sexta-feira, 29 de novembro de 2013

VIAJANDO PELO PLANETA PALMEIRAS

Estávamos, eu e Natália (enfermeira do posto – minha chefa) indo para Conceição dos Gatos, com um motorista contratado pela prefeitura quando notamos que saía fumaça do capô. O motorista saltou para ver. Falei: é a ventoinha. Natália me perguntou o que era isso. Disse-lhe que não sabia, mas que sempre que carro sai fumaça por aqui é essa tal de ventoinha. Rimos os dois com a minha sapiência ignorante. Aí o motorista voltou e confirmou: É a ventoinha.

Aliás, este carro já me veio buscar 4 vezes e em todas quebrou. O motorista labuta bastante no processo de manutenção do sujeito, mas parece que os resultados não condizem com o esforço. E quando está bom, dentro da cabine tem um fedor de descarga de automóvel que me faz sentir dentro do túnel Américo Simas em Salvador. Talvez seja para eu não ficar excessivamente viciado no ar puro daqui.
Às terças ausento-me do Vale do Capão para atender os povoados de Rio Grande, Conceição dos Gatos e Lavrinha. Regra geral, vamos eu, a enfermeira e a agente comunitária de saúde que acompanha estas localidades. É um trabalho bastante agradável com um povo bom e feliz por ter a oportunidade de atendimento. Sempre tem alegrias, risos, às vezes aborrecimentos, muito pó e raramente lama. O tipo da coisa que estimula o ser humano a viver.

Habitualmente me mandam carro e motorista da própria prefeitura. Porém às vezes todos estão ocupados (época de vacinação, por exemplo) e vem alguém contratado. Cada motorista tem seu jeito – de dirigir, de se relacionar etc. – mas todos são loucos por direção. Parece algo como um brinquedo para uma criança. Como eu mesmo não curto dirigir, fico admirado. Tem uns que além da direção são apaixonados também pela parte mecânica, outros me decepcionam quando o carro quebra porque não sabem nada. Tinha um que fedia tanto que Natália ria de mim, pois eu ficava com a cabeça pra fora da janela. Outro, o carro atolou (porque caiu na vala em minha casa) e não sabia o que fazer. Tirei a roupa, peguei a enxada, cavei abaixo da roda, pus um macaco, levantei o carro e fui jogando pedras embaixo até que deu pra tira-lo dali. O homem ficava se admirando de minha experiência no assunto. Mas também tantos anos de Capão! Fiquei admirado que ele, sendo motorista, fosse tão inexperiente na coisa. Há um sumamente simpático, João, que fala o tempo inteiro de tecnologia de antenas parabólicas. Zé Alfredo era muito legal, mas ele se mudou para Barreiras. Uma pena, eu gostava demais quando ele vinha, pois sendo ele pastor evangélico conversávamos horas sobre as mensagens bíblicas. E ele é daqueles que seguem o pregam – começa que não é rico – e ademais é muito tolerante com outras religiões, coisa nem sempre comum. Além de falar de Deus, Zé Alfredo gostava muito e gastava bastante do seu tempo pescando. E quando nos encontrávamos se alegrava em contar as aventuras. Deduzo que, em oposição à regra dos pescadores, não mentia, já que é pastor.

Algumas vezes é cansativo viajar pelos ermos destas estradas esburacadas e empoeiradas, mas o mais do tempo é gostoso. Palmeiras é um planeta bem especial, tem áreas altas como o Capão, semiárido, zonas de gado, outras de garimpo, enfim, um lugar rico e belo. Vejo, aprendo, saboreio.

Recebam um abraço palmeirense de Aureo Augusto.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O OVO GORO DA CASCAVEL

Seu Elísio (o nome é falso, que ele é meio invocado e não pedi permissão) disse que o escorpião nasce do ovo goro da cascavel e é por isso que o veneno é tão forte. Segundo ele “quem for mordido por um dos dois não encontra felicidade”. De onde será que veio esta ideia?
Tem algumas pessoas que me encantam pelo seu jeito peculiar de falar e o melhor de tudo é que essa maneira de falar tem a ver com o jeito pessoal de ver e de relacionar-se com o mundo. Um deles é Seu Elísio que é bem regular no acompanhamento médico no posto. Tem problema com hipertensão e mais recentemente diabetes. No início era muito óbvio que não seguia nada da orientação. Mas sensibilizou-se aos poucos com o meu interesse – consegui até que fosse atendido por um cardiologista em Seabra, sem pagar nada – e foi demonstrando aos poucos maior cuidado. Hoje é razoavelmente provável que use as medicações com alguma correção. Mas sei que quando sai pra beber não usa o remédio de jeito nenhum. Além disso, come do jeito dele, muito especial e carregado. E como é dono de várias tiradas interessantes e sábias, agarra-se a elas e vive conforme sua verdade negando-se àquilo que não faz parte do habituado conceitual em que se arruma e se reconhece.

Acho isso lindo. Gosto. Vejo que retirar do ser humano aquilo que lhe faz sentir-se distinto é uma condenação. O processo de mudança em uma pessoa como ele seguirá um rumo distinto do processo de outras pessoas. Paciência devo ter se não consigo avançar na direção que eu penso ser a ideal. Cabe aqui até algumas reflexões quanto ao que é ideal, quanto a se é desejável o ideal que imagino, se o que ele precisa para si. Claro que sendo médico tenho o pensamento focado em sua saúde. Porém, por isso mesmo estou obrigado a respeitar nele a identidade, uma vez que não há saúde sem felicidade ou identidade. E faz parte da identidade o capital cultural e o respeito ao jeito pessoal.

Nem sempre isso é fácil, principalmente quando temos a noção de que somos donos do saber. E, na formação médica está implícito que detemos todo o saber possível, e tendemos a ver que paciente tem apenas noções rasas de saúde que às vezes são inconvenientes.

Creio que os educadores podem nos ensinar. Hoje sabemos que para melhor alfabetizar uma criança devemos reconhecer o valor de suas hipóteses quanto ao que é escrita. Sendo desafiadas a cotejar suas hipóteses com a realidade, elas vão construindo um saber. Penso que nós médicos deveríamos usar desta sistemática (aqui excessivamente resumida). Até porque há a possibilidade real de que muitas hipóteses populares sejam corretas, como, por exemplo, o conceito de alimentos remosos e depurativos. Para a cultura popular, certos alimentos tendem a gerar resíduos negativos para a saúde (remosos) enquanto outros estimulam a eliminação tóxica. Hoje, vemos autoridades médicas e pesquisadores de ponta reconhecendo (com outra terminologia) esta realidade que tem sido esquecida.

Mas no início comentei do Sr. Elísio. Realmente ser mordido por cobra venenosa ou por escorpião dos brabos é forma de não encontrar a felicidade. Amei este jeito de falar. Poético. E esta poesia que toca o coração de quem escuta nos alerta para olhar dentro dos sapatos antes de calçá-los, para que a felicidade persista mais tempo.
Lembrando que a vaidade intelectual é uma peçonha que envenena a alma e o sentimento, dela decorrente, de superioridade nos impede de estabelecer laços relacionais mais produtivos com as pessoas. Além disso, a visão meramente analítica da realidade tende a desconstrui-la enquanto lugar de prazer e alegria (sentimentos que passam a ser vistos como superficiais) tratando-a como mundo de dificuldades. O mundo, as coisas e as relações passam a ser problema, mais do que solução.


Recebam um abraço de coração, Aureo Augusto.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

VANDA (que não é Vanda) E A MUDANÇA DO CLIMA

Vanda não se chama Vanda de batismo. Seu nome é Evani... Quando era pequena seu pai chamou-a Vanda e pegou. Isso é coisa comum. Dentro da minha família eu sempre fui Gusto, meu irmão Carlos Aníbal, ficou Nick (porque Milinha – que era Palmira Emília – assim dispôs), a mais velha, Maria José, sempre foi Marizé; só Dionísio ficou Dionísio e nada mais.
No Vale do Capão tem alguns casos bem interessantes. Um dia atendi Célia, ela me deu o nome dela como Célia, porque é Célia que todos assim a chamam. Algum tempo depois a atendi no posto e aqui, nas regiões da oficialidade governamental, as coisas são com carteira de identidade, a identidade é a da carteira, então Célia ficou Sebastiana. Temos outra Sebastiana que é Neuza. Não sei bem o que Célia e Neuza têm a ver com Sebastiana, mas, como se diz vox populi vox Dei. Não discuto.
Mas dizia de Vanda. Não era de nomes que queria tratar e sim do que me disse no almoço. Ela faz a comida deliciosa que como todos os dias e depois rimos um do outro na hora da refeição (e rimos também com e dos hóspedes e vice-versa). Comentava que quando era criança e adolescente trabalhava muito na casa dos pais. Ela gostava de determinados dias quando tinha que lavar a roupa e botava a bacia na cabeça com todos os panos da casa e caminhava quilômetros até a beira do rio onde lavava tudo. Era bom, me disse, porque tinha muita água. Hoje o rio está seco.

Era bom, porque tinha muita água. Hoje o rio está seco.
Estas palavras são, para mim, atordoantes. Assustadoras mesmo. Estou acostumado a ver na televisão os documentários sobre as modificações que a Terra vem passando no passo lento do tempo. Milhares de anos e o gelo retirou-se vagarosamente do Hemisfério Norte, liberando um mundo que estava mermando sob o peso cristalino do frio. Milhares, milhões – são números geológicos. Gostava de me refestelar no conforto do tempo contado em milhões ou bilhões. Não me dá a mínima segurança saber que um caudaloso rio há uma ou duas dezenas de anos atrás hoje é um caminho onde minguam o pasto e os animais e nas margens do qual as pessoas ruminam lembranças da infância.

Moro no Vale do Capão há 30 anos e vejo que o mundo mudou e, pelo menos climaticamente não foi para melhor. Neste momento a seca assola a Bahia e o Nordeste. A pior dos últimos 60 anos. Depois teremos um período mais ameno, mas menos chuvoso do que o ameno anterior. Aqui no Capão o tempo está claro, claro demais, pois que o sol faz as folhas minguarem antes do seu tempo. Claro porque as nuvens não beijam o solo com suas gotas de frescor. Tão claro como pode ser triste o pensamento de que o mundo, ou pelo menos este mundo está se desertificando. Muitos córregos que antes eram perenes, hoje jazem desaparecidos no matorral. E com eles somem certos bichinhos que fizeram ali uma casa úmida e agradável. E olhe que o Vale do Capão é um oásis por assim dizer nessa região. Temo que o oásis metafórico se torne geográfico rápido demais.

Gosto de limo e de musgo. Agrada-me o frescor da água corrente e dos recantos úmidos deste pedaço do paraíso. Temo que o mundo esteja mudando não pelos milhões e sim pelas dezenas e até pelas unidades de tempo. Às vezes sinto que as coisas de alguma forma dirão a todos nós suas verdades e que nós escutaremos, já em outros momentos fico apreensivo.


Recebam um beijo úmido no coração, Aureo Augusto.

sábado, 9 de novembro de 2013

VI ENCONTRO DE ESF (2)

Neste momento, manhã cedo, estou vendo um grupo de pessoas praticando yoga no pátio da pousada onde ocorre o VI Encontro de Profissionais de ESF no Vale do Capão. Esta é uma das atividades que abençoam aqueles que aqui compareceram (mais de 200 pessoas).

Começou com uma fala de Roberto Crema, que deu o tom ao evento. Ele conseguiu compor um substrato intangível onde todas as subsequentes atividades encontraram onde apoiar-se. Sua fala nos conduziu por trilhas psíquicas que nos permitiram estar em condições de absorver o caráter multi do evento. Diversas nações do pensar e do sentir estão convivendo colaborativamente durante estes dias.
O tema geral foi Saúde do Homem. E as falas foram brilhantes. Comoveram e elucidaram. Analisamos e vivenciamos.

Eu, particularmente, fiquei bastante tocado com as falas sobre as dificuldades de soluções, os avanços no cuidado do homem. Somos resistentes entregar-nos ao fato de que não somos invulneráveis e preferimos com alguma frequência a morte ou a doença a reconhecer que doença não é coisa de mulher. Tomar conhecimento de que em todas as faixas etárias os homens morrem muito mais do que a mulher, pode nos fazer parar para pensar quanto a nossa vulnerabilidade.

Belíssimo ver os depoimentos relativos às experiências que estão sendo feitas em maternidades públicas em Salvador e adjacências (Rede Cegonha) com a participação de acompanhantes nos partos, chamando a atenção à participação dos maridos. E os estudos mostram que os homens que participam de partos passam a respeitar mais suas esposas e se tornam pais mais participativos e amorosos.
Uma grata surpresa foi a participação de 25 alunos do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde da UFBa. Uma turma que trouxe os ventos da juventude e do entusiasmo que se somou à impressionante disposição dos presentes a fazer valer a mudança.

Agora a tarde declina. Volto para casa cansado, depois de uma reunião com algumas pessoas da Fundação de Saúde, cujos olhos brilham. Esta reunião foi para preparar uma oficina a ser apresentada em um encontro no Rio Grande do Sul sobre práticas exitosas no SUS e 3 pessoas do posto, Wanessa (agente administrativa), Marlene (agente comunitária de saúde) e Natália (enfermeira) foram convidadas a fazer esta oficina tratando da nossa experiência. Para nós da unidade, para o Vale do Capão, para cidade de Palmeiras, isso é um prêmio aos esforços que empreendemos para superar as dificuldades de um lugar bem pequeno.

Recebemos durante o encontro a notícia de que o Instituto Sinapse com sede em Seabra firmou convênio com a Escola Baiana de Medicina para fazer um curso de Enfermagem Obstétrica aqui na Chapada, gestiona-se a Universidade Federal da Chapada Diamantina, entre outras notícias maravilhosas.
O mundo está dando voltas e isso é muito bom.


Um abraço feliz para todos de Aureo Augusto.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

VI ENCONTRO DE PROFISSIONAIS DE ESF NO VALE DO CAPÃO

Estamos todos mobilizados para a próxima atividade da nossa USF. Trata-se do VI ENCONTRO DE PROFISSIONAIS DE ESF NO VALE DO CAPÃO (dias 7, 8 e 9 de novembro/13). Uau! Chegamos ao sexto encontro. Tudo surgiu de uma necessidade nossa. Precisávamos saber mais sobre o nosso trabalho, como fazê-lo de forma mais adequada. Convidar especialistas só pra nós não dava, então Gleiton Ulhôa, o enfermeiro do posto à época teve a ideia de fazer um encontro com as equipes de saúde da família da região e assim poderíamos ter mais peso para a vinda de professores. A DIRES 27 apoiou na hora e a SESAB, através o DAB (Diretoria de Atenção Básica), também. A Escola de Formação Técnica em Saúde (EFTS) também marcou presença.

Agora estamos no sexto evento com aquela sensação de surpresa esperada. Este ano o evento será gigante, graças à combinação de um diretor da DIRES27 (Braulino Peixoto) que é um sujeito tremendamente ativo e do desejo dos órgãos gestores de apoiar a iniciativa (governo da Bahia, prefeitura municipal...). e, mais uma vez contaremos com a presença de Jorge Sola, secretário estadual da saúde, o que para nós, que moramos em um lugarejo de um lugar pequeno é algo a ser considerado. Na abertura teremos uma fala de Roberto Crema, reitor da Universidade da Paz, o que é algo extraordinário para nós; sua fala será sobre o cuidado sustentável do homem e da humanidade. Mas não fica por aí. Teremos a presença de nomes e temas de grande interesse, tais como, Anamélia Franco que vai nos desafiar (como sempre) com sua fala sobre a transformação da saúde a partir da graduação. Ademais vamos debater a saúde do homem no SUS, a participação dele na Rede Cegonha, diarreia na criança, estudaremos o hemograma, dermatologia, terapia comunitária etc.

Estamos todos vibrando intensamente no aguardo deste momento tão especial.

Aureo Augusto.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ALHO PROTEGE CONTRA PARTO PREMATURO

Lendo a revista da PROTESTE (www.proteste.org.br), uma associação e consumidores da qual faço parte, fui alertado para um assunto que me chamou a atenção e isso me levou a ler um trabalho (Intakes of Garlic and Dried Fruits Are Associated with Lower Risk of Spontaneous Preterm Delivery) publicado em julho/13 no The Journal of Nutrition.

Desde há muito que se sabe que infecções, principalmente urinárias, durante a gestação podem aumentar o risco de parto prematuro e é este um dos motivos pelos quais o Ministério da Saúde quer que as gestantes façam o exame de urina pelo menos duas vezes durante a gestação. Também sabemos que o alho, a cebola, cebolinha nos protegem contra infecções. Porém o legal deste estudo é juntar as duas coisas. Fizeram um acompanhamento de quase 20 mil mulheres e notaram que aquelas que consumiam os temperos citados e também frutas secas (passas, damasco, ameixa etc.) que contêm substâncias que atacam os micro-organismos causadores de infecções, tiveram bem menos partos antes da hora.
Mais um motivo para que abandonemos de vez os temperos artificiais.
Aliás é também outro motivo para se filiar à PROTESTE.

Recebam um abração de Aureo Augusto.


quarta-feira, 23 de outubro de 2013

MORONETA

Participei na semana passada do I Simpósio de Fitoterapia na Bahia, promovido pela Escola de Farmácia da UFBa com apoio da SESAB. Aprendi coisa pra dar de pau. Foi muito legal. Dizer tudo que vi e aprendi é muito para um bloguezinho, mas bem que eu gostaria.

Teve uma fala que me causou grande impressão. Com o título, Etnofarmacologia, Eficácia e Segurança, proferida por Eliana Rodrigues. A palestrante foi ótima em seu jeito de trazer a nós sua experiência, o que por si já conta bastante. Além disso, fez suas pesquisas entre diversas populações indígenas na Amazônia, Maranhão e oeste do Brasil, grupos humanos com pouco contato com a civilização ocidental e que apenas dispõe como terapêutica seus próprios recursos recolhidos na mata, com observações bem interessantes, que me puseram pra pensar.
Comentou que para o pesquisador dono de uma postura científica existem algumas dificuldades no recolher material entre os índios. Um deles é que a relação com os produtos vegetais (e outros) é muito contextual, podendo depender de tempo, local, etnia etc. de modo que uma dada planta pode ter seu uso alterado de um povo para outro ou dentro do mesmo povo na dependência da miscigenação de uma pessoa com outra tribo. Vai daí que determinada planta pode ser usada para dor de barriga em um lugar e para problemas urinários em outro. Qual destes usos é o correto? O que é correto (refiro-me ao significado da palavra)?

Ou seja, a subjetividade pode ter um papel maior do que o desejado em uma pesquisa científica. Isso me pareceu bem interessante. Facilmente descartaríamos uma das informações ou as duas por não corresponderem ao ideal da pesquisa, mas isso pode ser um erro uma vez que a realidade não é apenas o que ali está e sim, também, aquilo que significa para nós. Não proponho um dilema de Wigner no que respeita à realidade, não proponho um solipsismo. Porém anoto que a realidade não é independente da pessoa, conquanto não seja fruto apenas da pessoa.

A fala me fez lembrar Etienne Samain, em seu livro Moroneta Kamaiurá. Ali o antropólogo explica que moroneta é uma palavra que poderia ser traduzida como relato. Mas este relato pode ser uma história, um desenho etc. e a mensagem a ser passada depende do lugar onde se apresenta. Assim a história é diferente se for contada na beira do rio ou dentro da oca, e, a moroneta é carregada do fato local (no tempo e no espaço) e refletem as crenças, os modelos de pensamento etc. da comunidade. Sendo assim não podemos dizer que moroneta é uma mera narrativa (escrita, cantada ou pictórica) de um fato. Pensei comigo que quando Eliana recebia informações sobre uma determinada planta, não recebia a narração de um uso e sim uma moroneta da planta. Gostei disso e não me importa muito se é certo ou útil esta interpretação.


Recebam um abraço de moroneta de Aureo Augusto.

domingo, 6 de outubro de 2013

ORGANICIDADE E POESIA

Disse Anaxágoras filósofo de Clazomenes (sec. V a.C.):
Temos ante os olhos um pedaço de pão. Parece pão e nada mais. Se o comemos, se transforma em pele, carne, ossos, cabelos etc. A matéria mudou de uma coisa a outra? Isso não é possível. Há, pois, que supor que no pão existe já um sem número de matérias de que se compõe o corpo humano. Seu pequeníssimo tamanho nos impede de distingui-las, e só as reconhecemos por seus efeitos. Agora, quem mobiliza estas partículas e as faz organizar-se de uma ou de outra maneira?

Anaxágoras, embora tenha vivido há mais de 25 séculos atrás teve uma mente bastante lúcida. A frase dele acima, que suscita mais perguntas do que entrega respostas, mostra a agudez com que questionava os fenômenos naturais.
Nos dois séculos anteriores a sociedade grega passou por uma transformação que iria influir todo o modo de pensar e de ser da humanidade. É agradável pensar que um país de pequenas dimensões, pouco fértil, pobre em recursos materiais e com uma população diminuta veio a trazer um extraordinário contributo para a formação da sociedade humana e, registro, não apenas à fração ocidental desta humanidade. Os gregos foram formados por um amálgama de raças que em ondas sucessivas ocuparam o sul da península dos Bálcãs. Pode ser que isso tenha sido decisivo para sua competência.

A diversidade da formação dos gregos foi algo essencial para o seu sucesso em determinado momento e talvez o orgulho e a vaidade derivados deste sucesso tenham contribuído para sua decadência posterior. Aqui, onde moro, no Vale do Capão, temos uma comunidade aonde aqueles que chegaram aqui na década de oitenta do século passado logo se misturaram com os locais, que, por algum atavismo raro, mostrou-se muito abertos para assimilar propostas vindas de fora. A sociedade culturalmente mestiça que se formou deu origem a um meio psíquico que tornou o vale, um lugar bastante interessante, fervilhante, promissor, desafiante, atrativo e outros adjetivos.

Por isso vale estar neste Vale e vale pensar no velho Anaxágoras. O que será que faz com que pão vire carne e osso? É maravilhoso que esta comunidade de elementos os mais variados que é o nosso corpo seja também um organismo, ou seja, um que capaz de autonomia, de auto-organização, de reconstrução quando ferido, enfim, de poiesis.

Poiesis é uma palavra grega que significa criação. Dela vem o termo poesia. A poesia da vida na terra é construída com os corpos dos diversos seres que nela habitamos, inclusive nós, claro. Poiesis é uma característica do mundo vivo. Os organismos têm a capacidade de criar a si mesmos, então nós somos a poesia de nós mesmos.

O que você acha de pensar em si como uma poesia? Pense em si como uma poesia que se desloca no espaço e no tempo, parte de um grande livro de poemas, que merece de nós mercê, atenção, cuidado, amor prático. E é isso que somos com cada folha de grama, caracol ou abelha, as poesias se tocam e maculam o nada, ousando existir.


Recebam um beijo poético em seus corações de Aureo Augusto.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

PRESCRIÇÃO SEM/COM AUSCULTA

Trabalhar em um posto de saúde da Estratégia de Saúde da Família é uma fonte perene de alegrias, preocupações, tristezas, e mais que tudo de lições de vida. Penso que o ideal para um profissional da saúde é morar no mesmo lugar em que atende, pois isso gera uma espécie de conivência com os moradores/vizinhos de modo que com o tempo a interação é tão grande que nos sentimos sempre em casa, assim como as pessoas que nos procuram para consultas.

Uma das premissas da estratégia é que nós profissionais devemos estar próximos dos nossos clientes, e esta proximidade implica em respeito mútuo. É verdade que temos determinados conhecimentos que as pessoas que nos procuram podem não ter. Mas elas conhecem seus corpos melhor que nós. Sabem bem mais de suas próprias mazelas e do sofrimento que elas lhes causam. Estão dentro do problema. Assim precisamos aprender a auscultar, mas não apenas com o estetoscópio e sim com a amizade, no sentido proposto por Aristóteles, ou seja, filia, que é algo que não julga, conquanto constate e aconselhe se necessário. Trata-se de uma abertura que nem sempre conseguimos, mas que deve ser perseguida.
Vivemos, eu e uma senhora idosa aqui do Vale do Capão, uma experiência ilustrativa. Para mim mais um aprendizado:
Esta senhora carecia de uma cirurgia para corrigir uma hérnia. Por apresentar um quadro de hipertensão tivemos que ser bem criteriosos no acompanhamento. Ela seguiu com rigor as recomendações alimentares e medicamentosas. Depois que sua pressão estava dentro dos níveis normais havia já um bom tempo, ela procurou o cirurgião (que também é clínico geral) em uma cidade próxima. Este, quase não tinha conversado com ela e irritou-se com a medicação que usava para pressão. Ralhou com ela e modificou a orientação. Fez então a cirurgia por aqueles dias, embora a pressão dela começasse a ficar alterada. Depois da cirurgia ela continuou com a medicação indicada pelo médico. Mas a pressão disparou. Procurou-o, pagando todas as consultas, registre-se, queixando-se da hipertensão, mas ele não lhe deu assunto quando disse que com as medicações anteriores estava controlada. Na verdade interrompeu sua fala e recusou-se a discutir o assunto. Acrescentou mais uma medicação, sem resultado. Então, a senhora voltou a me procurar.

Conversamos longamente sobre como se sentia. Segundo ela, no dia de tirar os pontos o cirurgião fora bastante rude na manipulação de modo que ficara doendo. Examinei, propus um procedimento e ela pediu para retornar às medicações anteriores que lhe “faziam bem”. Na conversa, juntos chegamos à conclusão de que esta seria a melhor conduta. Cúmplices, saímos do atendimento como dois bandidos prontos a fazer um assalto do bem.
A pressão dela já normalizou.

Em alguns momentos fico triste com a minha incompetência de manter um comportamento adequado durante as consultas. Muitas vezes não escuto como deveria, ou estou preocupado com o povo lá fora esperando, o com a fome e cansaço no fim do expediente etc. Outras vezes consigo auscultar a alma das pessoas sem precisar de um estetoscópio. Nestes momentos me dá a sensação de que sou médico e isso me agrada. Afinal o diploma não garante que eu seja o que nele está escrito, quem garante é a minha atitude.


Recebam um abraço médico, de Aureo Augusto.

sábado, 14 de setembro de 2013

A MALDIÇÃO DA CIGANA

Estou fazendo um trabalho no posto que me traz grande alegria. Trata-se de um grupo de senhoras com mais de 60 anos, para atividade física e roda de conversa toda quarta-feira às 7h. Começou recentemente. Primeiro fazemos meia hora de ginástica psicofísica; em seguida conversamos sobre vários assuntos ou fazemos neuróbica. Nas conversas manifestamos nossas preocupações comuns e nos ajudamos com relatos de experiências instrutivas.

Também acontece que relembrem histórias pitorescas, como a que prometi a elas postar nesse blog e mostra-las no próximo encontro. A história parece saída de um conto antigo, mas Dalva, Petrina, Luzia, Zélia, Nadir, Beli, Demildes, Araci e Geni foram taxativas quanto à veracidade da notícia. Gessy não sabia, porque ela não morava aqui quando aconteceu o fato só vindo a casar-se com Seu Nísio, nativo daqui, muito depois. Mas vamos ao fato:
Contam que o Vale do Capão bem antigamente produzia abacate normalmente. Como sempre o povo ia à feira em Lençóis ou Palmeiras para vender os produtos daqui (banana, café, açafrão, jaca, laranja, manga, pitanga, pêssego, uva, marmelo, aipim, jabuticaba, goiaba, pitanga, galinha, abacate – nêspera não, essa surgiu depois e o povo nomeiam-na ameixa). Certa feita a era época de abacate e a turma daqui levou a fruta para Lençóis. Ali uma cigana pediu alguns para comer e ninguém deu. Então ela lançou uma maldição, bradando que amaldiçoado seria aquele lugar, pois não mais produziria a fruta. Daí, por muito tempo os abacateiros negaram seu produto à gente daqui.

Agora temos abacates novamente, embora da casa de Derinho para o sul os abacateiros não crescem bem e não produzem. Mas a produção no restante do vale é boa e os frutos são excelentes. Dalva disse que a cigana deve ter morrido já que agora produz. Todas concordaram.


Recebam um beijo sabor reminiscências de Aureo Augusto.