Tenho tido a oportunidade de contatar freqüentemente com educadores, o que me traz muito aprendizado, como era de se esperar. Uma coisa importante que aprendi é que o ato mecânico da repetição não implica necessariamente na interiorização daquilo que deve ser aprendido. Aprender implica apreender. Apossar-se. Assumir autoria. Gosto do termo em castelhano: adueñarse, tornar-se (ou sentir-se) dono. Daí que o crescimento no aprendizado humano não é semelhante ao crescimento de uma rocha como a ardósia, por sobreposição. Na formação destas rochas, os sedimentos vão se sobrepondo uns aos outros e dessa maneira ela vai crescendo (quando a erosão desgasta tais sedimentos a pedra vai diminuindo). As pessoas que apenas repetem o que fizeram seus ancestrais, se crescem, o fazem como uma rocha e não como um ser vivo, cujo crescimento é de dentro para fora e não por acúmulo de elementos externos. Tais pessoas, quando em contato com o intemperismo que é a evolução da nossa sociedade, são erodidas em suas certezas, já que não desenvolveram a inteligência, vista aqui como a capacidade de responder a novos desafios, a novas questões. Os modelos de relacionamento que os antigos mantinham entre si, com a natureza, consigo mesmos, precisam sofrer transformações, na medida em que a humanidade passa por novos desafios, o aprendizado pode responder a este desafio, mas não o decorar verdades (ou inverdades) antigos e, muitas vezes, anacrônicos.
Entre os índios brasileiros era comum a queimada antes do plantio, o que a médio prazo empobrecia a terra. Quando ocupavam uma certa região, notavam que depois de algum tempo a terra enfraquecia e, por isso, seminômades que eram, abandonavam aquele local em busca de nova área. Ocorre que em algum tempo a área enfraquecida era tomada de volta pela floresta e recuperava suas condições originais, pois a capacidade de regeneração da mata é impressionante, assim como seu poder de transformar resíduos. Na floresta amazônica nada do que seja lançado como dejeto orgânico permanece intocado. Em poucos minutos uma multidão de insetos, vermes e outros seres, reduz o que quer que seja a adubo, que será rapidamente aproveitado pelas árvores. Mas os índios eram poucos, daí que as clareiras que abriam na mata e os resíduos que nela lançavam eram de pouca monta. Hoje, urge que haja uma mudança de relacionamento do ser humano com a floresta, pois que o volume da agressão à natureza é muito grande, já que não somos pouca gente e sim multidões. O desafio que os índios enfrentavam era quanto à própria sobrevivência, mas agora o nosso desafio é quanto à sobrevivência da nossa e das próximas gerações. A poetisa baiana Ester Ferreira nos traz uma reflexão em seu último livro Teu Filho Aguarda a Resposta: “Repetir o que fazem os mais velhos / será o caminho mais sábio?”. Com certeza a nossa resposta terá que ser não, senão desapareceremos.
Não repetir, não trilhar os mesmos caminhos... Mas, o que fazer com todo o conhecimento e a sabedoria dos mais velhos? Seguramente não devemos lançar tudo em uma espécie de balde de lixo da história. Talvez também aqui a reciclagem e o reaproveitamento tenham seu lugar.
Não tenho profunda admiração por guerreiros como Aquiles, ou Átila. Penso que não temos muito que aproveitar da crise infantilóide que o grande guerreiro grego teve quando abandonou a luta contra os troianos, um empreendimento de grupo, por causa do orgulho próprio ferido. Também as infindáveis querelas dos grupos celtas, que propiciaram um sangramento contínuo daquele extraordinário povo, são prova de que os antigos tinham bobagens tão grandes ou maiores do que as atuais. E o que não dizer dos nossos antepassados mais recentes? Os europeus tão bem educados, limpos e estudiosos, devastando o mundo no século XIX, torturando e matando para manter o poder, como hoje em dia faz qualquer destes tiranos do terceiro mundo? E as pessoas cheias de polidez dos séculos passados. Tão admiráveis, comendo da forma certa, curvando a cabeça para as mulheres enquanto se pervertiam no recôndito dos lares. Admiráveis senhores dos engenhos e cidades deliciando-se com o estupro de escravas. Como podemos ver, o mundo de antigamente era tão horrível como o de hoje, senão mais. A diferença é que agora nos horrorizamos um pouco mais, embora não em todos os lugares nem em todas as situações.
Admiro a competência de Aquiles e gostaria de ver esta mesma competência ser usada hoje quando da necessidade real de defesa e também e mais ainda, quando da necessidade de uma diplomacia sem pusilanimidade. É imprescindível que aprendamos com os celtas o seu sentido de liberdade e de nobreza, sua fé em que somos mais do que meros corpos lançados ao mundo. Gosto do senso de dever dos ingleses e do cosmopolitismo francês no século XIX. A coragem dos portugueses do décimo quinto século em seu “navegar é preciso, viver não é preciso” é admirável e sempre o será. Mesmo com todos os seus desvios, os senhores de engenho e das cidades coloniais honravam a própria palavra. Dar a palavra e cumpri-la, sempre será algo a ser emulado.
Não devemos copiar. Não podemos deixar-nos apanhar pela repetição impensada do jeito que aprendíamos a ler antigamente, repetindo “Ivo viu a uva”. No entanto, devemos usar nossa inteligência para atender aos novos desafios, com a coragem de mudar a nossa maneira de atuar no mundo, respeitando cuidadosamente aquilo que recebemos dos antigos, usando todo o enorme cabedal de experiências que deles recebemos, sem, contudo, deixar de construir algo próprio. Usar a coragem de Aquiles, o senso de liberdade celta, o cosmopolitismo francês, o individualismo dos primeiros americanos, o senso do dever inglês, a palavra honrada dos brasileiros (além da sua alegria), juntamente com o impulso ibérico em direção ao mundo novo além dos oceanos. Questionar tudo, experimentar o possível, lidar com o provável neste mundo de incertezas para construir o que há pouco parecia impossível. Erramos, erraremos, errantes, seguiremos acertando. Pois só acerta o alvo quem lança o dardo.
Aureo Augusto, em 10/4/06.
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