia típica da subfase fantasmagórica emocional não
resolvida (v. sobre isso Ken Wilber, A
Falácia Pré/Trans, in Caminhos Além
do Ego organizado por Roger Walsh e Frances Vaughan). O erro já se impõe com
a ideia de que o ego é um bicho a ser devorado, quando é uma ferramenta de
comunicação. Mas, cabe àquele que acompanha compreender, contribuir para a
superação da neurose, aqui vista como o vivenciar anacronicamente o mundo.
Mas, ao mesmo tempo em que vemos ou atuamos neste contexto,
não devemos nos esquecer que diante de nós há uma pessoa portadora de diabetes
ou hipertensão, pneumonia ou gastrenterite. A amplitude da consideração pode
fazer-nos esquecer das raízes que (prazerosamente) nos nutrem no chão. Entre as
insinuações do infinito e os desdobramentos do restritivo devemos proceder à
nossa missão de contribuir com a saúde.
De passagem quero comentar que este povo que está vindo
agora tem um modo de postar-se que por si já representa desafio. Tenho sido
surpreendido com as novas gerações. Uma criança de braço estava na consulta e
enquanto sua mãe falava olhei para o seu rostinho absolutamente lindo e
enternecedor. Sem querer peguei a caneta e fiz um rápido esboço da carinha. A
menina apontou para o desenho e disse o próprio nome. Interrompi a mãe e
mostrei o desenho para a criança e ela me olhou e repetiu o próprio nome,
indicando que sabia o que dizia, sabia o que eu fazia e rompia com o meu
conhecimento quanto ao desenvolvimento infantil herdado de Piaget (conhecimento
este que permanece válido, porém merece reajustes). Os jovens têm me procurado
para consultas e nos seus sofrimentos, agruras, inseguranças e angústias tenho
encontrado coisas que me deixam perplexo. As moças estão vendo a sexualidade
como um instrumento para serem inteiras que deve estar deixando os jovens
homens um tanto fora de foco. E os rapazes (que veem em menor número) estão
querendo algo mais, muito além dos horizontes de seus pais (e dos meus). Sim,
escuto-os e por isso manifestam ambientes psicológicos que para mim são searas
desconhecidas, mas onde avanço confiado em que eu mesmo surpreendi meus pais e
nem por isso desesperei-os. Há uma guiança nos caminhos desconhecidos das novas
descobertas. Mares nunca dantes navegados guardam sinais antigos e visitados
por lendas hoje mortas à superfície do olhar. Sereias espreitam viandantes
odisseus, porém acontecem mastros para amarrar-nos, acontecem remos ferindo as
águas e proas construindo trilhas no oceano móvel. Além de cuidar das
significantes queixas (joelhos, menstruações, topadas, indigestões, gestações –
“indesejadas” – quedas de motocicletas, álcool e drogas, e outras coisas) e do
significado (secreto) das queixas, preciso acompanha-los na linha espiraliforme
do tempo dobrando-se sobre si mesmo (como disse um físico) propondo-me uma
medicina responsiva à ampla gama das necessidades dos que buscam o ambulatório.
Não posso me esquecer que sou mastro, remo e quilha para
esta gente. Sou o SUS e sou algo mais que um prescrevedor de medicações. A ESF
se me afigura como algo concebido para encontrar a pessoa em uma acepção muito
ampla. Cumpre que nós, profissionais de ESF, consigamos alçar-nos para além
daquela tendência latente, patente ou explícita em nós que nos faz meros prescrevedores
inermes, vermes no lodaçal de um cotidiano fabricado para construir
aposentadorias: o acostumamento à mediocridade.
Somos medíocres sim, mas também somos um alude de
possibilidades! Enfrentamos dificuldades múltiplas, desde nossas próprias
limitações, àquelas impostas por uma sociedade como a brasileira que se formou
sobre bases muitas vezes equivocadas, que é injusta e difícil. Que é assim por
conta de uma história. Que é fruto do passar do tempo no qual muitas vontades
moldaram os ritmos dos acontecimentos. Somos nós similares vontades para
contribuir com histórias. Só que desta vez a história pode ser muito diferente.
Uma equipe de saúde, em um dos tantos fins de mundo deste
nosso sertão brasileiro, que deixa de fazer muito daquilo que merece (e tem
que) ser feito (como vimos no AMAQ), mas que não tem medo de pegar os frutos da
criatividade, tocar com eles a nossa poderosa vontade tornando-os inovações no
tatear o coração da nossa gente em busca dessa coisa chamada qualidade de vida
em sua mais ampla acepção. Dizia: esta equipe os convida a que aventuremo-nos
por este mundão que se abre, o mundo da resposta à questão sobre como o SUS vai
acompanhar este ser multifacetado e multidimensional que se apresenta à ESF na
linha do tempo da pessoa humana.
Aureo Augusto em
30/10/12.