Fui e sou testemunha, tanto na qualidade de mero observador,
como na condição de participante efetivo, de diversos movimentos de variadas
matizes que buscam melhorar – alguns sinceramente, outros não – o mundo.
Quando jovem frequentei assustado o diretório acadêmico do
Colégio Central da Bahia, onde cursei o científico. Foi uma época de
perseguições e os militares me metiam um medo tão atroz quanto o que sentia dos
líderes do diretório com seu pregão religioso anti-imperialista. Tudo bem, sou
um cara medroso e por isso seguramente poucos da minha geração tiveram o mesmo
grau de susto. No entanto, lembro-me que os militares estavam defendendo a
democracia, contra os comunistas insanos e os líderes do diretório defendiam a
democracia contra os militares que na realidade defendiam a burguesia.
A burguesia naquela época para mim era uma coisa perversa,
responsável pela pobreza e pela exploração do homem pelo homem – é assim que se
dizia. Depois que a mulher foi incluída na conta dos despossuídos.
O capitalismo, instrumento burguês de dominação, era a fonte
de todo o mal e isso era indiscutível no meio em que eu frequentei a partir
daí, e era indiscutível porque na verdade não era discutido. Resolvi ler Marx,
o Capital, e me esforcei, mas me perdi o tempo todo. E, o pessoal que militava
nas hostes do bem não o havia lido, exceto um único colega, que conversava
muito comigo e me ensinava e esmiuçava Hegel, Engels, Marx, muito mais fácil
que a leitura. Lembro-me dele, magro, curvo, nariz aquilino, pele clara como
impensável em um baiano daquela época, bem intencionado até a medula, o único
que realmente sabia o que falava e como tal rejeitado tanto à direita quanto à
esquerda (da qual queria participar sem sucesso). A dificuldade que eu encontrava
em estar a seu lado era que ele era excessivamente estudioso – e todos os
excessivamente estudiosos passam pelo dilema que foi a vida de Hamlet – e eu um
tanto preguiçoso e ademais lia e relia a Anatomia da Paz de Emery Reves.
Por alguma insanidade eu queria a paz. É fácil dizer que
isso era porque eu era e sou um covarde, nada pronto pra uma briga. Seguramente
essa característica teve seu papel, mas seria reducionismo alheio à verdade
outorgar a apenas isso o meu pacifismo precoce. No plano pessoal isso era
seguro, mas no plano geral, social digamos, até que era corajoso, pois estava
na contramão de tantos ao meu redor que progrediam desde as brigas de turmas de
rua, até a propaganda revolucionária (tanto a favor quanto contra o regime
militar).
Naquele tempo eu me sentia tendo que escolher entre os
militares que me tiraram tantos dos meus amigos (amigos dos quais admirava a
coragem), ou os militantes de esquerda que me remetiam aos pogroms soviéticos,
à invasão da Hungria e ao esmagamento da Primavera de Praga... Hoje as coisas
são algo diferentes, mas não tanto a mais quanto gostaria.
Ocorre-me que temos um tremendo medo de reconhecer a
diferença como essencial à vida social, como aliás vem pregando com algum
sucesso o pensador Leandro Karnal. Deveríamos observar mais cuidadosamente a
biologia. Onde há maior diversidade há mais resiliência e resistência
ambiental. O Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA, estava se degradando
ecologicamente e ninguém conseguia saber o porquê. A reintrodução dos lobos fez
o parque voltar à vitalidade. Eles controlaram a população de certos herbívoros
que antes se proliferavam e acabaram com a vegetação rasteira na beira dos rios
e córregos.
Na nossa vida social e no relacionamento dentro da sociedade
precisamos de todos os tipos de gente, ou, dito melhor e mais acertadamente, de
todos os tipos de opiniões. E, a oposição a um governo, se exercida em boa-fé
(imploro que leiam sobre a boa-fé no “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” de
Comte-Sponville), e principalmente se o governo é exercido em boa-fé é
absolutamente essencial e necessária para o bom andamento da coisa pública.
Mas o que vi foi um desastre patrocinado por uma elite ciosa
de seu mundinho de regalias às custas de todo um povo laborando em condições
frequentemente insalubres auferindo salários ignóbeis. O Brasil entrou numa
espécie de Idade Média, da qual a muito custo tateamos para sair e, as notícias
que vêm de Brasília não são nem um pouco alvissareiras. Pois conquanto nós, o
povo, continuamos tateando para sair, outros, que podemos chamar de “elite” às
claras ou disfarçadamente tudo faz com o intuito consciente ou não de manter
tudo como está, ou seja, na contramão da diversidade.
Podemos chamar de “elite” não apenas quem nasceu em berço de
ouro, mas também quem o conquistou, por vias políticas ou por labuta, mas que
assume uma postura classista (disfarçada ou não) – e veja que existem pessoas
muito ricas que não fazem parte dessa “elite”.
Isso não ocorre porque capitalismo, ou porque comunismo, ou
porque falta religião ou porque insanos. Em alguma parte de todo o processo o
economicismo acabou por suplantar o cuidado do com o povo ou com a coisa
pública. Não se governa pelo bem das pessoas e sim pelo bem da economia,
enquanto esse “bem” mantém, por exemplo, grupos muito ricos tendo suas dívidas
perdoadas para manter o funcionamento do sistema, enquanto gastos com a saúde
ou a educação dos mais pobres são denunciados como abusos socialistas.
O que temos é uma junção de um equívoco, onde as pessoas são
esquecidas, com a má fé de políticos e seus asseclas em um verdadeiro complô
contra uma possível democracia diversificada e bela.
Vamos ver aonde isso vai chegar.
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