terça-feira, 31 de março de 2015

GERAÇÃO AGRIMONY

O rapaz, um turista, chegou ao posto de saúde onde trabalho em estado deplorável. Hálito pestilento, diarreia intensa, prostração, sinais de desidratação. Num primeiro momento pensei em encaminha-lo a um hospital, porém quando pensei na dificuldade para conseguir transporte, já que este lugar onde moro e trabalho, conquanto paradisíaco, situa-se em uma área um tanto remota, decidi tentar ajuda-lo. A equipe de saúde do posto se desdobrou para cuida-lo e ia vê-lo a cada momento entre uma consulta e outra. Quando me via, ele perguntava se ia morrer. Estava deveras preocupado. Mas logo vi que se recuperaria. E recuperou-se.

No final da manhã expliquei-lhe que estava recuperado do quadro agudo, porém ainda depauperado, e suscitava cuidados. Disse-lhe que fosse à pousada para descansar e prescrevi a alimentação e os procedimentos para recompor-se. Outrossim, comentei que o fato de que havia passado por três raves no decorrer de 3 semanas contribuiu para o seu estado de saúde frágil. Ele se retirou e à saída disse para um amigo: “Estou zerado”, que em sua gíria queria dizer, algo assim como “estou ótimo”.
Fui almoçar e ao retornar dei de cara com o mesmo rapaz em um bar, sorridente, tomando cerveja. Preparei-me para recebê-lo novamente. Aliás, naquele período de janeiro/15 não foi o único que tive que atender em condições semelhantes e com igual irresponsabilidade.

Clemente Sánchez e Ricardo Orozco (in Flores de Bach, Diagnóstico Diferencial entre Essências, Índigo, Barcelona-Esp, 1999) comentam que a frase “Don’t worry, be happy” (não se preocupe, seja feliz) pode caracterizar o tipo psíquico que corresponde, no sistema de Edward Bach, à flor Agrimony. Este tipo de personalidade tende a ocultar os conflitos, a insatisfação e a ansiedade através uma vida agitada, participando de festivais, festas, podendo aderir às drogas em uma infrutuosa fuga de si mesmo. No entanto quando são confrontadas com situações derivadas de suas fugas e são obrigadas a encarar sofrem mais que os demais.

Registro que evitar preocupações é uma atitude recomendável, não preocupar-se é bom, já que o ideal é ocupar-se dos problemas e não ficar com eles dando voltas na cabeça. Existem pessoas admiradas e admiráveis que mantêm um sorriso na face e se divertem com a vida, apesar da consciência clara de todas as dificuldades, tristezas, momentos duros, desamor, abandono que ela nos proporciona. Mas, tenho notado em um sem número de pessoas (a maioria jovens) que aqui aportam que tomam uma atitude forçada de negação das dificuldades inerentes a nós, seres humanos que participamos de uma sociedade indiscutivelmente difícil no que respeita a relações. Creem que a repetição (mental ou gestual) do “não preocupar-se” resolverá algo do tudo que em realidade negam. Inclusive acreditam-se vetores de uma mudança na consciência da comunidade humana, por um milagre do centésimo macaco.

O mais triste é que de tanto teatralizar a felicidade, passam a subviver ela e nela perdendo a noção da fragilidade da vida, dos nossos sonhos, da consciência que temos de nós mesmos.
Com frequência escuto o discurso de que eles não participam do “Sistema”. Não querem pagar impostos nem prestar contas à “sociedade podre e falsa”, mas acorrem pressurosos ao posto de saúde quando enfermam. Usufruem do bem público, sem contudo contribuírem com os demais, em uma atitude narcísica que corresponde à definição grega (antiga) da palavra idiota, ou seja, aquele que não se interessa pelos assuntos públicos – incluindo a política.

Nós, seres humanos, somos obrigados a estabelecer estratégias de sobrevivência na selva social e a conduta “agrimony” é uma entre tantas. Toca-nos, enquanto trabalhadores da saúde em um posto de um lugar remoto, com uma população nativa a ser assistida e um expressivo grupo de visitantes dos mais variados matizes ideológicos, culturais, psicológicos, raciais, de nacionalidades distintas e línguas estranhas, atentar para o número grande demais para ser ignorado daqueles que manifestam esse tipo de comportamento. Muitos deles agregam a esta conduta uma postura arrogante derivada em parte (e em alguns) do fato de que são europeus e mantêm a mente colonialista, enquanto outros têm a crença de que são uma espécie de elite que está fora dos requisitos e das limitações das demais pessoas.

Inda temos que lidar com o fato real de que somos nós também preconceituosos contra aqueles que vivem o “don’t worry” seja real ou fantasiosamente. E este tem sido tema frequente em nossas reuniões de equipe. Somos agentes de saúde e consequentemente estamos orientados a ajudar a quem necessita e para tanto somos convidados a trabalharmos em nós a nossa capacidade de amar. Quem cuida, para que cuide adequadamente, ama, amará. Mas ser instrumento do amor, dito melhor, ser cada vez mais instrumento do Amor, implica o desafio de não querer fazer do outro ou com o outro aquilo que acreditamos seja o caminho eleito para a saúde e a felicidade.

Por isso penso que somos nós da Unidade de Saúde da Família de Caeté-Açú, no povoado do Vale do Capão, em Palmeiras-Ba, Brasil, um grupo de pessoas abençoado com a oportunidade de questionar-se graças ao desafio de encontrar tantas pessoas “agrimony” entre outras. Quantos mais têm a oportunidade de gestionar pela experiência do dia-a-dia o ato que é aprender a amar e aceitar a diferença, tentando reconhecer nela aquilo que corresponde ao ato positivo de ser ou ao ato negativo de desconhecer-se o ser que se é. Enfim, um caminho pessoal para a felicidade.


Recebam um abraço amoroso (dentro de minhas limitações) de Aureo Augusto.

4 comentários:

  1. Assustador notar como se dissemina esta atitude predatória,
    "di chi da niente e tuto piglia" (Sergio Endrigo).
    Não é fenômeno local ou nacional, e parece ser agravado pela
    ação da mídia, bombardeando-nos com mensagens de "seja
    feliz agora" adquirindo o produto tal ou consumindo o produto
    qual. E tudo com pressa, sem se preocupar com 'amanhãs'.
    Muitos deles, infelizmente, não terão mesmo um amanhã.
    Abraço abismado.

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    1. parece que estamos sendo incitados à superficialidade.
      o que será que vai acontecer?
      pelo menos tenho feito contato tb com jovens maravilhosos, inclusive alguns estudantes de medicina que vêm fazer estágio no posto onde trabalho.
      abraço

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  2. Caro Áureo, que texto estiloso, como sempre.

    Concordo que estamos sendo incitados à superficialidade. Mercados podem se desenvolver por estes estímulos e um grande avanço do marketing vai nesta linha. Até para a política já pesquisam nossos vieses nos estimulam a decidir conforme preferências de corte de cabelo, forma de sorriso, entre outras coisas. Por outro lado, tenho a impressão de que o Capão, do alto da sua inquestionável exuberância natural, é pára-raio de tipo agrimony agudo, atrai gente assim. Procede? Forte abraço, Alden

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    1. Rapaz!!! Parece que vc tem razão! Mas nos consola o fato de que o lugar continua com sua exuberante beleza e com o povo maravilhoso daqui.
      abraço

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