A semana santa é um momento bem especial para mim aqui no Vale
do Capão, pois minha primeira visita ocorreu neste período, e naqueles dias
esse lugar manifestou-se em toda a sua glória, com tempestades elétricas,
cachoeiras pra todo lado, e, quaresmeiras, às centenas, floridas, como se o
mundo fosse uma mágica (e é!).
É a época mais bela por aqui!
No grupo das pessoas idosas que ocorre todas as quartas na
nossa USF de Caeté-Açú, perguntei como era a semana santa no passado aqui nesse
Vale abençoado. Vão aqui algumas das informações que coligi:
Em realidade o processo começava na quarta-feira de cinzas. Ali
começavam as 4 semanas da quaresma, cada uma com seu nome:
Semana 1. Das trevas.
Semana 2. Das lágrimas.
Semana 3. Das dores.
Semana 4. Semana Santa.
Durante estas semanas não era permitido o consumo de carnes
(exceto peixe) nas quartas e nas sextas. Até hoje não se come carnes (menos
peixe) na quarta, quinta e sexta-feira da Semana Santa. Dentro destes
preceitos, quem se chamava Maria não podia pentear o cabelo, comer goiaba, nem
cana-de-açúcar – que, segundo as lendas locais, havia sido usada para golpear
Jesus e por isso era amarga e ficou doce. As Marias também usavam a mesma roupa
na quinta e na sexta-feira.
Nos dias dedicados à Paixão de Cristo, os jovens acordavam 4
a 5 horas e procuravam pedir a benção a seus padrinhos, com eles tomar o café
da manhã, e (na sexta) almoçar. No café da manhã tinha que ter cuscuz que era
feito a partir do próprio milho, que era pisado, retirado o olho, soprado para
separar o farelo e posto de molho em água morna durante a noite. Depois era
novamente pilado e cessado e só então se fazia o cuscuz em cuscuzeiro de barro
enrolado no pano. Esse mesmo milho era usado também para fazer angu servido no
almoço da sexta na casa dos padrinhos, o qual era servido com peixe. Essa tradição
é mantida pela maior parte dos antigos. Depois do almoço tinha como sobremesa
melancia, que era trazida de Palmeiras em boa quantidade, assim como as
abóboras para a comilança. Uma vez consumida a sobremesa todos faziam uma
contrita oração de agradecimento a Deus.
Na igreja local o Senhor Morto era posto sobre uma mesa para
ser visitado por todos, que lhe beijavam e depositavam uma moeda em um
cofrinho. A essa altura todos os santos estavam cobertos, como é frequente no
mundo católico, sendo que aqui o pano não era roxo, como em outros lugares (não
tinha cor específica).
No Sábado, a finada Neném abria a igreja às 10h, batia o
sino e comandava a reza do ofício. Meio-dia as famílias colocavam uma bacia de
esmalte branca com água e cantavam certas músicas e a gente ao redor fitava a
água para “ver a aleluia na água” – olhavam a água, seus reflexos e em dado
momento achavam que era aleluia (não consegui uma explicação clara quanto ao
fenômeno, mas lembro que quando eu era bem criança tinha algo assim em
Salvador); nesse momento os santos eram descobertos. Então era permitido o
consumo de carne e os pais podiam voltar a bater nos filhos, que no dia
anterior estavam isentos de castigos. Registre-se que durante a sexta-feira os
pais recolhiam as becas (badogue, estilingue) da criançada, pois era proibido
matar qualquer coisa neste dia; com a liberação no sábado, era uma matança
generalizada de passarinhos ou o que quer que aparecesse, e, o produto era
usado para comer. Lembro que a pobreza aqui era grande, as dificuldades
inúmeras e nem sempre havia disponibilidade de proteínas.
Uma coisa interessante é que durante a sexta-feira era
proibido andar a cavalo, e mesmo os raros carros paravam, tampouco era
permitido qualquer tipo de relação comercial e nada que envolvesse dinheiro. Nesse
dia havia visita ao cemitério (onde se acendiam velas) que estava limpinho,
pois no dia anterior os homens se haviam incumbido de cuidar do local.
Todas as noites da Semana Santa a matraca cantava pelo
povoado convidando a todos para a reza da meia-noite pelas almas dos mortos,
quando as mulheres enrolavam-se com lençóis brancos, inclusive a cabeça. Depois
da reza alguns aproveitavam a escuridão e o descuido dos responsáveis para ver,
ou um pouco mais, suas paqueras em segredo.
Para fechar quero descrever a fórmula das bênçãos que os
jovens pediam aos pais, aos padrinhos e às demais pessoas pelas quais nutriam
maior consideração e respeito:
Aquele a ser abençoado se ajoelhava e dizia: – Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo.
A resposta vinha pronta: – Para sempre seja louvado, nossa
Mãe Maria Santíssima. Deus lhe dê boa sorte, saúde, paz...
A Semana Santa era um momento de grande contrição para toda
a comunidade. Reafirmava-se o sentido de pertencimento a um grupo e uma
tradição. Todos se uniam para fortalecer os laços que contribuíam para a coesão
do grupo. Hoje o tecido social vem se esgarçando e não é só aqui. Os desafios
daquele tempo em alguma medida obrigavam às pessoas a reduzir-se ao grupo
enquanto hoje o individualismo vem tendendo a prevalecer. Bom? Mau? Bem? Mal? O
futuro dirá. Porém creio que muito do passado não era tão bom como gostariam os
saudosistas, assim como demais do presente não se vê benéfico. Enquanto penetramos
nos novos tempos, quiçá deva ser razoável olhar para o passado em busca de
referências que nos ajudem nos dilemas que o tempo nos propõe.
Recebam um abraço com flores de quaresmeira.
Bendita seja a memória, que mesmo cansada, flui nas vozes daqueles que viveram, ou souberam dos que viveram, um conjunto de relatos que nos conduz ao passado, fundamento dos nossos futuros...
ResponderExcluirBendita as narrativas que fortalecem identidades e territórios que embora suprimidas em meio as tormentas de um mundo cada vez mais global, ressurgem, recriam, reavivam, revelam...
Bendita as vozes que ressurgem, recriam, reavivaam e revelam um mundo que vai muito mais além do que é contado pelas histórias oficiais...
Faço minhas as suas poéticas palavras, caro anônimo.
ExcluirQue vivam as memórias!
Sou grande admirador de memórias, preferencialmente,
ResponderExcluiras que focalizam coletividades. As boas experiências devem
ser recordadas para, não somente nos fazer reviver bons
momentos, como tentar metlhorar os dias futuros.
As más experiências também devem ser relatadas,
para podermos evitar erros contornáveis.
Sou, porém, grande contraditor das teses que enaltecem
o passado como o tempo ideal, que pretendem dizer que
"aquele é que era o tempo bom!".
Ah, não! Tempo bom sempre será o tempo futuro,
que a gente pode adequar aos nossos anseios e às nossas
necessidades. Se não se conseguir, tudo bem, assim é a vida.
Mas o que interessa é tentar!
Mudar o passado é somente ficção.
E a gente vai pro futuro, queira ou não!
Abraço memorioso.
Que ótimo dizer: Faço minhas as suas palavras!
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