Sempre que mando os avisos de consultas qdo vou a Salvador, envio tb um texto de minha autoria. O último texto despertou mto interesse e alguns pediram que colocasse no blog. Aí vai:
A mulher é do campo, destas bem da roça. Atendi a sua criança e acostumado com o povo do Vale do Capão, expliquei que estava com anemia ferropriva. Claro que não usei este termo, mas disse-lhe que o ferro é fácil de encontrar nas folhas verdes e por isso receitei suco de couve, limão e melaço (este é rico em ferro e a vitamina C do limão facilita sua absorção). Não gosto de passar Sulfato Ferroso que é o comum das receitas quando as pessoas têm anemia, porque destrói a vitamina E; se uma pessoa toma um comprimido de sulfato ferroso, durante oito horas toda a vitamina E que ingerir será destruída. Além disso, o ferro é atacado pela bile e se torna uma substância oxidante, ou seja, se torna uma espécie de radical livre. Também não se deve receitar suplementos de ferro a quem tem câncer, pelo seu efeito estimulador da formação de radicais livres e porque inibe a ação dos macrófagos, células de defesa do organismo que participam da destruição dos tumores malignos. O ferro em excesso também estimula a formação de um tipo de colesterol mais capaz de entupir as artérias. Por fim, é perigoso para quem tem anemia falciforme, enfermidade hereditária relativamente comum na Bahia. Penso que esta é uma boa coleção de motivos para evitar seu uso. Entendo que o governo distribua Sulfato Ferroso para as crianças do sertão. Ocorre que estas não têm acesso razoável a couve e outras folhas verdes. Trata-se de uma medida heróica para livrar nossa população da anemia. Infelizmente a substância irrita o intestino o que dificulta a absorção futura de ferro. Creio que seria conveniente entender a distribuição de sulfato ferroso como algo provisório, investindo definitivamente na multimistura, tão divulgado pela Dra. Clara Takaki Brandão e utilizado pela Pastoral da Saúde. Ali não apenas ferro, como outros nutrientes essenciais garantem saúde com bases firmes para nossas crianças. Ademais, publicitar a alimentação rica em frutas, verduras e legumes como fonte de saúde.
Porém aquela mãe quer que a sua filha tome comprimidos. Ela perdeu completamente a fé no fato óbvio de que a alimentação é o determinante para a saúde e não a medicação. Isso é uma vitória de uma filosofia centrada na dominação e na alienação de si. De um sistema voltado para a medicalização da vida (a expressão é de I. Ilich) que resulta no aumento da dependência. É impressionante como a comunidade onde vive a referida senhora está perdida dos antigos laços, desgarrada. Vocês vão estranhar, mas existem comunidades rurais que estão mais afastadas do mundo natural do que gente que mora num edifício em uma grande cidade. Aqui em Palmeiras temos dois pequenos povoados próximos: Rio Grande e Conceição dos Gatos. O primeiro é onde vive a mulher que mencionei acima. Impressiona-me ali o desgarro que comentei há pouco. Há uma espécie de tristeza, uma melancolia ansiosa na maioria das pessoas, mesmo nas crianças. Já na Conceição dos Gatos encontro uma alegria, ali bebe-se fácil a sensação de que o mundo vale ser vivido e passam uma hospitalidade deliciosa. São tão próximos os dois lugares, e tão distantes. Por que tais diferenças? Por que uns assim enquanto outros d’outro talante? Creio que essa pergunta é prato para antropólogos... No entanto, tanto quanto tenha eu que ir tratar esta gente do Rio Grande, vou satisfazer-lhes em muito o desejo de medicações, não tenho outra saída, já que os atendo dentro de um posto de saúde pública. Noto que nos tempos de hoje, as pessoas não querem mais esperar que seus corpos ajam. Confundem direitos político-sociais com o domínio absoluto e tirânico sobre o mundo físico. É uma coisa sutil: Pensa-se que as conquistas sócio-políticas têm a ver com estar acima das injunções bioquímicas e, mesmo, ambientais. Os pobres e dentre eles os camponeses, perderam muito da antiga resignação, o que em muita medida é positivo, no entanto, neste processo podem ter jogado fora a constatação de que existem coisas desagradáveis que são parte da vida. Adoecer, passar por dissabores, decepções, perdas, são parte da vida. Não dá para (e não é desejável) viver sempre em um mar de rosas. A dor é parte da vida e para sermos livres, felizes ou alegres não devemos negar a dor e sim encara-la e supera-la (o que não significa que um analgésico oportunamente indicado seja uma inutilidade). Quando estamos perdidos de nós mesmos, mas do que o encontro, buscamos soluções rápidas para nossas agruras e responsabilidades. As medicações são muletas fáceis. Porém o uso abusivo, além de corromper o corpo, dificulta a cura. E não apenas a cura física, mas também a emocional, e impede o estabelecimento de uma filosofia, no sentido de busca de sabedoria. Dopa a mente. Sob o disfarce da liberdade, escraviza-nos abjetamente enquanto sustentamos com nosso trabalho e esforço um sistema injusto, desequilibrado e irresponsável.
Quanto a esta gente, aguardarei de tocaia para estar pronto no dia em que descubram que eles também são como todos os demais seres humanos, ou seja, capazes da autonomia. Somos dependentes, sim, mas da natureza. Esta que é mais do que algo lá e sim dentro aqui. Somos dependentes da Natureza porque somos a Natureza. Direi isso todos os dias a eles, será o contraponto da receita medicamentosa.
Em 14/8/09, Aureo Augusto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário