segunda-feira, 19 de novembro de 2012


A LINHA DO TEMPO NO SER HUMANO
Palestra de abertura do V Encontro de
Profissionais de ESF no Vale do Capão.
Agrada-me que um evento como este possa manifestar-se com toda a sua cosmicidade. Gosto de notar o mundo como uma totalidade multidimensional e entristece-me ver-nos a nós, seres humanos – eu incluso – atolados em uma psico-materialidade insípida, limitada pela necessidade fisiológica e pelo gozo superficial, ilusório e pouco capaz de propiciar estados consistentes de felicidade. Por isso nesta fala, peço a permissão de caminhar entre as estrelas sem esquecer os pés que me atam (prazerosamente) ao chão. Ocorre que tive uma experiência de cura há muitos anos atrás e isso abriu meus olhos para o fato raso de que somos bem mais do que imaginamos e, embora eu seja bastante capaz de esquecer minha grandeza para viver nos estreitos limites da minha mediocridade, também às vezes desperto (graças àquela experiência de cura) para minhas ilimitadas qualidades, características naturais de todo e qualquer ser humano, que isso fique registrado.
Abraham Maslow (in Introdução à Psicologia do Ser) nos diz que podemos escolher viver ou ser aquém de nossas possibilidades, mas acrescenta que isso nos trará sofrimento. Tenho sofrido exatamente quando me esqueço de ser o que eu sou amplamente. E lembro que o que eu sou o sou na medida em que sou com. Com meus companheiros de raça humana, com a enorme variedade de bichos e plantas de todo tipo, minerais etc. Sou com e jamais apenas.
Pensemos o humano. Limito-me a esta espécie de ilimitadas possibilidades, dentro do tempo infinito que nos conforma enquanto objetos históricos. Proponho que somos uma interação entre vontade e história, como filhos do tempo, a ele adstritos e para além dele naquilo que queremos. Nós, os seres humanos, somos filhos de Chronos e por ele somos devorados, mas perduramos. Perduramos enquanto espécie e enquanto seres criativos e criadores de cultura. É assim que nos incluímos no tempo.
Vai daí que o tempo ele também é algo que passa por nós enquanto objeto do mesmo jeito que somos objetos do seu passar. O que é o tempo?
Podemos entendê-lo como algo objetivo, marcado pelos nossos relógios cuja precisão vem sendo anunciada no evoluir da técnica. Mas mesmo este tempo claro e obvio é relativo. Ele não existe a não ser com. O tempo é uma das dimensões da têmporo-espacialidade em que existimos e depende das relações com os objetos e seus movimentos. Einstein nos ensinou isso. Lembro que quando um objeto atinge velocidades próximas à velocidade da luz, o tempo se encolhe. Então o tempo objetivo é relativo.
Ademais ele jamais pode escapar à nossa observação do seu caráter subjetivo. O tempo é também um fenômeno humano e faz parte da subjetividade humana. Vai daí que é um rio o qual, se bem ocupa toda a dimensão do visível, corre mais rápido ou mais devagar na medida da minha (nossa) calma ou ansiedade, dos nossos fazeres e compromissos, dos nossos apuros ou relaxamentos... esta subjetividade também marca a própria fisiologia corporal. Há quem velho seja, mas mantém-se ativo e mentalmente jovem, criativo, imaginativo e impressionantemente dotado da chispa do aprender – que caracteriza o bebê.

Nós falamos em linha do tempo. Mas não percebemos que se trata de uma curva – e relembro o velho Einstein que também nos ensinou que retas são improbabilidades físicas, uma vez que o espaço é curvo. Entre os povos celtas não havia esta linearidade retilínea dos acontecimentos. Para eles o tempo volta-se sobre si mesmo em um círculo perfeito. Isso pesa em nosso passar no tempo de nossas pequenas vidas (e é um exemplo que usarei neste momento para ilustrar uma abordagem do ser humano pautada em sua amplitude). Um círculo que se revela como uma espiral.
Acompanhando Theda Basso e Aidda Pustilnik (in Corporificando a Consciência), o evoluir da consciência em nós acompanha estágios que podem ser definidos em 3 fases básicas e suas subfases:
Fase pré-pessoal – que vai do nascimento até mais ou menos os 6 a 7 anos, quando a criança descobre o próprio corpo, desenvolve a sensorialidade, está muito centrada em si na medida em que precisa disso como meio de sobreviver e de inserir-se no mundo. Contém as subfases: Sensorial, Fantasmagórica Emocional e Mente Representativa.
Fase pessoal – em torno dos 7 anos começamos a adquirir a capacidade de perceber que o mundo tem leis, regras, aos poucos desenvolvemos a capacidade de raciocinar, de refletir e depois até de pensar sobre o pensamento. No final desta fase saímos da postura comum racional de ver as diferenças para buscar as semelhanças e a integração. Contém as subfases Regras e Papéis, Mente Reflexiva Formal (tipifica a mentalidade científica) e Visão Dialética e Integradora.
Fase trans-pessoal – quando uma vez que o ego está formado e fortalecido (o que significa resiliente), podemos adentrar as experiências da contemplação e da experimentação direta da realidade subjacente às leis do mundo. Contém as subfases Insight Metafísico, Mente Universal/Sutil e Supramente.
Estas fases e suas subfases trazem desafios para a criança, o adolescente e o adulto. Não apenas desafios mentais e emocionais, mas também físicos. Algumas doenças físicas acompanham o processo de crescimento da pessoa. Os medos são pautados em diarreias e as inseguranças podem traduzir-se na economia da obstipação, viroses da infância podem manifestar a apropriação do corpo pela consciência durante a infância; dores, febres, dificuldades respiratórias indicam as conflituosas descobertas e adaptações às vezes forçadas a um mundo que pode ser hostil – e o é tantas vezes (v. por exemplo, Georg Grodeck, Estudos Psicanalíticos Sobre Psicossomática; Melo Filho, Psicossomática Hoje; Angel Garma, A Psicanálise). Por outro lado algumas doenças caracterizam ou alinham-se mais com o coletivo da humanidade enquanto outras modulam-se pelos avanços pessoais (Angela Maria la Sala Batà, Medicina Psico-Espiritual).
Qual o desafio para a Unidade de Saúde da Família (ou a ESF e para o SUS), quando abordamos a pessoa humana olhando-a como espiral e como um ser multidimensional?
Uau! Esta é uma pergunta difícil de responder e não respondo. Aqui, neste encontro temos pessoas bem capacitadas para nos indicar caminhos. Porém, conquanto reconheça que o assunto é bem mais amplo do que alcança minha vista, pelo menos percebo que sendo multifacético o desafio, multifacetada será a resposta à pergunta.
A primeira coisa que me ocorre é que os profissionais de saúde, todos nós, devemos começar a sair da nossa tão usual mediocridade para acompanhar a pessoa em sua abrangência. Ou seja, precisamos nos preparar mais para estes novos tempos, onde as pessoas estão se revelando mais do que meras comedoras de insumos e eliminadoras de detritos. Como devo receber esta criança que está olhando o mundo atrás do vidro da pre pessoalidade na subfase x? O que eu faço (e isso é algo muito frequente no Vale do Capão) com esta moça que acredita que já alcançou o estágio transpessoal, mas que na verdade está vivendo um grave equívoco? Explico melhor este detalhe: Muitos acreditam que já vivenciou a fase pessoal, e que agora está “anulando o ego” e alcançando uma realização superior, onde experimenta insights que lhes garante o acesso à comunicação com dimensões (ditas) superiores da existência, quando na verdade estão vivendo uma fantasia típica da subfase fantasmagórica emocional não resolvida (v. sobre isso Ken Wilber, A Falácia Pré/Trans, in Caminhos Além do Ego organizado por Roger Walsh e Frances Vaughan). O erro já se impõe com a ideia de que o ego é um bicho a ser devorado, quando é uma ferramenta de comunicação. Mas, cabe àquele que acompanha compreender, contribuir para a superação da neurose, aqui vista como o vivenciar anacronicamente o mundo.
Mas, ao mesmo tempo em que vemos ou atuamos neste contexto, não devemos nos esquecer que diante de nós há uma pessoa portadora de diabetes ou hipertensão, pneumonia ou gastrenterite. A amplitude da consideração pode fazer-nos esquecer das raízes que (prazerosamente) nos nutrem no chão. Entre as insinuações do infinito e os desdobramentos do restritivo devemos proceder à nossa missão de contribuir com a saúde.
De passagem quero comentar que este povo que está vindo agora tem um modo de postar-se que por si já representa desafio. Tenho sido surpreendido com as novas gerações. Uma criança de braço estava na consulta e enquanto sua mãe falava olhei para o seu rostinho absolutamente lindo e enternecedor. Sem querer peguei a caneta e fiz um rápido esboço da carinha. A menina apontou para o desenho e disse o próprio nome. Interrompi a mãe e mostrei o desenho para a criança e ela me olhou e repetiu o próprio nome, indicando que sabia o que dizia, sabia o que eu fazia e rompia com o meu conhecimento quanto ao desenvolvimento infantil herdado de Piaget (conhecimento este que permanece válido, porém merece reajustes). Os jovens têm me procurado para consultas e nos seus sofrimentos, agruras, inseguranças e angústias tenho encontrado coisas que me deixam perplexo. As moças estão vendo a sexualidade como um instrumento para serem inteiras que deve estar deixando os jovens homens um tanto fora de foco. E os rapazes (que veem em menor número) estão querendo algo mais, muito além dos horizontes de seus pais (e dos meus). Sim, escuto-os e por isso manifestam ambientes psicológicos que para mim são searas desconhecidas, mas onde avanço confiado em que eu mesmo surpreendi meus pais e nem por isso desesperei-os. Há uma guiança nos caminhos desconhecidos das novas descobertas. Mares nunca dantes navegados guardam sinais antigos e visitados por lendas hoje mortas à superfície do olhar. Sereias espreitam viandantes odisseus, porém acontecem mastros para amarrar-nos, acontecem remos ferindo as águas e proas construindo trilhas no oceano móvel. Além de cuidar das significantes queixas (joelhos, menstruações, topadas, indigestões, gestações – “indesejadas” – quedas de motocicletas, álcool e drogas, e outras coisas) e do significado (secreto) das queixas, preciso acompanha-los na linha espiraliforme do tempo dobrando-se sobre si mesmo (como disse um físico) propondo-me uma medicina responsiva à ampla gama das necessidades dos que buscam o ambulatório.
Não posso me esquecer que sou mastro, remo e quilha para esta gente. Sou o SUS e sou algo mais que um prescrevedor de medicações. A ESF se me afigura como algo concebido para encontrar a pessoa em uma acepção muito ampla. Cumpre que nós, profissionais de ESF, consigamos alçar-nos para além daquela tendência latente, patente ou explícita em nós que nos faz meros prescrevedores inermes, vermes no lodaçal de um cotidiano fabricado para construir aposentadorias: o acostumamento à mediocridade.
Somos medíocres sim, mas também somos um alude de possibilidades! Enfrentamos dificuldades múltiplas, desde nossas próprias limitações, àquelas impostas por uma sociedade como a brasileira que se formou sobre bases muitas vezes equivocadas, que é injusta e difícil. Que é assim por conta de uma história. Que é fruto do passar do tempo no qual muitas vontades moldaram os ritmos dos acontecimentos. Somos nós similares vontades para contribuir com histórias. Só que desta vez a história pode ser muito diferente.
Uma equipe de saúde, em um dos tantos fins de mundo deste nosso sertão brasileiro, que deixa de fazer muito daquilo que merece (e tem que) ser feito (como vimos no AMAQ), mas que não tem medo de pegar os frutos da criatividade, tocar com eles a nossa poderosa vontade tornando-os inovações no tatear o coração da nossa gente em busca dessa coisa chamada qualidade de vida em sua mais ampla acepção. Dizia: esta equipe os convida a que aventuremo-nos por este mundão que se abre, o mundo da resposta à questão sobre como o SUS vai acompanhar este ser multifacetado e multidimensional que se apresenta à ESF na linha do tempo da pessoa humana.
Aureo Augusto em 30/10/12.

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