domingo, 28 de junho de 2009

MEU SÃO JOÃO (reflexões sobre a mudança).

Amo o S. João no Vale do Capão. É demais! O que mais gosto é a fogueira de ramo. Para os poucos que não sabem, trata-se de uma fogueira comum com um ramo alto fincado em seu centro. Lá em cima, nos galhos são colocados presentes: laranjas, tangerinas, pacotes de comida e, uma coisa que é considerada a principal que pode ser um coco, ou uma abóbora. Também podem conter algumas gozações, tipo caixas de fósforo com toda a pinta de que tem dinheiro dentro, mas não tem nada. Antigamente eram muitas as fogueiras de ramo, porém quando chegou a luz elétrica e os presentes se embaraçaram com os fios na rua (que é como chamamos o aglomerado de casas mais central) por lá só tem uma única fogueira, idéia de Joaquim, um garimpeiro pelo qual eu tinha muito carinho e que recentemente faleceu; ele considerou que o povo merecia pelo menos uma fogueira de ramo para se divertir. Parecia que este ano não teria a tradicional fogueira por causa da sua morte, mas decidiu-se que em sua homenagem continuará tendo. Este ano, segundo contaram teve muita gente, muitíssima gente; uma coisa de louco. Porém tudo na santa paz. Tive que atender a alguns casos banais, coisas bobas, pois até acidente foi pouco, e, apesar do quentão, não aconteceram brigas. Infelizmente não pude comparecer por estar cuidando de gente doente (a doença não tinha nada a ver com as festas, mas me fez ficar cuidando). A festa toda é no dia de véspera, como todos sabem e Sunna, filha que estava conosco e nos alegrava por estes dias, chegou as 5 h do dia seguinte, indicativo de que a coisa era boa. No dia santo, a fogueira (com ramo e tudo) fica por conta de Seu Joãozinho e adjacências (Jaci, Zezéu, Natan, Patrícia, Nelice, essa turma). Embora bem próximo a minha casa, também não pude ir, por isso tudo o que tenho são notícias.
No ano passado o clima esteve bem frio. Lembro que fui chamado a um parto a noite e a temperatura era de 8oC. Como me vieram buscar de moto, cheguei na casa com o joelho enregelado que mal conseguia mover. A primeira coisa que disse a mulher foi que isso não era dia de parir. As contrações ainda estavam fracas e ela riu. Rimos todos mais e mais tarde porque o parto foi legal. Este ano não fez quase frio e só garoou fino alguma das noites. Para os turistas foi bom porque passearam a mais não poder. Um deles queixou-se no posto porque machucou o joelho e não poderia mais caminhar. Disse-lhe que aqui, para ver beleza basta se sentar na porta e contemplar a serra. Ele concordou e desistiu de ir embora. O pessoal muitas vezes vem com uma idéia pronta de que tem que ver um certo número de coisas senão não veio. Cumpre-se então o cronograma, como se faz no dia a dia do trabalho. Muito simpática esta forma de levar consigo todos os dias com o jeito de todos os dias para os dias de um passeio. Uma mulher me disse certa vez que nossos problemas não são geográficos e sim históricos. Genial. Levamos toda a nossa história conosco quando mudamos de lugar!
Aqui perto se hospedou uma família. Estão no Vale, sem televisão (creio) e a mãe leva todo o dia gritando com os filhos como se estivessem a quilômetros de distância (algumas vezes a zoeira é tal que é como estivesse a centímetros do meu quarto). O pai aparentemente está sempre fora e presente. Fazem um sobre-humano esforço para repetir idêntico o que vivem em casa. Sinto-me enternecido com a nossa capacidade de manter a dor. Nós humanos somos seres inacreditáveis. Quantas vezes me martirizam pensamentos ‘nada a ver’ estando no meio do paraíso? Uma viagem ou um passeio é momento mágico de mudança. É por isso que Tolkien põe na boca de seu personagem Bilbo que os caminhos que começam na porta de casa nunca retornam. É que quando voltamos já não somos os mesmos (e as coisas que deixamos tampouco são as mesmas). Quino em uma de suas tiras, Mafalda, mostra o pai da garota chegando de viagem e dizendo que ele já não é o mesmo. A filha, com seu cru realismo ingênuo, então nota que debaixo da porta estão muitas contas a pagar em nome do pai anterior à viagem. Esta piada, com sua sutil referência ao hábito e à burocracia, me leva a Marco A. Nogueira, in “As Possibilidades Políticas da Política”, em seu comentário de que a burocracia, conquanto tenha que ser considerada em qualquer tipo de mudança, é, ela mesma, um entrave para os câmbios. Impede que o novo aflore, porque carece de sistemática estabelecida. Em nossas vidas nós burocratizamos relações e atitudes. Isso não é em si ruim, na medida em que agimos para os demais da maneira como eles esperam e este agir não foi elaborado apenas pelos demais e sim também por nós. Sendo eu médico e trabalhando no PSF do Vale do Capão, espera-se que eu esteja lá em determinados horários para atender no ambulatório e, além disso, promovendo a saúde por outros meios. Não há nada de mal em cumprir o que os demais esperam, havendo pertinência. No entanto, nas relações, tantas vezes habituados a carranca, carrancudos permanecemos. Sendo o grito o hábito, perdemos a capacidade da palavra doce. Estabelecemos comportamentos que as vezes nem são algo que desejemos, queremos ou julgamos úteis. Mas seguimos procedendo como se tais comportamentos fossem únicos, naturais, como se fossem nós mesmos.
Mas quando viajamos temos a oportunidade de confrontar nossa história com geografias outras que nos remetem com mais força a possibilidade de re-visitar condutas e torna-las mais fecundas. Toda viagem é uma oportunidade e tomemos aqui viagem lato sensu, como fazíamos os jovens da década de 1970. Uma doença, um novo emprego, encontrar uma pessoa desconhecida ou um velho amigo que há muito desaparecera... Tudo viagem e tudo oportunidade. Nunca uma viagem nos restitui ao local de partida incólumes, nunca. Podemos estar mais ou menos modificados, para melhor ou não. Os resultados quanto a qualidade ou a intensidade dependem em grande medida de uma palavrinha mágica: Vontade.
Inté a próxima.

5 comentários:

  1. POxaaaaaaaaa... lendo seus textos fico cada dia com mais vontade de ir no capão. Caracois!

    Muito bom, adorei! Fico com mais contade ainda de escrever coisa no meu! rsrs!

    Abraços, Blogueiro!

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  2. Sandra Moreira S. Pituba29 de junho de 2009 às 08:05

    Querido Aureo, obrigada por esse blog que vai me dar a oportunidade de curtir mais o que vc escreve. Lendo sobre o São João fiquei com muita saudade daí do Capão e de Lothlorien.Vontade de curtir um dia o São João daí.Adoro essa festa, porque prá mim é a celebração da alegria da colheita, da fertilidade da terra, da abundância nos lares, tudo isso simbolizado pelo milho! Pena que esse ano não tivemos milho pq não choveu em São José e também por aqui no Recôncavo, não fez o friozinho gostoso que anima a fogueira e promove os abraços, nem veio a chuva prá espantar a quadrilha. É o aquecimento global né? Por isso esse ano resolvemos compartilhar a fogueira com o vizinho. Foi muito legal porque teve mais animação e menos fumaça/poluição! Beijão, Sandra

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  3. Muito bom saber desse blog. O Capão é um lugar maravilhoso que tem sido desvirtuado: as pessoas parecem esquecer que, ainda que a fé no sobrenatural seja grande, o natural existe, e exige cuidados. Além disso, existe também o cultural, e o povo de um lugar tão peculiar também tem suas peculiaridades. O Capão está muito bem servido com esse blog, que contém informações maduras sobre esse lugar deslumbrante e seu povo simples.
    Antoniel Figueiredo

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  4. Ainda garoto, conheci o grande Áureo, estudante, determinado, perseverante e altruísta. Alegro-me saber que continua com o mesmo perfil,com o mesmo sorriso, mesmo, após à especialização em medicina. Será que a virtude da grandiosíssima D.Ester incorporou-se no grande Aureo? Acredito que sim, pois,toda mulher virtuosa, tem a graça de um grande filho.
    Abraço,
    Carlihos

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  5. Queria ser o 101º visitante desse blog!!! Será que consegui? Adorei a fogueira, nunca tinha visto uma como essa.
    Abraços

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