O rapaz, um turista, chegou ao posto de saúde onde trabalho
em estado deplorável. Hálito pestilento, diarreia intensa, prostração, sinais
de desidratação. Num primeiro momento pensei em encaminha-lo a um hospital,
porém quando pensei na dificuldade para conseguir transporte, já que este lugar
onde moro e trabalho, conquanto paradisíaco, situa-se em uma área um tanto
remota, decidi tentar ajuda-lo. A equipe de saúde do posto se desdobrou para
cuida-lo e ia vê-lo a cada momento entre uma consulta e outra. Quando me via,
ele perguntava se ia morrer. Estava deveras preocupado. Mas logo vi que se
recuperaria. E recuperou-se.
No final da manhã expliquei-lhe que estava recuperado do
quadro agudo, porém ainda depauperado, e suscitava cuidados. Disse-lhe que
fosse à pousada para descansar e prescrevi a alimentação e os procedimentos
para recompor-se. Outrossim, comentei que o fato de que havia passado por três raves
no decorrer de 3 semanas contribuiu para o seu estado de saúde frágil. Ele se
retirou e à saída disse para um amigo: “Estou zerado”, que em sua gíria queria
dizer, algo assim como “estou ótimo”.
Fui almoçar e ao retornar dei de cara com o mesmo rapaz em
um bar, sorridente, tomando cerveja. Preparei-me para recebê-lo novamente.
Aliás, naquele período de janeiro/15 não foi o único que tive que atender em
condições semelhantes e com igual irresponsabilidade.
Clemente Sánchez e Ricardo Orozco (in Flores de Bach,
Diagnóstico Diferencial entre Essências, Índigo, Barcelona-Esp, 1999) comentam
que a frase “Don’t worry, be happy” (não se preocupe, seja feliz) pode
caracterizar o tipo psíquico que corresponde, no sistema de Edward Bach, à flor
Agrimony. Este tipo de personalidade tende a ocultar os conflitos, a
insatisfação e a ansiedade através uma vida agitada, participando de festivais,
festas, podendo aderir às drogas em uma infrutuosa fuga de si mesmo. No entanto quando são confrontadas com situações derivadas
de suas fugas e são obrigadas a encarar sofrem mais que os demais.
Registro que evitar preocupações é uma atitude recomendável,
não preocupar-se é bom, já que o ideal é ocupar-se dos problemas e não ficar
com eles dando voltas na cabeça. Existem pessoas admiradas e admiráveis que mantêm
um sorriso na face e se divertem com a vida, apesar da consciência clara de
todas as dificuldades, tristezas, momentos duros, desamor, abandono que ela nos
proporciona. Mas, tenho notado em um sem número de pessoas (a maioria jovens)
que aqui aportam que tomam uma atitude forçada de negação das dificuldades
inerentes a nós, seres humanos que participamos de uma sociedade
indiscutivelmente difícil no que respeita a relações. Creem que a repetição (mental
ou gestual) do “não preocupar-se” resolverá algo do tudo que em realidade negam.
Inclusive acreditam-se vetores de uma mudança na consciência da comunidade
humana, por um milagre do centésimo macaco.
O mais triste é que de tanto teatralizar a felicidade, passam
a subviver ela e nela perdendo a noção da fragilidade da vida, dos nossos
sonhos, da consciência que temos de nós mesmos.
Com frequência escuto o discurso de que eles não participam
do “Sistema”. Não querem pagar impostos nem prestar contas à “sociedade podre e
falsa”, mas acorrem pressurosos ao posto de saúde quando enfermam. Usufruem do
bem público, sem contudo contribuírem com os demais, em uma atitude narcísica
que corresponde à definição grega (antiga) da palavra idiota, ou seja, aquele
que não se interessa pelos assuntos públicos – incluindo a política.
Nós, seres humanos, somos obrigados a estabelecer
estratégias de sobrevivência na selva social e a conduta “agrimony” é uma entre
tantas. Toca-nos, enquanto trabalhadores da saúde em um posto de um lugar
remoto, com uma população nativa a ser assistida e um expressivo grupo de
visitantes dos mais variados matizes ideológicos, culturais, psicológicos,
raciais, de nacionalidades distintas e línguas estranhas, atentar para o número
grande demais para ser ignorado daqueles que manifestam esse tipo de
comportamento. Muitos deles agregam a esta conduta uma postura arrogante
derivada em parte (e em alguns) do fato de que são europeus e mantêm a mente
colonialista, enquanto outros têm a crença de que são uma espécie de elite que
está fora dos requisitos e das limitações das demais pessoas.
Inda temos que lidar com o fato real de que somos nós também
preconceituosos contra aqueles que vivem o “don’t worry” seja real ou
fantasiosamente. E este tem sido tema frequente em nossas reuniões de equipe. Somos
agentes de saúde e consequentemente estamos orientados a ajudar a quem
necessita e para tanto somos convidados a trabalharmos em nós a nossa
capacidade de amar. Quem cuida, para que cuide adequadamente, ama, amará. Mas ser
instrumento do amor, dito melhor, ser cada vez mais instrumento do Amor,
implica o desafio de não querer fazer do outro ou com o outro aquilo que acreditamos
seja o caminho eleito para a saúde e a felicidade.
Por isso penso que somos nós da Unidade de Saúde da Família
de Caeté-Açú, no povoado do Vale do Capão, em Palmeiras-Ba, Brasil, um grupo de
pessoas abençoado com a oportunidade de questionar-se graças ao desafio de
encontrar tantas pessoas “agrimony” entre outras. Quantos mais têm a
oportunidade de gestionar pela experiência do dia-a-dia o ato que é aprender a
amar e aceitar a diferença, tentando reconhecer nela aquilo que corresponde ao
ato positivo de ser ou ao ato negativo de desconhecer-se o ser que se é. Enfim,
um caminho pessoal para a felicidade.
Recebam um abraço amoroso (dentro de minhas limitações) de
Aureo Augusto.