quinta-feira, 19 de setembro de 2013

PRESCRIÇÃO SEM/COM AUSCULTA

Trabalhar em um posto de saúde da Estratégia de Saúde da Família é uma fonte perene de alegrias, preocupações, tristezas, e mais que tudo de lições de vida. Penso que o ideal para um profissional da saúde é morar no mesmo lugar em que atende, pois isso gera uma espécie de conivência com os moradores/vizinhos de modo que com o tempo a interação é tão grande que nos sentimos sempre em casa, assim como as pessoas que nos procuram para consultas.

Uma das premissas da estratégia é que nós profissionais devemos estar próximos dos nossos clientes, e esta proximidade implica em respeito mútuo. É verdade que temos determinados conhecimentos que as pessoas que nos procuram podem não ter. Mas elas conhecem seus corpos melhor que nós. Sabem bem mais de suas próprias mazelas e do sofrimento que elas lhes causam. Estão dentro do problema. Assim precisamos aprender a auscultar, mas não apenas com o estetoscópio e sim com a amizade, no sentido proposto por Aristóteles, ou seja, filia, que é algo que não julga, conquanto constate e aconselhe se necessário. Trata-se de uma abertura que nem sempre conseguimos, mas que deve ser perseguida.
Vivemos, eu e uma senhora idosa aqui do Vale do Capão, uma experiência ilustrativa. Para mim mais um aprendizado:
Esta senhora carecia de uma cirurgia para corrigir uma hérnia. Por apresentar um quadro de hipertensão tivemos que ser bem criteriosos no acompanhamento. Ela seguiu com rigor as recomendações alimentares e medicamentosas. Depois que sua pressão estava dentro dos níveis normais havia já um bom tempo, ela procurou o cirurgião (que também é clínico geral) em uma cidade próxima. Este, quase não tinha conversado com ela e irritou-se com a medicação que usava para pressão. Ralhou com ela e modificou a orientação. Fez então a cirurgia por aqueles dias, embora a pressão dela começasse a ficar alterada. Depois da cirurgia ela continuou com a medicação indicada pelo médico. Mas a pressão disparou. Procurou-o, pagando todas as consultas, registre-se, queixando-se da hipertensão, mas ele não lhe deu assunto quando disse que com as medicações anteriores estava controlada. Na verdade interrompeu sua fala e recusou-se a discutir o assunto. Acrescentou mais uma medicação, sem resultado. Então, a senhora voltou a me procurar.

Conversamos longamente sobre como se sentia. Segundo ela, no dia de tirar os pontos o cirurgião fora bastante rude na manipulação de modo que ficara doendo. Examinei, propus um procedimento e ela pediu para retornar às medicações anteriores que lhe “faziam bem”. Na conversa, juntos chegamos à conclusão de que esta seria a melhor conduta. Cúmplices, saímos do atendimento como dois bandidos prontos a fazer um assalto do bem.
A pressão dela já normalizou.

Em alguns momentos fico triste com a minha incompetência de manter um comportamento adequado durante as consultas. Muitas vezes não escuto como deveria, ou estou preocupado com o povo lá fora esperando, o com a fome e cansaço no fim do expediente etc. Outras vezes consigo auscultar a alma das pessoas sem precisar de um estetoscópio. Nestes momentos me dá a sensação de que sou médico e isso me agrada. Afinal o diploma não garante que eu seja o que nele está escrito, quem garante é a minha atitude.


Recebam um abraço médico, de Aureo Augusto.

13 comentários:

  1. Fico feliz de tê-lo conhecido e saber que existem pessoas tão sensíveis como vc e também como eu.
    Grande abraço,

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    1. Oh, Ivone! eu é que fico feliz.
      beijão

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  2. Desculpe-me a sinceridade, Áureo, mas essa arrogância de médico que "sabe tudo", infelizmente, não é incomum. Acho incompreensível que um médico não queira escutar o paciente, saber seus temores, suas queixas, suas motivações, ou relegue as informações e sentimentos do paciente a um nível insignificante. Parece que estão lidando com máquinas, talvez até se tornassem bons mecânicos.
    Conheci profissionais desse tipo e é uma experiência deplorável.
    Abraço.

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    1. Devo reconhecer que a própria formação do médico faz com que ele "maquinize-se". Isso é algo terrível, mas, como vc escreveu, comum. Ufa!
      abraço,

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  3. Meu caro amigo.

    Nas últimas décadas, são poucos os médicos holísticos, como você.

    Imagine a angústia dessa senhora. Imagine o desapontamento e também, a vergonha de ser tratada assim, pelo outro médico.

    Claro que ela foi pacífica demais. Uma certa vez, precisei drenar um abcesso dolorido demais e meu marido me levou a uma clínica de emergência localizada na Pituba. Uma clínica de ponta e particular. Mas nem isso foi suficiente para que o médico de plantão, super mal humorado, me viu como paciente. Pelo contrário, sem muitas palavras ou delongas, lá veio ele com o bisturi e tentou, isso mesmo, ele tentou drenar o danado do abcesso. Daí, entre assustada e cheia de dores, falei que esperasse eu me acalmar e que eu precisava de uma anestiesia (tenho um limiar baixissimo para dor).

    Sem me dá a menor atenção, a menor escuta e talvez com raiva de estar ali, dando plantão, ele com um resmungo, se armou do bisturi e veio para cima de mim. Só que ele não esperava encontrar uma paciente como eu. Uma (IM)paciente e que sabe muito bem dos meus direitos.

    Dei um pinote e fui em cima dele, com o dedo em riste, segurando as calçolas (o abcesso foi na bunda) e disse: alto, lá. Se o senhor está com problemas, deveria ficar em sua casa e me trate bem e me respeite e bla bla bla....

    Entre surpreso, assustado e enraivado, o "dotô" se levantou e abriu a porta me ameaçando no sentido de que eu não iria dormir com o abcesso sem drenar, que eu era muito problemática e que eu nem voltasse de novo no plantão dele.

    Então eu gritei que eu preferia morrer do que me deparar com um médico como ele e que iria chamar o Jornal a Tarde e bla bla bla enquanto marido, tadinho, sem saber se acudia a mulher com dor ou o louco dotô..kkkkk

    Por isso eu sempre falo. Tem médico e médicos. Eu poderia passar o dia aqui, encher seu post de "histórias com médicos" que eu coleciono. Tem uma super engraçada entre meu saudoso painho e um mangangão cardiologista daqui mas essa só depois.

    Feliz desse povo, doutor, desse povo do Capão. Feliz mesmo, em ter um médico capacitado, holístico, humilde e com um profundo conhecimento do ser humano com um todo.

    Viva a Dr. Áureo. Viva!!!!

    Receba um abraço holistico e continue sempre assim. Eu amo os seus posts.

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    1. Pena que nem todos os assim chamados pacientes não respondem desta forma. Claro que mtas vezes os médicos passam por situações estressantes e merecem compreensão, mas não têm o direito de jogar em cima de quem já está sofrendo.
      bjs

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  4. Dr. Áureo só conheci um medico como o Sr.foi o saudoso Dr.Domingos de Morro do Chapéu. É por isso que sou a favor
    do programa mais médicos. Um abraço fraterno. Lidia.




















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    1. grato Lídia, pena que eu não conheci aquele médico.
      abração

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    1. Oh! Mislene, sou grato pela palavra.

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  6. por isso que lhe chamo de mestre :) !!!

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    1. Atraio gente gozadora. Deve ser porque não abuso ninguém. Preciso mudar isso.
      bjs querida.

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