terça-feira, 30 de junho de 2009
ESSA ONDA DE BLOG
Um abração pra todos vocês.
domingo, 28 de junho de 2009
MEU SÃO JOÃO (reflexões sobre a mudança).
No ano passado o clima esteve bem frio. Lembro que fui chamado a um parto a noite e a temperatura era de 8oC. Como me vieram buscar de moto, cheguei na casa com o joelho enregelado que mal conseguia mover. A primeira coisa que disse a mulher foi que isso não era dia de parir. As contrações ainda estavam fracas e ela riu. Rimos todos mais e mais tarde porque o parto foi legal. Este ano não fez quase frio e só garoou fino alguma das noites. Para os turistas foi bom porque passearam a mais não poder. Um deles queixou-se no posto porque machucou o joelho e não poderia mais caminhar. Disse-lhe que aqui, para ver beleza basta se sentar na porta e contemplar a serra. Ele concordou e desistiu de ir embora. O pessoal muitas vezes vem com uma idéia pronta de que tem que ver um certo número de coisas senão não veio. Cumpre-se então o cronograma, como se faz no dia a dia do trabalho. Muito simpática esta forma de levar consigo todos os dias com o jeito de todos os dias para os dias de um passeio. Uma mulher me disse certa vez que nossos problemas não são geográficos e sim históricos. Genial. Levamos toda a nossa história conosco quando mudamos de lugar!
Aqui perto se hospedou uma família. Estão no Vale, sem televisão (creio) e a mãe leva todo o dia gritando com os filhos como se estivessem a quilômetros de distância (algumas vezes a zoeira é tal que é como estivesse a centímetros do meu quarto). O pai aparentemente está sempre fora e presente. Fazem um sobre-humano esforço para repetir idêntico o que vivem em casa. Sinto-me enternecido com a nossa capacidade de manter a dor. Nós humanos somos seres inacreditáveis. Quantas vezes me martirizam pensamentos ‘nada a ver’ estando no meio do paraíso? Uma viagem ou um passeio é momento mágico de mudança. É por isso que Tolkien põe na boca de seu personagem Bilbo que os caminhos que começam na porta de casa nunca retornam. É que quando voltamos já não somos os mesmos (e as coisas que deixamos tampouco são as mesmas). Quino em uma de suas tiras, Mafalda, mostra o pai da garota chegando de viagem e dizendo que ele já não é o mesmo. A filha, com seu cru realismo ingênuo, então nota que debaixo da porta estão muitas contas a pagar em nome do pai anterior à viagem. Esta piada, com sua sutil referência ao hábito e à burocracia, me leva a Marco A. Nogueira, in “As Possibilidades Políticas da Política”, em seu comentário de que a burocracia, conquanto tenha que ser considerada em qualquer tipo de mudança, é, ela mesma, um entrave para os câmbios. Impede que o novo aflore, porque carece de sistemática estabelecida. Em nossas vidas nós burocratizamos relações e atitudes. Isso não é em si ruim, na medida em que agimos para os demais da maneira como eles esperam e este agir não foi elaborado apenas pelos demais e sim também por nós. Sendo eu médico e trabalhando no PSF do Vale do Capão, espera-se que eu esteja lá em determinados horários para atender no ambulatório e, além disso, promovendo a saúde por outros meios. Não há nada de mal em cumprir o que os demais esperam, havendo pertinência. No entanto, nas relações, tantas vezes habituados a carranca, carrancudos permanecemos. Sendo o grito o hábito, perdemos a capacidade da palavra doce. Estabelecemos comportamentos que as vezes nem são algo que desejemos, queremos ou julgamos úteis. Mas seguimos procedendo como se tais comportamentos fossem únicos, naturais, como se fossem nós mesmos.
Mas quando viajamos temos a oportunidade de confrontar nossa história com geografias outras que nos remetem com mais força a possibilidade de re-visitar condutas e torna-las mais fecundas. Toda viagem é uma oportunidade e tomemos aqui viagem lato sensu, como fazíamos os jovens da década de 1970. Uma doença, um novo emprego, encontrar uma pessoa desconhecida ou um velho amigo que há muito desaparecera... Tudo viagem e tudo oportunidade. Nunca uma viagem nos restitui ao local de partida incólumes, nunca. Podemos estar mais ou menos modificados, para melhor ou não. Os resultados quanto a qualidade ou a intensidade dependem em grande medida de uma palavrinha mágica: Vontade.
Inté a próxima.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
MEDICINA NO COTIDIANO
A saúde tem sido considerada como o bem mais precioso que temos. Mesmo assim nem sempre damos a devida atenção a ela. Uma das razões disso é que o nosso organismo é autopoiético, isto é, ele tem a capacidade de regenerar-se. Se uma máquina, como um automóvel ou um cortador de grama apresenta um grave problema, o mecânico se vê na contingência de trocar alguma peça. Já o nosso corpo, raramente precisa trocar peças, por si só resolve o problema. Ele se constrói na medida em que crescemos, e se regenera quando nos ferimos ou adoecemos. Freqüentemente isso acontece sem que percebamos. Por não se dar conta do custo para o organismo deste contínuo processo, podemos ter a sensação de que tudo será permitido na medida em que cremos que tudo é magicamente solucionável. Isso sem considerar a negligência com que tratamos a nós mesmos devido à necessidade de sobrevivência ou de viver decentemente em um mundo cheio de dificuldades. A partir de hoje é minha intenção conversar com você sobre saúde em sua mais ampla acepção. Quero que tratemos das coisas que podem melhorar ou complicar a nossa saúde. Tudo!
Medicina é o cuidado com a saúde, tanto pessoal quanto grupal. Praticamo-la quando comemos, quando vamos ao médico, quando caminhamos, quando trabalhamos e também quando nos damos o merecido repouso. Quando agimos de maneira ética ou quando dedicamos uma fração do nosso tempo para melhorar a vida dos demais, seja na profissão, votando nas eleições, ou trabalhando pelo bem comum através doação desinteressada, estamos contribuindo para a nossa própria saúde. O nosso bem estar individual jamais interessa apenas a nós mesmos. Da mesma forma, o bem estar dos demais seres influi na saúde individual de cada um de nós, pois na vida o que consideramos individualidades está tão profundamente intrincado com o restante que podemos em certa medida questionar este conceito. Cuidar da saúde é, pois, cuidar de si e cuidar do outro e este ‘outro’ refere-se também ao meio-ambiente. Daí torna-se essencial reconhecer o sentido de integração que permeia as existências nesta Terra.
Mas não apenas isso. Saúde é uma coisa tão ampla que para que a alcancemos devemos estar atentos a fatores que não damos a devida atenção em nossa vida cotidiana. Quando foi a última vez que você riu gostosamente? Ou se sentiu tocado no coração por uma cena comovente? Há quanto tempo um pôr-do-sol ou o canto dos pássaros no amanhecer lhe atraíram a atenção? Você tem encontrado amigos para conversar sobre filosofia de vida ou sobre banalidades? Saúde inclui estas coisas. Por isso quero conversar sobre uma medicina da vida, na vida, no dia a dia, nas coisas que conformam o nosso existir. Como a conversa vai tratar de coisas do dia-a-dia, não vou me furtar de falar das coisas do lugar onde moro, o Vale do Capão, bem aqui, no centro da Bahia, a mil metros de altitude, com uma população muito hospitaleira, como de resto o é toda esta gente da nossa terra. Vai daí que de quando em vez comentarei sobre gente de cá, como álibi, para tratar de assuntos que a todos interessam. A partir de hoje aguardo você nesse lugar para um papo sobre tudo o que nos tira e nos põe sadios.
AS SEXTAS FEIRAS SERÃO DEDICADAS AOS ASSUNTOS MAIS VINCULADOS AO TEMA SAÚDE, NO SENTIDO EXPRESSO PELO TEXTO ACIMA.
Um abração para todos vocês.
terça-feira, 23 de junho de 2009
SOU BLOGUEIRO!
Agora estou aqui conversando contigo por este meio (mail) e quero dizer que é uma oportunidade que tenho de lançar ao universo a enorme quantidade de coisas que me acontecem, mesmo quando estou parado. Apesar do quanto sou parado. Conversaremos sobre medicina, claro, filosofia, Vale o Capão, vida, comida, o pé de planta. Qualquer coisa. Estou entusiasmado!
Hoje o Vale do Capão está aceso de risos e conversas. Muita gente chegou para festejar aqui o São João. Carros, risos, cabelos, poeira, sol e frio, perguntas, olhos procurando, gente, dentes, expectativas. O sol lá fora brilha como se fosse tempo de sol, e aqui dentro o frio começa a alisar a pele. Logo virá a noite que será brilhante de sanfona e quentão, que é uma bebida com cachaça e gengibre; uma vez toquei na língua e aquele toque foi o suficiente pra me dizer que era o máximo aonde poderia ir com ela. Mas o povo gosta e exagera – um caiu da moto e machucou a cara de verdade. Gosto da festa, do forró, de dançar. Gosto também de ver os tocadores entrando em estado alterado de consciência só no repisar do som e o povo repetindo o movimento até uma espécie de êxtase. As consciências individuais ficam meio adormecidas e todos são engolfados em todos. Um peixe grande feito de cardume. Penso em peixe e penso o quão distante estamos do mar. E houve tempo em que o Vale do Capão foi debaixo do mar e me pergunto até que ponto isso marcou tanto o lugar a ponto de os cupins darem a suas casas um jeito de coral redondo. Vamos pensar que você chegou aqui agora. Seja bem vindo! Mergulhe na luz baça entre doce e morna no meio do frio. O Vale do Capão vai e vem no barulho da capoeira que agora está na praça. Seja bem vindo!
Além disso vou estar aqui, quase todo dia comentando coisas. Isso vai ser muito divertido.
Em 22/6/09.
domingo, 21 de junho de 2009
O LIXO E OS MORTOS
Vinha na estrada e passei por um pequeno povoado entre Itaberaba e Ipirá notando que o cemitério cercado por um muro ficava ao lado do monturo do lixo da comunidade. Não pude deixar de pensar que aquele grupo humano estava perdendo a noção do valor da memória. Claro que posso estar equivocado. Mas, não custa pensar um pouco. Há algum tempo um grupo de visitantes aqui no Capão acampou perto do cemitério local e durante a farra que fizeram a noite resolveram usar as cruzes das sepulturas para a fogueira. Isso provocou forte revolta. Deixando de lado a discussão (útil) sobre a conduta sumamente desrespeitosa pelos valores locais, também sobre a completa incoerência entre o discurso daquelas pessoas que defendia a diversidade e a cultura popular e a absurda agressão (uma das pessoas eu conheci e tinha o discurso e o absurdo), dizia, deixando de lado estas coisas que merecem ser comentadas, mas não aqui agora, observo que jamais no Vale do Capão veríamos lixo associado a cemitério – assim espero. Na assembléia da associação temos tratado de refazer a cruz do dito local, construir um muro etc. não está na natureza da cultura local deixar de lado a memória dos que se foram, conquanto esteja a população passando por mudanças em uma escala que nunca experimentou. Costumo dizer que quando aqui cheguei encontrei um mundo medieval e que logo saltou dali para o século XX, sem escalas, o que não é fácil. Muito se perde das memórias inda mais porque os idosos se estão esvaindo, vão-se evadindo do nosso olhar e tato, um a um, quase imperceptivelmente, apesar da dor e da saudade. Porém ainda percebo que as crianças querem saber das histórias e isso é bom.
Será que aquela comunidade, a beira da estrada, associa o lixo à morte, ou à memória? Foucault nos diz (in Microfísica do Poder) que em certos períodos do final da Idade Média os cadáveres eram lançados ali, do lado das casas, junto com outros detritos. Foucault, pude constatar na leitura de algumas coisas dele, ‘viaja legal’, mas pode ser que isto seja verdade, ou pelo menos verdade em parte, já que o filósofo era dado, assim me parece, a generalizar mais do que devia, o que não é tão grave, a menos que queiramos querer que as idéias sejam a mola mestra da sociedade e, mais ainda, que nossas idéias sejam o leme. Gosto de quando Paul Johnson diz que “intelectual aquele que valoriza mais as idéias do que as pessoas”, o que é, para dizer o mínimo, triste. O assunto dá panos pra mangas, mas não é para o momento. Sigo com o cemitério e o lixo:
A sociedade do final da Idade Média e princípio da Era Moderna passava por uma crise de valores. Isso permitiu em certa medida o Renascimento. A peste negra mostrara que muito daquilo que se considerava como absoluto desígnio divino, como o poder da Igreja e a ordem social feudal, não era tão absoluto como o esperado. Outrossim, a fraqueza do sistema permitiu o livre pensar que desencadeou a revolução científica, na própria esteira do questionamento dos resultados de tantos anos de um pensamento atrelado aos princípios religiosos. Foi um período duro, onde, assinala Morris Bermann (in El Reencatamiento del Mundo) o índice de suicídios elevou-se sobremaneira devido à decepção gerada pela falência do projeto de sociedade cristã nos moldes medievais. Hoje, estamos de novo as voltas com um alto índice de suicídio e assinala-se que, em termos humanos, falimos, apesar de todo o progresso técnico/científico. Ou, pelo menos, estamos a um passo da débâcle. O passado nos significa e é por isso que os cemitérios sempre foram locais sagrados. Quando vi aquele povoado afogando seus mortos no próprio lixo tudo isso me veio, de chofre, à mente.
Vivemos diariamente a tensão entre o significante passado e o desconstrutor presente. A cada momento, inda mais nesses tempos atuais, somos confrontados com desafios de crescimento, ou pelo menos de mudança em nossos conceitos e atitudes. Aquilo que nos ancora conceitualmente vem sofrendo constantes corrosões que nos levam a novas abordagens conceituais em busca de garantir um relacionamento mais ou menos sadio com o mundo. Alguns até se escondem atrás da não mudança, apegando-se aos costumes que sempre tiveram, como muitos aposentados ao dominó e ao pijama nos fins de tarde. Mas todos somos atropelados pelo acúmulo desmesurado e sem planejamento de câmbios tecnológicos, econômicos, sociais etc. Dentro disso, os conhecimentos pretéritos nem sempre são suficientes para destrinchar a verdade, ou a opinião diretiva, com respeito aos fatos e as coisas. A memória pode deixar de ser farol e passar a ser lixo. O interessante é que em momentos de dúvida a memória pode ser muito útil. Afinal, os dilemas éticos atuais não são completamente diferentes daqueles de antigamente.
Hoje como ontem somos chamados a decidir se queremos aderir ou resistir à desonestidade, aceitar uma relação criativa com os demais seres, cooperar ou competir, dominar ou colaborar. A longa caminhada daqueles que jazem nos cemitérios, mas cujas histórias muitas vezes foram preservadas nas histórias que nos contam os mais velhos ou nas lendas registradas nos livros ou conservadas na oralidade pode nos ser útil, conquanto não sejam tudo – não são mais tudo, como eram aqui no Vale do Capão, quando o isolamento propiciava a formação de referenciais apenas locais. São úteis também porque vivemos um tempo onde somos chamados a uma ação verdadeiramente política. Embora a forte decepção com os poderes constituídos seja uma norma, apesar de que há disseminada uma sensação de que as instituições oficiais são mais falácia que consistência, que os discursos dos poderosos com excesso de freqüência são mais fachada que profundidade, apesar disso, o momento pede discussão, conversa, diálogo, debate. Evidentemente não aquela conversa que não leva a nada, o papo de mesa de bar inconcluso, indeciso, inoperável e inoperante. Carecemos do diálogo político, o qual (para ser político mesmo) é direcionado para ações que nos façam, como pessoas, tomar a rédea do nosso destino como gente, como povo, como nação, como moradores de um planeta que corre risco. Sério risco.
Devemos retirar os nossos mortos do lixo. Confrontar-lhes os conceitos, apoiar-nos neles e nas suas verdades para elaborar novos horizontes.
Já nos disseram que este não é um país sério. Discordo claro, porém ocorre-me que quando perdemos a noção do que somos (e toda definição passa pela história) torna-se ainda mais difícil vir-a-ser. Sendo o nosso passado confundido com o lixo, estando os nossos mortos nadando no chorume do nosso vazio de ética, como poderemos construir um futuro onde nós mesmos e os que nos seguirão terão a garantia de um mundo justo? Justo no sentido de sustentável, de agradável, de significativo, no sentido de pertencimento – onde todos se sintam pertencentes a, pertinentes com, e, responsáveis por. Retiremos do lixo os nossos mortos.
Em Salvador, 19/6/09.