domingo, 21 de junho de 2009

O LIXO E OS MORTOS

Vinha na estrada e passei por um pequeno povoado entre Itaberaba e Ipirá notando que o cemitério cercado por um muro ficava ao lado do monturo do lixo da comunidade. Não pude deixar de pensar que aquele grupo humano estava perdendo a noção do valor da memória. Claro que posso estar equivocado. Mas, não custa pensar um pouco. Há algum tempo um grupo de visitantes aqui no Capão acampou perto do cemitério local e durante a farra que fizeram a noite resolveram usar as cruzes das sepulturas para a fogueira. Isso provocou forte revolta. Deixando de lado a discussão (útil) sobre a conduta sumamente desrespeitosa pelos valores locais, também sobre a completa incoerência entre o discurso daquelas pessoas que defendia a diversidade e a cultura popular e a absurda agressão (uma das pessoas eu conheci e tinha o discurso e o absurdo), dizia, deixando de lado estas coisas que merecem ser comentadas, mas não aqui agora, observo que jamais no Vale do Capão veríamos lixo associado a cemitério – assim espero. Na assembléia da associação temos tratado de refazer a cruz do dito local, construir um muro etc. não está na natureza da cultura local deixar de lado a memória dos que se foram, conquanto esteja a população passando por mudanças em uma escala que nunca experimentou. Costumo dizer que quando aqui cheguei encontrei um mundo medieval e que logo saltou dali para o século XX, sem escalas, o que não é fácil. Muito se perde das memórias inda mais porque os idosos se estão esvaindo, vão-se evadindo do nosso olhar e tato, um a um, quase imperceptivelmente, apesar da dor e da saudade. Porém ainda percebo que as crianças querem saber das histórias e isso é bom.

Será que aquela comunidade, a beira da estrada, associa o lixo à morte, ou à memória? Foucault nos diz (in Microfísica do Poder) que em certos períodos do final da Idade Média os cadáveres eram lançados ali, do lado das casas, junto com outros detritos. Foucault, pude constatar na leitura de algumas coisas dele, ‘viaja legal’, mas pode ser que isto seja verdade, ou pelo menos verdade em parte, já que o filósofo era dado, assim me parece, a generalizar mais do que devia, o que não é tão grave, a menos que queiramos querer que as idéias sejam a mola mestra da sociedade e, mais ainda, que nossas idéias sejam o leme. Gosto de quando Paul Johnson diz que “intelectual aquele que valoriza mais as idéias do que as pessoas”, o que é, para dizer o mínimo, triste. O assunto dá panos pra mangas, mas não é para o momento. Sigo com o cemitério e o lixo:

A sociedade do final da Idade Média e princípio da Era Moderna passava por uma crise de valores. Isso permitiu em certa medida o Renascimento. A peste negra mostrara que muito daquilo que se considerava como absoluto desígnio divino, como o poder da Igreja e a ordem social feudal, não era tão absoluto como o esperado. Outrossim, a fraqueza do sistema permitiu o livre pensar que desencadeou a revolução científica, na própria esteira do questionamento dos resultados de tantos anos de um pensamento atrelado aos princípios religiosos. Foi um período duro, onde, assinala Morris Bermann (in El Reencatamiento del Mundo) o índice de suicídios elevou-se sobremaneira devido à decepção gerada pela falência do projeto de sociedade cristã nos moldes medievais. Hoje, estamos de novo as voltas com um alto índice de suicídio e assinala-se que, em termos humanos, falimos, apesar de todo o progresso técnico/científico. Ou, pelo menos, estamos a um passo da débâcle. O passado nos significa e é por isso que os cemitérios sempre foram locais sagrados. Quando vi aquele povoado afogando seus mortos no próprio lixo tudo isso me veio, de chofre, à mente.

Vivemos diariamente a tensão entre o significante passado e o desconstrutor presente. A cada momento, inda mais nesses tempos atuais, somos confrontados com desafios de crescimento, ou pelo menos de mudança em nossos conceitos e atitudes. Aquilo que nos ancora conceitualmente vem sofrendo constantes corrosões que nos levam a novas abordagens conceituais em busca de garantir um relacionamento mais ou menos sadio com o mundo. Alguns até se escondem atrás da não mudança, apegando-se aos costumes que sempre tiveram, como muitos aposentados ao dominó e ao pijama nos fins de tarde. Mas todos somos atropelados pelo acúmulo desmesurado e sem planejamento de câmbios tecnológicos, econômicos, sociais etc. Dentro disso, os conhecimentos pretéritos nem sempre são suficientes para destrinchar a verdade, ou a opinião diretiva, com respeito aos fatos e as coisas. A memória pode deixar de ser farol e passar a ser lixo. O interessante é que em momentos de dúvida a memória pode ser muito útil. Afinal, os dilemas éticos atuais não são completamente diferentes daqueles de antigamente.

Hoje como ontem somos chamados a decidir se queremos aderir ou resistir à desonestidade, aceitar uma relação criativa com os demais seres, cooperar ou competir, dominar ou colaborar. A longa caminhada daqueles que jazem nos cemitérios, mas cujas histórias muitas vezes foram preservadas nas histórias que nos contam os mais velhos ou nas lendas registradas nos livros ou conservadas na oralidade pode nos ser útil, conquanto não sejam tudo – não são mais tudo, como eram aqui no Vale do Capão, quando o isolamento propiciava a formação de referenciais apenas locais. São úteis também porque vivemos um tempo onde somos chamados a uma ação verdadeiramente política. Embora a forte decepção com os poderes constituídos seja uma norma, apesar de que há disseminada uma sensação de que as instituições oficiais são mais falácia que consistência, que os discursos dos poderosos com excesso de freqüência são mais fachada que profundidade, apesar disso, o momento pede discussão, conversa, diálogo, debate. Evidentemente não aquela conversa que não leva a nada, o papo de mesa de bar inconcluso, indeciso, inoperável e inoperante. Carecemos do diálogo político, o qual (para ser político mesmo) é direcionado para ações que nos façam, como pessoas, tomar a rédea do nosso destino como gente, como povo, como nação, como moradores de um planeta que corre risco. Sério risco.

Devemos retirar os nossos mortos do lixo. Confrontar-lhes os conceitos, apoiar-nos neles e nas suas verdades para elaborar novos horizontes.

Já nos disseram que este não é um país sério. Discordo claro, porém ocorre-me que quando perdemos a noção do que somos (e toda definição passa pela história) torna-se ainda mais difícil vir-a-ser. Sendo o nosso passado confundido com o lixo, estando os nossos mortos nadando no chorume do nosso vazio de ética, como poderemos construir um futuro onde nós mesmos e os que nos seguirão terão a garantia de um mundo justo? Justo no sentido de sustentável, de agradável, de significativo, no sentido de pertencimento – onde todos se sintam pertencentes a, pertinentes com, e, responsáveis por. Retiremos do lixo os nossos mortos.

Em Salvador, 19/6/09.

7 comentários:

  1. OLÁ. FICO FELIZ PELO SEU AVANÇO TECNOLÓGICO, DR. ÁUREO. PRINCIPALMENTE POR SABER QUE MAIS UMA PESSOA VAI USAR A INTERNET, ESSE MEIO DE COMUNICAÇÃO TÃO ÚTIL, PARA FINS POSITIVOS. JÁ QUE HOJE EM DIA MUITAS E MUITAS PESSOAS FAZEM O INVERSO.
    GOSTEI DE SEUS DOIS TEXTOS PUBLICADOS ATÉ AGORA, PRINCIPALMENTE O PRIMEIRO, QUE ME FEZ RELEMBRAR MINHA IDA AO CAPÃO EM 2001 COM A TURMA DE BIOLOGIA DA FACULDADE E COM A ENTÃO MINHA NAMORADA, HOJE MINHA ESPOSA. FOI TUDO MUITO BOM E OBRIGADO POR ME AJUDAR A RELEMBRAR ESSA "ÉPOCA" TÃO BOA.
    VOCÊ NÃO ME CONHECE. RECEBI VIA E-MAIL A SUGESTÃO DE VISITAR SEU BLOG E ASSIM O FAREI SEMPRE QUE TIVER OPORTUNIDADE.

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  2. Esse texto não merece um simples comentário e sim a reflexão de todos pela inversão de valores que o mundo "tecnologico" anda ditando.

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  3. Grande amigo, sempre quis conhecer um pouco mais sobre você que sempre foi um guru pra mim! Vejo aqui uma oportunidade de saber um pouco mais sobre oque esta acontecendo na sua vida e no querido vale do Capão.

    O texto sobre mortos e lixo resume oque havia conversado com alguns moradores antigos na minha ultima visita ao Capão.

    um grande abraço do seu quase filho!!

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  4. Sandra Moreira S Pituba29 de junho de 2009 às 08:27

    Querido Áureo,
    esse seu texto nos leva a muitas reflexões, sem dúvida. A falta de respeito pelos nossos antepassados,pelas nossas raízes é mais um sintoma da falta de valores humanos nessa nossa sociedade! Para onde seguiremos?
    Beijão

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  5. Dr.Áureo Augusto,
    Até que enfim o encontro. Veja como é importante a internet como meio de comunicação. Fui sua cliente em Salvador há bastante tempo. Moro em Brasília, mas não esqueço da sua coerência, da sua seriedade, e do seu amor pelas pessoas. Até hoje tenho um livro Medicina Natural ao alcance do todos,adquirido naquela época, anos 80. Fico muito feliz por encontrá-lo e vou acompanhar o seu blog. Um abraço de Ana Rosa.

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  6. Gostei do Seu Blog. Voce e uma pessoa do bem esta sempre levando coisas positivas para as pessoas.
    Um grande abraco para todos e todas ai no Capao, em especial Cibele.
    Do amigo,
    Eduardo

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  7. Gosto deste "lugar virtual".Gosto do estilo dos seus textos.Gosto do que eles falam.
    Paz, luz e alegria...todo dia!

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