terça-feira, 12 de março de 2013

D. LICINHA e a MORTE


Estava em Lisboa (em 2010) quando D. Licinha faleceu. Escrevi o texto que se segue e só agora o publico em parte porque o assunto morte é recorrente em minha produção, mais do que qualquer coisa pelo fato de que me dói pensar no que se perde quando um idoso se vai. Tanto conhecimento... Bom, convido-o a saborear os pensamentos que esta morte me trouxe:

Uma senhora muito especial. Não era uma mulher comum, inclusive nos seus costumes. Não me lembro dela, exceto quando padecendo de forte sofrimento, com o rosto vincado pelo mau humor. Teve um importante papel na história deste lugar, não como algum tipo de heroína (que por aqui não tem muito esse negócio de herói e heroína – sendo tais títulos direito de todos, pois subsistir e viver em um lugar como esse, naquelas épocas de um passado tão duro, só para seres míticos). Dizia, não como heroína, nos termos de guerras, ou trabalhos, mas importante pelo fato de ter sido uma pessoa que marcou seu tempo e sua gente. Já a conheci viúva. Seu Piroca já tinha morrido quando vim morar no Vale. Ele era uma das pessoas que cuidava da saúde do povo em uma época onde médico era difícil. Dizem que ele havia estudado no sul do país alguma das ciências da saúde (talvez mesmo medicina), porém não concluíra o curso por questões financeiras. Retornando a sua terra passou a ajudar os vizinhos quando necessitavam, graças ao seu conhecimento das qualidades das plantas, até que faleceu. Ela seguiu em frente e criou dentro de suas possibilidades aos filhos. Acompanhei sua longa enfermidade e seu sofrimento; via sua alegria quando ia visitá-la. Agora deixou um lugar vazio.

Observo que o povo do Vale lida com a morte com certa ligeireza. Acredito que isso vem da luta que era a mera subsistência no passado. Há 50 ou 70 anos ninguém podia dar-se ao luxo de prantear os seus por largo tempo. Havia que catar o café, limpar a roça, parir crianças, revolver serras, garimpar, ralar, serrar, torrar, moer, comer e, por fim, morrer. Talvez por isso durante as exéquias a dor se manifeste em tantos brados por parte das mulheres. Os homens mantêm-se um tanto distantes, até aparvalhados alguns. Há entre eles os que mostram saudade, não há dúvida, mas não tanto quanto as mulheres próximas, que até desmaiam, ou aparentam – e comento assim porque há algo de teatro nesta dor, conquanto haja a dor. Algo assim como a frase de Pessoa: “O poeta é um fingidor, finge que é dor a dor que deveras sente”.  Algumas mulheres vi e para mim era claro que faziam uma espécie de ato a ser visto; não que a dor não lhes tocasse, mas me parece que ademais de sentir, havia que demonstra-lo e de forma o mais evidente, inquestionável, inequívoca e gritante possível.

Depois, dá a impressão que, uma vez enterrado o defunto, volta-se ao dia-a-dia até com certa pressa. Os parentes íntimos ainda ficam naquele lusco-fusco obnubilante de dor e saudade, por mais uns dias. Algumas pessoas guardam a lembrança por anos, mas a maioria, me parece, esquece mais rápido do que devia. Entenda-me, não penso que se deve parar a vida como enterrar os vivos para celebrar os mortos. Há que sofrer e deixar passar, porém sem fugir da dor. O filósofo José Gil (in Portugal, Hoje, O Medo de Existir) comenta que “todo o cerimonial do luto visa reinscrever nos vivos o morto”. Diz ainda que morto e enterrado com o luto patente, “torna-se um antepassado que dá força aos vivos”. Caso isso não aconteça, os mortos permanecem como fantasmas a assombrar os vivos. E o fato é que os mais ligeiros na dor, pelo menos por aqui, são os que mais têm medo dos mortos. O medo aos mortos é uma instituição no Vale do Capão. Não entendo como podem temer tanto a quem amaram (ou amam). Em certa medida isso faz eco à maneira com que os bretões (da Pequena Bretanha) se relacionam com os seus defuntos. Havia muito medo. Coisa que era oposta à forma com que os antepassados destes mesmos bretões se relacionavam com o mundo do além. Antes do cristianismo a vida após a morte era mera continuação da vida atual, não havia rupturas ou medos. Era normal. Depois a morte se desnaturalizou. Talvez no Capão as coisas tenham corrido de modo semelhante. Os mortos passaram a ser ameaça. Pelo menos para a maioria.

Lembro-me das pessoas que se foram daqui e que eram meus amigos. Trovão (Delfino), Dedê, D. Pequeninha, Seu Chico Branco, Seu Chico Preto, Seu Anísio (Ah! O velho Anísio), D. Antônia (a parteira), tanta gente... Agora D. Licinha.

Recebam um abraço vivo de Aureo Augusto.

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